Decisão judicial pode terminar com o trabalho das assistências independentes que trabalham no território
Ana Carolina Vasconcelos, Brasil de Fato
Famílias impactadas pelo rompimento da barragem da Vale/BHP/Samarco em Mariana lutam contra o encerramento das atividades de assessoria técnica independente (ATI) às comunidades.
A ATI responsável por atuar na região é a Cáritas Brasileira que, desde 2016, atua na reparação aos danos causados pelo crime socioambiental, informando e mobilizando a população atingida.
Uma nota pública da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF) afirma que, recentemente, a equipe da assessoria recebeu aviso prévio e, caso não haja intervenção das Instituições de Justiça (IJs), o trabalho encerrará no fim deste mês.
“Mais de oito anos após esse crime, nem as casas terminaram de ser entregues para quem teve seu território devastado. As famílias das comunidades rurais que tiveram suas áreas produtivas destruídas pela lama ainda continuam sem uma alternativa econômica. Nesse sentido, o acompanhamento técnico independente da Assessoria continua sendo, mais do que necessário, um direito nosso”, diz o documento.
As famílias relatam uma realidade de privação de direitos e falta de reparação integral. Para elas, o episódio que chocou o Brasil e o mundo em 2015 foi o início de uma série de violações que, até os dias de hoje, se aprofundam. Por isso, os atingidos reivindicam a permanência da ATI.
“Diante do cenário de morosidade na resolução dos danos causados e do não reconhecimento de diversos direitos das famílias atingidas, é notável um crescente aumento do quadro de adoecimento dessas famílias que esperam pela retomada das suas vidas, vivendo ainda de maneira provisória em Mariana”, relata a CABF.
Justiça pode intervir
O direito à assessoria técnica independente foi fruto de um intenso processo de mobilização das comunidades. Inicialmente, a previsão para o término da atuação era no fim de 2020. Porém, diante da grande demanda e dos impasses enfrentados para a efetivação da reparação, o prazo foi estendido e a equipe ampliada.
Em 2023, a redução do recurso financeiro destinado ao desenvolvimento das atividades das ATIs provocou uma significativa diminuição do quadro de profissionais. Ainda assim, a assessoria se reorganizou e garantiu a permanência no território.
Em fevereiro deste ano, foi apresentado um plano de trabalho com duração de dois anos. Após avaliação do Ministério Público, da Vale, Samarco e BHP, não houve consenso sobre a proposta, restando à vara federal tomar uma definição sobre a continuidade da atuação. No mês seguinte, a Justiça federal definiu pela continuidade do trabalho até dezembro de 2024.
Porém, uma nova decisão judicial retornou o processo para o âmbito estadual, o que pode inviabilizar a permanência da ATI.
“São oito anos nessa caminhada, na qual construímos muitas provas e a matriz de danos. É muito importante que isso continue. Os únicos que vão perder são os atingidos. É um cenário extremamente preocupante, porque, em termos de gestão de projetos, a gente não consegue se planejar em relação a nada a longo prazo”, lamentou Rodrigo Pires Vieira, um dos coordenadores da Cáritas.
Ele argumenta que é necessária a intervenção das Instituições de Justiça pela continuidade da atuação.
“O que percebemos é um aumento nas solicitações nas demandas das pessoas atingidas no acompanhamento de seus processos de reparação. A assessoria tem sido cada vez mais necessária. Se não vier uma decisão judicial que aprove nosso plano de trabalho e garanta a continuidade no território, a perspectiva é de mais uma vez a equipe ser colocada em aviso prévio”, alerta.
Críticas à Fundação Renova
A CABF ainda critica a atuação da Fundação Renova nos territórios. A entidade foi criada com base no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), firmado entre entes estatais e as empresas responsáveis pela barragem com objetivo de atuar na reparação dos danos causados pelo rompimento.
Porém, na avaliação da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão, a fundação é ineficaz, não trata as famílias com isonomia e despreza as demandas apresentadas pelas comunidades.
Para a CABF, a possibilidade de atuação da Renova sem a presença da ATI no território torna o cenário ainda mais preocupante.
“A Renova segue renovando o crime. Nos últimos anos, observamos um constante aumento do quadro de funcionários da Renova e suas terceirizadas, por outro lado, os processos de reparação vêm sendo cada vez mais lesivos aos atingidos. Quando executado sem o auxílio técnico por profissionais de confiança das famílias, pode haver erros irreparáveis”, destacou, em nota.
No fim do mês passado, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) também denunciou, nas redes sociais, a criminalização de famílias atingidas do distrito de Barra Longa, por parte da fundação. Segundo o MAB, elas manifestaram pacificamente pelo direito à reparação de moradias atingidas por obras da Renova e, como consequência, foram notificadas por liminar judicial.
“Mais uma vez, os papéis foram invertidos, as vítimas são reconhecidas como criminosas e o criminoso permanece impune. O MAB denuncia que, mais uma vez, a Fundação Renova criminaliza os atingidos que reivindicam seus direitos”, publicou o movimento.
Outras violações
Em audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), requerida pela deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT), os atingidos de Barra Longa relataram problemas com o abastecimento de água. Os moradores chegaram a levar uma garrafa plástica com água turva que, segundo eles, foi captada da torneira de uma das casas do distrito.
As famílias argumentam que, além da cor, o cheiro e gosto do líquido também são diferentes, gerando insegurança quanto a qualidade da água e medo de contaminação.
O outro lado
Procurada pela reportagem para comentar sobre as denúncias, a Fundação Renova afirmou que “a reparação começou logo após o rompimento da barragem de Fundão”. Segundo a entidade, “foram solucionados 544 casos de restituição do direito à moradia e outros 165 já têm solução definida”. A fundação ainda destacou que a bacia do Rio Doce tem pontos de monitoramento que permitem “acompanhar, desde 2017, sua recuperação”.
Edição: Leonardo Fernandes
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Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil