Evento discute problemas do mercado de carbono e impactos sobre povos tradicionais

A atividade foi transmitida ao vivo pelo Youtube e reuniu especialistas, procuradores da República, representantes de órgãos públicos, povos indígenas e tradicionais

O que é o sistema REDD+ e como ele impacta comunidades indígenas e tradicionais no Brasil e no mundo? Quais são os riscos, os problemas jurídicos envolvidos? Este modelo é realmente eficaz para combater a crise climática mundial? Para tentar responder a essas perguntas e fazer uma análise crítica sobre o modelo de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+) – que permite a remuneração pelas florestas preservadas em territórios (incluso destes povos) – o Ministério Público Federal realizou, na última quarta-feira (5), o webinário “Vamos falar de crédito de carbono? REDD+ e os territórios de povos indígenas e comunidades tradicionais”. A iniciativa fez parte das ações da Semana do Meio Ambiente.

Em linhas gerais, o sistema REDD+ calcula a quantidade de floresta preservada em determinada área e converte esse patrimônio natural em créditos de carbono que podem ser negociados no mercado e comprado por empresas poluidoras. Desenvolvido no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), o incentivo surge em tese para apoiar a redução de emissões decorrentes do desmatamento e reconhecer o papel de povos indígenas e tradicionais na preservação das florestas.

Para o procurador da República Fernando Merloto Soave, um dos organizadores do webinário e membro do Grupo de Trabalho Agroecologia do MPF, o tema ainda precisa ser mais bem discutido, tanto na perspectiva dos impactos sobre povos indígenas e tradicionais, seus direitos territoriais e preservação do modo de vida tradicional, quanto pela ótica da própria eficiência do sistema no combate à crise climática global. “Ainda falta um debate crítico sobre a utilidade e eficácia do mecanismo de REDD+”, afirmou ele na abertura do evento. “Apesar de já ter mais de uma década, esse assunto ainda é desconhecido, novo e cheio de percalços, principalmente no que diz respeito às instâncias de governança do sistema, que precisam ser construídas e fortalecidas”, complementou a procuradora regional da República Lívia Tinôco, que participou da atividade como mediadora.

Organizado de forma conjunta por cinco grupos de trabalho do MPF – os GTs Gestão Territorial e Autossustentabilidade; Comunidades Tradicionais; Agroecologia; Unidades de Conservação; e Quilombos, vinculados às câmaras de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural (4CCR) e de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6CCR) -, o webinário reuniu procuradores da República, representantes de órgãos públicos como Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre outros, especialistas, lideranças indígenas e tradicionais, pesquisadores, integrantes de organizações não-governamentais do Brasil e de outros países. Foram convidados a participar do encontro os diversos atores envolvidos na temática, incluindo empresas e entidades certificadoras, além de organismos internacionais, como forma de garantir a pluralidade e a amplitude do debate.

Arcabouço normativo – A primeira mesa discutiu o que é o REDD+, seus potenciais benefícios e prejuízos, desafios e oportunidades, além de abordar problemas técnicos, jurídicos e falhas conceituais do mecanismo. “Posso afirmar que quase todos os povos indígenas não têm um entendimento amplo sobre o que seja o REDD+”, declarou a liderança indígena Mariazinha Baré, coordenadora executiva da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam).

“A gente tem recebido várias empresas vendendo um ‘sonho’ em relação ao mercado de carbono, mas não temos uma experiência concreta bem-sucedida para reproduzir”, disse ela. Segundo Mariazinha, ao assinar contratos sem a devida compreensão do sistema e de seus impactos, os povos originários acabam sofrendo restrições dentro dos seus territórios para fazer roças e para praticar a caça e a pesca tradicionais, por exemplo.

Outro problema discutido no seminário é que o mecanismo possibilita que as empresas, em vez de buscarem formas de reduzir ou neutralizar suas emissões, comprem créditos de carbono provenientes de áreas já protegidas, podendo incorrer numa prática conhecida como greenwashing (lavagem ou maquiagem verde). Além disso, no caso do Brasil, os territórios indígenas são áreas da União, com uso coletivo destinado aos povos tradicionais. A falta de normativos, de transparência, de consulta prévia às comunidades e de salvaguardas adequadas pode gerar conflitos entre as populações tradicionais.

