Ezequiel, que tipo de profeta e de sacerdote? E nós? Por Frei Gilvander Moreira

Atendendo a orientação do Movimento Bíblico integrado por várias organizações bíblicas, em 2024, o livro de Ezequiel foi escolhido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para ser o texto bíblico do Mês da Bíblia, setembro. Ezequiel é considerado um dos doze grandes profetas da Bíblia, mas o livro de Ezequiel nos informa que Ezequiel era sacerdote também (Ez 1,3), tendo exercido suas funções de sacerdote e de profeta entre os anos 591 e 571 antes da Era Cristã (a.E.C.).

É possível ser sacerdote e profeta ao mesmo tempo? Ezequiel foi mais sacerdote ou mais profeta? Ezequiel foi que tipo de sacerdote e de profeta? Ezequiel primeiro foi sacerdote em Jerusalém e, após ser exilado para a Babilônia, se tornou profeta? Com estas perguntas, com um olho, passemos em revista alguns textos do livro de Ezequiel e com outro olho, estaremos atentos aos conflitos e desafios que as igrejas e pessoas cristãs estão colocando atualmente para os destinos do povo brasileiro.

Estamos no meio de uma realidade com uma maioria de pastores e sacerdotes lamentavelmente traindo o projeto do Deus da vida, Javé, e afundando o povo em políticas de morte capitaneadas pela direita e extrema-direita, que usa e abusa do nome de Deus e de textos bíblicos para tentar justificar moralismos, preconceitos, discriminações, perseguições chegando a matar em nome de Deus de muitas formas. Estamos em contexto de idolatria brutal com capa de religiosidade encabrestada por quem promove um projeto de poder político e econômico que passa por “pequenas igrejas, grandes negócios” e desagua na eleição de pastores que, no Congresso Nacional, se unem às Bancadas do Boi e da Bala, bancadas com atuação anti projeto do reino de Jesus.

Neste contexto de casamento do “sacerdócio” profissional com a classe dominante, tornou-se necessário resgatar a profecia mais radical que anima e inspira os povos injustiçados a se irmanarem, levantar a cabeça e, com utopia nos olhos, pés firmes no chão da história, marchar em lutas libertárias por “terra, teto e trabalho”, conforme apregoa o papa Francisco, ou lutas para construirmos uma sociedade do Bem-viver e conviver, uma sociedade socialista, para além do capitalismo.

A missão primordial de profeta/profetisa é ecoar a “voz do Deus libertador” na sociedade, o que implica criticar, denunciar e execrar todas as instituições que reproduzem a injustiça social, econômica, política e religiosa, pois pela sua organização e lógica, tendem a defender o status quo opressor e explorador construído historicamente, o que geralmente abafa e cerceia a ação do espírito profético que incomoda os injustos e não coaduna com nenhuma injustiça.

Não podemos esquecer que no dólar do imperialismo estadunidense está escrito “nós acreditamos em Deus – We trust in God”. Na Guerra da Ucrânia os dois lados invocam a Deus para tentar justificar a guerra, enquanto o papa Francisco clama por paz, sem guerra e com justiça. Nas vestes dos soldados nazistas estava escrito “Deus está conosco”. A história da humanidade demonstra que ter a aparência de pessoa religiosa pavimenta a estrada para projetos de poder dominação.

Para Jesus e para o Deus da vida o centro da nossa atenção deve estar na vida ameaçada, conforme nos ensina a teologia de Lucas na parábola do samaritano, que foi reconhecido por Jesus como exemplo paradigmático a ser seguido (Cf. Lc 10,25-37).

Ciente de que a Palavra de Javé, Deus solidário e libertador, consola os aflitos e aflige os consolados e de que ninguém pode tocar o corpo dos escritos proféticos sem sentir a batida do coração divino, vamos ler o livro de Ezequiel, especialmente os capítulos 12 a 14 (Ez 12-14), buscando evidenciar até que ponto Ezequiel foi de fato profeta e não amordaçou a profecia. Leremos os textos na perspectiva dos/as injustiçados/as, dos mais empobrecidos, “das minorias abraâmicas”, segundo Dom Hélder Câmara, a partir dos/as periféricos/as e não a partir de quem está no poder, seja ele econômico, político ou religioso.

Quais pressupostos para a leitura do livro de Ezequiel devem ser considerados? No livro de Ezequiel há denúncia de muitos pecados. O livro de Ezequiel é o livro dos “sábios e entendidos” (Mt 11,25), da elite religiosa que foi deportada, mas não escravizada na Babilônia. Por isso Ezequiel precisa ser lido nas linhas e principalmente nas entrelinhas. Tudo que está na Bíblia é “Palavra de Deus”, mas nem tudo é vontade de Deus.  Jesus é por excelência a Palavra de Deus. A Bíblia é histórica e, portanto, tem nela as contradições dos grupos de poder da sociedade. Na Bíblia temos que encontrar a voz e a posição dos pequenos, dos injustiçados e fiéis à aliança com Deus libertador.

O livro de Ezequiel está recheado de oráculos proféticos que, normalmente, são introduzidos com uma fórmula característica que se repete muito: “Assim disse Javé….” ou “Oráculo de Javé” (Jr 9,22-23) ou “Palavra de Javé” (Ez 1,3; 2,7; 6,3; 9,11; 12,25; 13,2.6; 16,35; 21,3; 25;3; 33,30; 34,7.9; 36,1.4; 37,4). A expressão “ne’m YAHWEH”, em hebraico, geralmente traduzida por “oráculo de Javé” ou “Palavra de Javé”, significa sussurro, cochicho de Deus no ouvido do profeta ou da profetisa. Para entender um cochicho, um sussurro, é preciso fazer silêncio, prestar muita atenção, estar em sintonia, ter proximidade, ser amiga/o, discernir. Logo, Deus não falava claramente aos profetas e às profetisas da Bíblia, como nós, muitas vezes pensamos. Deus fala hoje para – e em – nós de forma semelhante, nem mais e nem menos, que falava aos profetas e às profetisas dos tempos bíblicos. Deus cochicha (sussurra) em nossos ouvidos, sempre a partir da realidade e dos clamores dos povos injustiçados, enfraquecidos, oprimidos (Cf. Ex 3,7-9), na trama complexa das relações humanas e sociais, na engrenagem das estruturas sociais, políticas, econômicas e religiosas. Quem compreende de forma sensata as causas das injustiças e violências se credencia a ser profeta/profetisa que denuncia as opressões e aponta caminhos libertadores. Entretanto, como “nem tudo que reluz é ouro”, assim também faz bem desconfiar de quem usa a torto e a direito a linguagem religiosa, faz questão de se afirmar como pessoa religiosa, pois pode estar vendendo ‘gato por lebre’ e sendo lobo em pele de cordeiro. Desconfie de pastor ou padre que para construir discursos sedutores, mas moralistas e exploradores, fica pulando de versículo bíblico em versículo como macaco que pula de galho em galho.

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