Há mais chantagistas que progressistas no Governo Federal. Entrevista especial com Muniz Sodré

Embora vivamos toda a sorte de desafios sociais no enfrentamento ao racismo e à desigualdade a questão do acesso à terra continua sendo a pedra de toque da corrupção e da violência que marcam a história do Brasil

Por: Baleia Comunicação | IHU

Em linhas muito gerais, podemos resumir a história da fundação do Brasil, desde o Império, como a história da aliança entre as classes dirigentes e os militares. O que começa no século XIX, servindo-se de mão de obra escrava, e desemboca no século XXI tendo como alvo as mesmas pessoas, a população marginalizada, empobrecida e negra. Ao longo desta entrevista, realizada por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Muniz Sodré passa por aspectos históricos e contemporâneos para entendermos esse enigma chamado Brasil.

“Ora, o que está claro hoje no Brasil é que, embora existam instituições que se sustentam, a república é cada vez menos republicana. Então a república sempre teve como caibro militares e elementos das classes dirigentes que sempre manobraram as eleições para se manterem perpetuamente no poder. É uma república, eu diria, instável, por isso ao longo de todos esses anos houve algumas tentativas bem-sucedidas de golpe militar”, descreve Sodré.

Um dos principais elos que enfraquecem nossa combalida república é, precisamente, algo que outros autores sociólogos chamam de presidencialismo de coalizão, mas que, de alguma forma, aparece na análise de Muniz Sodré sobre como ele percebe o autogoverno. “Eu nunca vi o Lula como um homem de esquerda. Não é essa imagem que compreendo como de esquerda. Sempre o vi como um progressista liberal, sindicalista e ligado ao povo, que por todos esses predicados merece o meu voto. Mas o governo atual não é um governo de esquerda. É um governo que tem que negociar com o centrão, com os chantagistas, de tal modo que tem mais chantagistas no governo que progressistas que pudéssemos chamar de ‘esquerda’”, avalia.

Em meio a tudo isso, o país vive um cenário de violência sistêmica, no qual o assassinato de Marielle é tragicamente ilustrativo. “Eu conhecia Marielle pessoalmente e conheço a família. Esse crime surpreendeu a todos nós no início. Ela não era uma incendiária de esquerda. Era uma mulher que estava batalhando para que pessoas pobres de uma determinada periferia tivessem títulos públicos de suas casas. Estava atuando dentro da lei, era vereadora inclusive. Era isso, de fato, que ela estava fazendo”, analisa Sodré. “O que continua matando as pessoas no Brasil é a questão da terra, a questão fundiária no Brasil mata gente e mãe Bernadete é uma vítima disso”, complementa.

Muniz Sodré é professor, pesquisador, sociólogo, jornalista e tradutor. Professor emérito da Escola de Comunicação – ECO da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e membro da Academia de Letras da Bahia, atualmente é colunista do jornal Folha de S. Paulo e considerado um dos maiores intelectuais brasileiros no campo da comunicação. Foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional de 2009 a 2011 e fundador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da ECO. É autor de diversas obras, entre elas Pensar Nagô (Petrópolis: Vozes, 2023) e O fascismo da cor (Petrópolis: Vozes, 2023).

Confira a entrevista.
IHU – Como compreender o povo brasileiro hoje?

Muniz Sodré – É… veja só, na pergunta já há a suposição de que exista um povo brasileiro ou algo do gênero, um povo brasileiro unitário. Hoje se evidenciou que o Brasil tem povos, porque a ideia de povo, que é uma ideia republicana, francesa, consiste na noção de que povo não é igual a população. Povo é um princípio republicano de onde se deduz a posição política da população. Isso quer dizer que na França existia os estados como estamentos, onde se tinha o clero, a nobreza, o rei, os servos, como povos diferentes. Mas o povo como ideia de unidade regida pela república faz do povo um princípio que se pode esgrimir liberalmente contra o Ancien Régime (antigo regime), contra a aristocracia, contra as ditaduras. O povo é um princípio.

Ora, o que está claro hoje no Brasil é que, embora existam instituições que se sustentam, a república é cada vez menos republicana. A república brasileira foi fundada com um pacto de fazendeiros com militares e esse pacto permitiu a abolição. Houve primeiro o pacto do trono, do Império com militares que permitiu a abolição, depois do trono, essa república de militares foi entregue a fazendeiros, os primeiros presidentes eram fazendeiros prósperos. Então a república sempre teve como caibro militares e elementos das classes dirigentes que sempre manobraram as eleições para se manterem perpetuamente no poder. É uma república, eu diria, instável, por isso ao longo de todos esses anos houve algumas tentativas bem-sucedidas de golpe militar.