Falta de transparência – O cenário já vem acontecendo, segundo explica Luana Machado de Almeida, que trabalha na Coordenação Geral de Gestão Ambiental da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). “Da forma como os projetos têm se desenvolvido neste momento, há um custo social alto, com conflitos internos nas comunidades e pouca transparência”, afirmou. Segundo ela, desde 2022, a Funai vem recebendo uma série de demandas de comunidades indígenas interessadas em desenvolver projetos de REDD+ nos seus territórios. Entretanto, diante das incertezas e da falta de normativos, o órgão orienta a não assinatura de contratos.

Em nota divulgada em abril deste ano, a Funai manifestou preocupações e dúvidas acerca do potencial lesivo dos contratos de crédito de carbono ao patrimônio e direitos indígenas garantidos pela Constituição, bem como sobre a qualidade e lisura dos processos de consulta realizados junto às comunidades indígenas interessadas, além da falta de amadurecimento do arcabouço normativo nacional sobre o tema. O assunto também foi analisado em nota técnica do MPF e do Ministério Público do Pará, que, no ano passado, já apontavam riscos de conflitos relacionados à falta de consulta prévia e à repartição desigual de benefícios.

O procurador da República Leandro Mitidieri, do GT Unidades de Conservação, diante do histórico e dos graves problemas, defende que o MPF deve se posicionar contra o mercado não regulamentado de créditos de carbono, que ocorre quando empresas ou entidades negociam diretamente com povos tradicionais por exemplo. Ele lembrou que existem projetos de lei tramitando no Congresso Nacional que buscam regulamentar o tema.

Os participantes recordaram que muito se discute sobre a necessidade de que sejam observadas as salvaguardas na implementação de ações de REDD+, conhecidas como Salvaguardas de Cancún, que buscam assegurar os direitos dos povos tradicionais, mas não há um aprofundamento se apenas isto resolveria os graves problemas do modelo. Lembraram da Operação Greenwashing, deflagrada pela Polícia Federal na última semana contra um esquema de venda de créditos de carbono fraudulentos. Bem como citaram já decisões judiciais e administrativas na Europa proibindo o uso do selo de “carbono neutro” em produtos, em razão da potencial falsidade desta afirmação.

Experiências – O segundo painel tratou de experiências de REDD+ implementadas em terras tradicionais no Brasil e no mundo. Nilson Corrêa da Silva, secretário-geral do Sindicato dos Trabalhadores Familiares Rurais de Portel, confirmou que há muito desconhecimento e que é essencial fortalecer o protagonismo das comunidades tradicionais nesse cenário.

A dificuldade de compreensão acerca do funcionamento do mercado de carbono é uma realidade enfrentada também pelos povos indígenas dos Estados Unidos, como relatou Tom Goldtooth, representante da Indigenous Environmental Network EUA. “Os contratos oferecidos de forma agressiva pelas empresas às comunidades indígenas envolvem cifras milionárias e, às vezes, têm duração de 90, 95 anos. Já vi casos em que o direito de consulta prévia não foi respeitado e uma pessoa só tomou a decisão de assinar o contrato em nome de toda a comunidade”, afirmou.

Alessandra Korap, indígena Munduruku e coordenadora da Associação Pariri do Povo Munduruku, relata que falta clareza e transparência aos projetos de REDD+ apresentados por associações e empresas aos povos tradicionais. A comunidade possui um protocolo de consulta bem estabelecido e que precisa ser respeitado. “A gente não precisa de dinheiro, a gente precisa de direito”, disse ela.

Para María José Andrade Cerda, coordenadora de Economia e Desenvolvimento Comunitário da Confederação de Nacionalidades Indígenas da Amazônia Equatoriana, é essencial que os povos tradicionais não percam a soberania sobre seus territórios e seus mecanismos de autogovernança. José Ivanildo Brilhante, liderança extrativista da Ilha de Marajó e diretor do Conselho Nacional de Populações Extrativistas, reforçou esse posicionamento. Ele contou que as populações locais vêm contratando advogados e consultores para compreender melhor o funcionamento do REDD+ e de outros mecanismos de remuneração por serviços ambientais.

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