Poderá o SUS salvar nossas utopias?

Frente a um mundo em que o futuro mostra-se cada dia mais ameaçado, como despertar a força necessária para a mudança? Uma chave pode ser o sistema público de saúde brasileiro, projeto centrado no cuidado, com base comunitária e antineoliberal

por Túlio Batista Franco, em Outra Saúde

Tenho dito há algum tempo que é necessário que as pessoas se apaixonem pelo SUS. Um projeto que visa a um grau civilizatório elevado, onde a sociedade cuida dos seus, e todas as pessoas têm os mesmos direitos à saúde e à vida. O que nos move é sobretudo um projeto de futuro. A paixão é um estado de ânimo, capaz de mover com intensidade as forças individuais e coletivas, que funcionam como força propulsora, para a construção do mundo. Nosso mundo é a defesa da vida, da democracia e o fortalecimento do SUS. Essa insígnia da Frente pela Vida colou em nós, como é a luta cotidiana em defesa da saúde universal, com tudo o que isto significa de enfrentamento, por exemplo, com o projeto neoliberal. Devemos pensar em como mobilizar os afetos mais intensos a favor de da política de saúde, mesmo contando com a adversidade dos tempos atuais.

Um projeto estratégico que aponta para o futuro é o que poderia recuperar a “utopia ativa”, o sonho que nos faz caminhar. Ele é capaz de dar um norte, onde o dia a dia tem relação com esta “imagem objetivo”: o SUS universal sustentado, a democracia, liberdade e justiça, solidariedade.

Nos últimos anos fomos invadidos por novas questões que desafiam mais intensamente a humanidade, e por assim dizer, a saúde dos povos. Atônitas, as pessoas são levadas a viver experiências até então desconhecidas, como a tragédia da pandemia de covid-19, o distanciamento social, que se misturaram a cenas até então vista apenas em filmes de ficção que anunciavam o fim do mundo. Ninguém ficou impune diante da morte de mais de 7 milhões de pessoas em quatro anos no espaço global, e que segue como uma grande questão ainda não totalmente encerrada, pois espera-se novas pandemias para os próximos anos.

Adicionalmente ao cenário global doentio, somos surpreendidos com eventos climáticos extremos, de um planeta febril que reage: chuvas torrenciais no deserto em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, que produziram cenas improváveis de ruas alagadas e carros submersos; enchentes no norte do Afeganistão que deixaram centenas de mortos; seca na Amazônia brasileira, fogo no Pantanal, desastres climáticos devastadores no Rio Grande do Sul. Só pra ficar em alguns exemplos de reações do planeta às agressões que sofre, movidas pela ganância do capital, e atividades extrativistas e predatórias de grandes corporações. Ao mesmo tempo nos atravessa o negacionismo climático e da ciência, como estratégia para manter tudo como está. Associado a fake news sobre o clima, ao grande capital, e ao mercado de carbono. Ou seja, a desgraça climática, como tudo, virou mercadoria, e dá lucro. Hoje se compra o direito de jogar gás de efeito estufa pro alto, e matar a camada de Ozônio, contribuindo para o derretimento de geleiras, aquecimento dos oceanos, etc… O resto da história todas pessoas estão vendo e vivendo.

Pesquisas do World Weather Attribution (WWA), um grupo internacional de cientistas especializados em assuntos climáticos, indicam que os eventos extremos têm mais associação com o aumento da temperatura do planeta, e seus efeitos no clima, e menos ligados ao fenômeno El Niño. Fica claro que a humanidade provoca o aquecimento global, aparecimento de novos vírus pelo desequilíbrio ambiental, produz condições cada vez mais inóspitas para a vida no Planeta. O biólogo Eugene Stoermer (1934-2012) chamou de Antropoceno esta nova era, em que as alterações físico-químicas do Planeta foram incrementadas pela atividade humana. O termo foi popularizado por Paul Crutzen (1933-2021), o Nobel de Química, em 2020.

Estas questões hoje têm uma presença muito concreta na vida cotidiana, e na realidade social e sanitária. Este cotidiano com seu potencial disruptivo precisa ser incorporado à formulação das políticas de saúde, não como um setor que se alia a esta, mas, organicamente, e talvez esta seja a questão importante. É preciso um projeto estratégico, que aponte para o futuro, e tenha força para mover os afetos mais intensos, e por em movimento corpos e vidas apaixonadas com a política generosa, e a força solidária e transformadora que contém uma proposta, como a que assentou as bases do SUS.

Perseguir o projeto “civilizatório”, ao qual se referiu Arouca na 8ª Conferência Nacional de Saúde, supõe, hoje, uma atualização do projeto estratégico para a saúde. O SUS contém na sua essência, o princípio generoso do cuidado, como base humanitária de um novo marco nas relações sociais na saúde; o coletivo como antídoto à autossuficiência proposta pela meritocracia; a base comunitária, contra a gestão autocrática das políticas; o sujeito solidário ao invés do sujeito da concorrência, uma invenção neoliberal para as relações de trabalho; enfim, o SUS universal, equitativo, sustentado, é um projeto antineoliberal. O SUS traz na sua essência, como projeto estratégico, o amálgama que solidifica as relações sociais e comunitárias, ele pode ser uma importante referência para um projeto civilizatório nacional.

Atualizar o projeto estratégico do SUS, poderá fazer com que ele retome a força utópica de um futuro, como possibilidade de construção de um novo mundo. É este o espírito que presidiu a histórica Conferência Nacional Livre, Democrática e Popular de Saúde, de 5 de agosto de 2022, e impulsionou o movimento nacional sanitário para a luta pelo país, no quadro das eleições presidenciais daquele ano. É com alegria, força, mobilização, e apaixonados, que vamos manter o SUS no centro de um projeto de transformação social.

Niterói, 04 de junho de 2024.

Foto: Araquém Alcântara

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