Hoje o que está evidente é que povos diferenciados emergiram aqui no Brasil. Em primeiro lugar os povos indígenas que possuem 305 línguas diferentes, com mais de 300 etnias, e cada etnia é um povo com língua própria, mas submetidos ao poder da república, ao poder central. Depois há o povo negro, que se constitui por via de suas instituições, dos terreiros de candomblé, com características próprias e mal conhecidas. Há os ribeirinhos, os caboclos… são povos diferentes, mas todos eles respeitam, formalmente, a nacionalidade brasileira. Esses povos têm reivindicações políticas perturbadoras para a república, reivindicações territoriais importantes. Os negros têm questões que desembocaram nas políticas afirmativas. Os povos da Amazônia estão reclamando das invasões, de mineradores, garimpeiros, estrangeiros e do tráfico, que tem tomado conta da região. Essa pluralidade étnica, que é uma pluralidade de povos é a característica do Brasil hoje.

IHU – Por que desde a Nova República, após a Constituição de 1988, o Brasil não foi capaz de construir um projeto de país?

Muniz Sodré – A ideia de um projeto nacional, um projeto de país, surgiu, curiosamente, durante a ditadura, no Estado Novo de Getúlio Vargas. Esse projeto começava com o estabelecimento, a fixação, de uma classe trabalhadora, o que implicava converter as massas como a categoria étnica nacional que era atravessada pelo conceito de trabalho, é por isso que Getúlio Vargas faz a carta trabalhista e a legislação do trabalho. Ao mesmo tempo, havia um projeto educacional, no qual, mais tarde vão se destacar nomes como Anísio Teixeira e, à margem da esfera oficial, Paulo Freire, grande nome da educação brasileira. Ao lado disso, intelectuais, mesmo com visões conservadoras, como Fernando Azevedo, que foi da Academia de Letras, que escreveu um livro chamado A cultura brasileira (São Paulo: Edusp, 2010), onde examina a questão da educação, o que mostra que o tema sempre foi uma questão política antenada com o projeto nacional.

A ideia também do desenvolvimento brasileiro, que se expande com Juscelino Kubitscheck, depois de 1955, é a ideia do projeto nacional capturado pela burguesia paulista e sulista. Esse projeto nacional acaba com a ditadura militar de 1964, quando vai se esgotando o processo de substituição de importações. A ditadura assegura durante um tempo esse projeto de substituição de importações, mas esse processo se esgota e a política vira uma colcha de retalhos. Não existe mais projeto nacional, não há projeto nacional. A ditadura militar tem responsabilidade enorme nisso.

IHU – E depois não há outro projeto? Há a famosa frase de FHC de que a era Vargas havia acabado. De alguma forma o Brasil acabou admitindo o neoliberalismo como um projeto econômico?

Muniz Sodré – Um projeto nacional nunca é só um projeto econômico, ele é sempre político, cultural e econômico. Toda a reforma política é, também, uma reforma cultural. Isso se dá, portanto, com investigação científica, pesquisas em universidades e reformas educacionais profundas. Aqui no Brasil, sempre que se fala em educação para um político ele está pensando mais em verba do que em verbo. Ou seja, mais em dinheiro, do que em definição de prioridades e objetivos, quando isso é fundamental para um projeto educacional. Foi isso que marcou pessoas como Anísio Teixeira, de quem não se fala mais, ou Paulo Freire, que é anatemizado, escolhido por um governo como o grande educador nacional, mas depois odiado pela direita brasileira.

O Anísio Teixeira foi esquecido, mas foi revolucionário na organização de instituições educacionais. Ele foi escanteado pela ditadura logo no início, morreu sob condições suspeitas – tendo caído no fosso do elevador no Rio de Janeiro, onde morava – e Paulo Freire foi exilado, tendo passado o resto de sua vida no exterior.

Ou seja, não é o caso de que essas pessoas salvariam a educação, mas elas simbolizam um momento em que a educação estava antenada com um projeto de país. O que não existe mais. Vivemos uma fragmentação de objetivos e metas no qual tudo está dominado pelo discurso economicista. O neoliberalismo é isso, é antes de tudo uma linguagem, linguagem da economia dominando todas as instâncias da vida social.

IHU – Aproveitando esse gancho da educação, o governo federal cortou, no orçamento de 2024, R$ 300 milhões das universidades, que já funcionam de maneira muito apertada. Ao mesmo tempo anunciou a criação de mais de 100 institutos federais. Como compreender esse paradoxo e a gestão da pasta?

Muniz Sodré – Essas são contradições internas do governo Lula. Ele se notabilizou em gestões anteriores pelos incentivos às universidades e pela criação de Institutos Federais. Isso nós devemos a ele. A mesma coisa foi o incentivo ao SUS, que é um programa de saúde importantíssimo. Isso foi destroçado pelos quatro anos do desgoverno Bolsonaro e escanteado, também, pela direita brasileira, que vê nas universidades um amontado de esquerdistas e comunistas.

Então, o Lula está indo mal de popularidade nesse momento, ele está agarrado a êxitos passados e não sabe muito bem o que fazer, mas construir coisas novas, prédios e institutos federais, supõe-se que isso o popularize. Quando se constrói um laboratório em uma escola ou universidade, coloca-se os computadores novos, é ótimo quando inaugura, mas o problema é fazer manutenção porque é chato, é difícil e não aparece. O Brasil e o governo são um pouco isso. O governo tem dinheiro para obras novas porque isso dá voto e dá mídia, mas esses R$ 300 milhões que foram cortados é um dinheiro para manutenção do que já existe.

Por outro lado, estamos vivendo um momento de grande desperdício de dinheiro mal-empregado nas emendas parlamentares. Os deputados querem as emendas para investir no que eles querem, aportando dinheiro nos seus pequenos feudos, construindo estradas perto de suas fazendas, comprando ambulâncias sem ter hospital, ou seja, há uma dispersão de recursos astronômica, algo que talvez esse país nunca tenha vivido. Isso porque não tem nada que mais irresponsável e escroto nesse país que deputado federal, com algumas exceções. Então o dinheiro está se esvaindo por aí. É um pouco como o Rio Guaíba, que estava contido, é muito simpático e que gosto muito, mas agora está dando problema. Então esses 300 milhões cortados deve ir para deputado gastar.

IHU – Passados dezesseis meses da atual gestão do governo Lula, como o senhor avalia a gestão? Há, de fato, um governo de esquerda?

Muniz Sodré – Eu votei e, se fosse necessário, votaria de novo no Lula. Mas nunca fui do PT ou de qualquer partido político, apesar de ter tido cargo durante o primeiro mandato do Lula, tendo sido parte do Conselhão Econômico Social e no segundo mandato, a convite do Juca Ferreira, fui presidente da Biblioteca Nacional. Dito isso, sempre fui de esquerda e todo mundo sabe que sempre fui de esquerda.

Eu nunca vi o Lula como um homem de esquerda. Não é essa imagem que compreendo como de esquerda. Sempre o vi como um progressista liberal, sindicalista e ligado ao povo, que por todos esses predicados merece o meu voto. Mas o governo atual não é um governo de esquerda. É um governo que tem que negociar com o centrão, com os chantagistas, de tal modo que tem mais chantagistas no governo que progressistas que pudéssemos chamar de “esquerda”.

Por outro lado, a esquerda que circunda o Lula é uma esquerda retrógrada. Uma esquerda que apoia ditaduras. Uma esquerda que apoia um tirano como o Putin, que esquerda é essa? Uma esquerda que se articula com um alucinado, maluco, que fala com um passarinho, como o Maduro? Você sabe que ele fala com passarinhos e o passarinho é o intermediário dele para o morto Hugo Chávez, que incorpora Chávez. Ou então o maluco do Milei, que fala com um cachorro e está contra o Brasil. O Ortega é um ditador. Eu não acho que o governo tenha entrado em uma posição internacional de esquerda e esqueceu, até agora, as articulações internacionais com a África lusófona. Para mim, ideologicamente o governo Lula é uma mixórdia.

Eu tenho uma coluna na Folha de São Paulo e os bolsominions que conseguem passar ali para comentar me odeiam, acham que eu sou lulista. Inclusive, recentemente, uma pessoa entrou ali para comentar o seguinte: “professor, o senhor precisa tomar vergonha na sua cara lulista” (risos). Uma coisa é fato. Eu só tenho elogiado o Lula na coluna, com uma crítica ou outra, mas é que o que temos no outro lado é uma monstruosidade, o representante da extrema-direita é o “bozo”, o Bolsonaro. Mas pessoalmente não estou satisfeito com o governo Lula. Inclusive li uma matéria em que a Janja estaria dando audiências para ministros. Veja, ela é uma pessoa importante que tenho admiração por ela, pois na ocasião do 8 de janeiro ela foi uma das primeiras pessoas a rejeitar a GLO, que era a medida do golpe, ela teve essa cabeça, mas como ela pode fazer isso? Ela não tem nenhum cargo oficial federal? Ela é a primeira-dama e disse que queria ressignificar o papel, o que acho importante, mas dentro de quadros legais. Não é possível que a mulher do Lula tenha autoridade para dar audiência a ministros. Tem muita coisa torta e isso para mim é dar alfafa para a direita.

IHU – O que o fato de 129 parlamentares terem votado pelo relaxamento da prisão de Chiquinho Brazão, acusado de ser o mandante do assassinato da vereadora Marielle Franco, significa em termos políticos?

Muniz Sodré – Isso foi exatamente o motivo do comentário do artigo na Folha de São Paulo. Veja, eu não sou especialista em criminologia, nem mesmo em criminalidade aqui no Rio de Janeiro, mas eu moro aqui no Rio e me interesso pelo assunto. Tenho amigos em várias áreas, inclusive desembargadores, procuradores de Estado, ex-ministros do Supremo e todos que eu conheço têm uma resposta pronta: “O Rio não tem jeito”. E não é uma bravata. E não tem jeito por quê? O Rio de Janeiro depois que foi unificado pelos militares, unindo o Estado da Guanabara ao do Rio de Janeiro, teve como resultado paulatino o fato de que a política interiorana fosse se infiltrando no aparelho de estado, digamos assim, “carioca”. Ou seja, veio de lá do interior o pior da política fluminense com políticos fortemente comprometidos com a criminalidade local.

Isso extrapolou, tomou um vulto imenso – o que acontece em outros estados brasileiros – e aqui o espelhamento é mais forte, o vulto é maior. Todos os últimos governadores do Rio de Janeiro terminaram na cadeia. O Sergio Cabral ficou seis anos na cadeia. O atual está perigando ir para a cadeia por um escândalo de um órgão do Estado, além de ser uma figura que ninguém conhecia. Ora, o que ocorre, portanto, aqui no Rio de Janeiro que é maior que qualquer outro estado? Não é que tenha um estado paralelo – os bandidos, a milícia e o tráfico – é que dentro do Estado há uma infiltração criminosa generalizada e em todas as instâncias. No Ministério Público, no Judiciário, na Câmara de Vereadores, onde a milícia sempre consegue eleger vereadores, e também na Alerj, a câmara dos deputados estaduais.

O Chiquinho Brazão é deputado federal, mas pertence aqui no Rio a algo que, propriamente na Itália, se chama de máfia. Há clãs. Melhor do que famiglia que é o termo italiano, o termo clã inclui relações com pessoas influentes, políticos, sem vínculo de sangue. O Clã Brazão é fortíssimo no Rio de Janeiro. Sem contar que o irmão que está preso faz parte do Tribunal de Contas. Ele foi afastado, por suspeita de corrupção, voltou e quando foi preso de novo ainda estava no Tribunal de Contas, recebendo seu salário. O Brazão, deputado federal, é eleito com os votos dessa gente toda, incluindo milícia e bandidos. E a câmara, por um corporativismo criminoso, com 129 votos, faltando poucos para aliviarem a prisão, ousa escudar, proteger, os autores de um crime tão bárbaro, de repercussão internacional.

Eu conhecia Marielle pessoalmente e conheço a família. Esse crime surpreendeu a todos nós no início. Ela não era uma incendiária de esquerda. Era uma mulher que estava batalhando para que pessoas pobres de uma determinada periferia tivessem títulos públicos de suas casas. Estava atuando dentro da lei, era vereadora inclusive. Era isso, de fato, que ela estava fazendo. Não era nenhuma incendiária política, estava militando juridicamente para que as pessoas recebessem os títulos das casas ondem moravam.

Quando o crime ocorreu ninguém entendeu porquê. Um crime de uma vereadora a luz do dia e, de repente, a investigação demorando e hoje se sabe o porquê, pois um delegado da Polícia Civil foi quem orientou a matança, o Nivaldo Barbosa, que era “amigo” da família, foi quem lavrou as pistas iniciais. Quando duas promotoras chegaram em cima da história foram afastadas do cargo, ou seja, se sabia que tinha alguém forte por cima. Aí entrou a Polícia Federal, muito embora se Bolsonaro tivesse continuado não saberíamos até hoje o que aconteceu. Mas, por outro lado, essa Polícia Federal, que não é nenhuma santa, investigou e chegou aos autores do crime mostrando a força das Instituições brasileiras. Isso porque na Polícia Federal é possível controlar os problemas internos que ela tem e é hoje a instituição policial mais séria que temos no Brasil.

Foi a entrada da Polícia Federal que permitiu esse desenlace, com um trabalho de investigação secreto e sério que levou à prisão os envolvidos, mas temos 129 representantes federais que tentaram soltar esses criminosos. E já se sabe, mais ou menos, que como não tem prova material, somente a denúncia, juridicamente o processo contra os dois vai ser muito difícil de avançar. É isso que eu chamo de país criminoso, criminal country. Um país onde crime está infiltrado a tal nível nas instituições que determinados lugares parecem não ter mais jeito. Essa uma opinião que não é minha apenas, mas de gente que milita há muito tempo no combate ao crime.

IHU – Outro crime bárbaro que ocorreu recentemente no Brasil foi o assassinato de Mãe Bernadete. O que explica que, em pleno século XXI, ainda testemunhemos esse tipo de coisa?

Muniz Sodré – A Bahia, como aqui [Rio de Janeiro], está virando um estado muito violento. Eu sou baiano, não era assim. As elites baianas, principalmente aquelas de Salvador, são elites que sempre lidaram com terras. Terras de Salvador e do interior tomadas dos índios. A mãe Bernadete estava enfronhada com a questão fundiária, a questão da terra, ela não foi morta porque era ligada ao Candomblé. Lá o crime, como aqui, tem determinados momentos que são limites. O que continua matando as pessoas no Brasil é a questão da terra, a questão fundiária no Brasil mata gente e mãe Bernadete é uma vítima disso.

IHU – Há um fenômeno relativamente novo no catálogo de violências brasileiro, que é a combinação entre tráfico e pentecostalismo. Quais as consequências sociais da soma entre tráfico e intolerância religiosa?

Muniz Sodré – Na Bahia o pentecostalismo entrou forte, num lugar onde o universo dos terreiros é muito forte, mas houve resistência e esta resistência se mantém. Os neopentecostais recuaram porque não se pode investir contra os terreiros sem mais nem menos. Em primeiro lugar porque os terreiros são instituições arraigadas, com métodos próprios de defesa. Eu sou da hierarquia de um dos maiores terreiros da Bahia que é o Axé Opô Afonjá, uma organização que tem um pé fora e outro dentro. É um lugar tombado pelo patrimônio histórico, não é uma coisa que qualquer pessoa vai entrar para fazer bagunça. Não vai mesmo.

Ao mesmo tempo, o sujeito que xingou a mãe de santo foi processado, tem que pagar. Não é tão fácil assim na Bahia. Mas aqui no Rio é fácil. Os terreiros não têm a institucionalização junto a classes sociais dirigentes que tem na Bahia. Aqui o neopentecostalismo avançou muito e avançou junto à polícia e ao tráfico ao ponto de termos aqui uma coisa chamada “Complexo de Israel”, composto por vários bairros. O “bonde”, que é um grupo que sai para matar, se chama “bonde de Jesus”, é dentro do Complexo de Israel, formado por petencostalistas e traficantes. Os pentecostalistas e os milicianos estão tomando conta dos bairros cariocas. Cerca de 62% do território carioca é tomado por traficantes e milicianos. A religião aqui, no Rio de Janeiro, o evangelismo é a face mais corrompida da ultradireita.

IHU – Em que sentido o racismo é um enigma no Brasil, tema que o senhor aborda em seu livro O fascismo da cor?

Muniz Sodré – O racismo é um enigma em qualquer lugar, no mundo inteiro. O racismo é um mal-estar civilizatório e resiste aos avanços da civilização, resiste ao progresso da consciência, resiste às filosofias da diferença. Nenhuma dessas formas sofisticadas de pensamento ou de educação foram até agora eficazes contra o racismo. A não ser em melhorar atitudes, mas o racismo permanece como um mal-estar.

No Brasil o racismo tem particularidades, porque ele é perpetuado e mantido pelo estamento patrimonialista. Não é a classe social que explica. É um estamento, que são formas comunitárias onde o sujeito é avaliado por razões de cultura, religião, tradição e nascimento. É dentro desses estamentos que o racismo se perpetua. Esse estamento é mais forte em certos lugares que outros. Eu diria que é muito forte no Rio Grande do Sul, é muito forte em Santa Catarina, no Paraná. Não é tão forte no Nordeste, mas existe também.

O livro O fascismo da cor (São Paulo: Vozes, 2023) foi uma tentativa de mostrar que o combate ao racismo, em primeiro lugar está na forma como o fascismo penetrou no Brasil, não por via política, mas via eugenia racista. Trata-se de uma tentativa de mostrar que existe uma outra episteme, um outro caminho de conhecimento prático e teórico para lidar com o racismo.

Muniz Sodré (Foto: Ascom UFG)

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