Greve! O país e a universidade por que lutamos

Durante mais de um ano, governo ignorou as tentativas de diálogo dos professores e técnicos. A causa não foi má vontade — mas o sequestro do Estado e da Educação pelo rentismo em suas distintas modalidades. Lula pode romper este script. Estará disposto?

Por Felix Santos e Paulo Rubem Santiago, em Outras Palavras

A população brasileira assiste, neste momento, à maior greve do setor da educação federal da história do movimento sindical brasileiro. É uma greve dos docentes das universidades (62 das 69 instituições de ensino superior, IFES) e dos institutos federais de educação tecnológica (mais de 560 campi, dos 682 campi dos IFETs) e é também uma greve dos técnicos administrativos em educação, TAEs, destas mesmas instituições. Este movimento de paralisação não aconteceu de repente, houve várias tentativas de negociação, sem que o governo apresentasse qualquer resposta.

O sindicato nacional dos docentes, Andes-SN, tentou por 17 vezes, desde o ano passado, conversar com o governo, tendo protocolado em todos estes momentos a sua pauta de reivindicações sem sucesso. As outras entidades representativas dos docentes dos EFTs e dos TAEs fizeram o mesmo. O governo só abriu a mesa de negociações em 7 de Fevereiro deste ano, no dia exato em que os TAEs inauguraram seu Comando Nacional de Greve. Portanto, foi uma greve iniciada após exaustivas e infrutíferas tentativas de conversar com o governo.

Darcy Ribeiro dizia que “a crise da educação brasileira não é uma crise, é um projeto”. Isto era uma verdade no ano de fundação do Andes-SN (ainda como Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior e, mais tarde, como Andes – Sindicato Nacional) e continua verdade, hoje, 43 anos e 22 greves depois, ao longo de governos de diferentes cortes ideológicos. O leitor é convidado a percorrer todos estes movimentos de paralisação dos docentes das IFES, com suas reivindicações, durações e resultados na página do Andes-SN. Através deste passeio por uma história de mais de quatro décadas, é possível perceber que a crise observada hoje no sistema federal de educação é um projeto. Desde o final da ditadura militar, até hoje, este projeto foi se aperfeiçoando e ganhando contornos mais perceptíveis a partir da década de 1990, agora colocando as universidades federais como um alvo dentro da política mais geral do Estado Mínimo (EM), no bojo das transformações sociais, econômicas e ideológicas neoliberais. Desde o início, o neoliberalismo entendia muito bem que as principais formas de reduzir a escola pública às cinzas era rebaixando salários dos trabalhadores e os recursos de custeio e financiamento das suas instituições. Através de uma série de mecanismos de cooptação e de legislações, o neoliberalismo conseguiu inserir esta prática como uma atitude contínua do Estado brasileiro, parcialmente independente do governo de plantão. Hoje, é possível identificar três vertentes principais empregadas pelas forças políticas e econômicas neoliberais para capturar as ações do Estado brasileiro na educação e em várias outras áreas, como a saúde e a seguridade social, por exemplo.

A primeira vertente é a institucionalização da dívida pública na legislação brasileira, estabelecendo determinações para que o Estado coloque o pagamento de seus juros e amortizações à frente dos investimentos em educação, saúde, ciência e tecnologia, desenvolvimento urbano, entre outras áreas vitais para o desenvolvimento do país, limitando-os ainda a um teto de gastos. Além disso, não há qualquer limite para crescimento da dívida como proporção do PIB ou para o pagamento destas obrigações. Mas hquaisá algo ainda pior: desde 1997, tem sido imposto um expressivo volume de operações de crédito para assegurar o mero refinanciamento do estoque da mesma dívida, sequestrando-se assim o futuro das novas gerações. Recentemente, mais um descalabro foi aprovado pelo Congresso Nacional (Projeto de Lei Complementar PLC 459/17), possibilitando a emissão de papeis do governo com sequestro de parte do orçamento para sua garantia. Assim, todo o esforço do país fica centrado na produção de superavits primários somente para pagamento de juros da dívida pública, que só faz crescer, afogando continuamente toda atividade do Estado em suas obrigações constitucionais com o investimento produtivo e com a população. Trata-se de uma máquina de produção de renda para os super-ricos alimentada pela execução do orçamento público, ou seja, com nossos impostos.

A segunda vertente é a da terceirização dos serviços públicos. A terceirização é estimulada e mesmo forçada a ocorrer no serviço público pela extinção de cargos de um lado e, de outro lado, pela colocação de outros cargos em desnecessidade, tornando-os assim, impedidos para provimento através de concursos públicos. Estes dois processos (extinção e disposição em desnecessidade de cargos públicos) já ocorrem em larga extensão nas universidades públicas, chegando em certos casos a tornar indisponíveis para concurso público cerca de 85% de todos os cargos existentes. Ou seja, ao invés das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) possuírem seu próprio pessoal especializado segundo suas necessidades, para a maioria dos cargos a única via é a terceirização, que é muito mais cara do que o provimento dos cargos de carreira. Por exemplo, se a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), desejando cumprir com a legislação vigente, precisar fornecer assistência adequada a algum estudante cego empregando brailistas, ela deverá terceirizar o serviço, porque este cargo foi colocado em desnecessidade. Para se ter uma ideia da extensão deste problema, o governo anterior, em um único dia, extinguiu 27.611 cargos (mais de dez mil destes cargos são de agentes de saúde pública), para os quais não se podem mais fazer quaisquer concursos para o seu preenchimento. A greve de docentes neste momento é dedicada a corrigir apenas parcialmente estes efeitos negativos de uma política de desprestígio da educação federal agravada nos últimos seis anos.

A terceira vertente é a pressão de segmentos poderosos do mercado financeiro para que os direitos universalizados de acesso à educação, saúde e seguridade social de qualidade, garantidos na Constituição, sejam reduzidos ou mesmo deixem de ser garantidos. As sucessivas reformas da Previdência Social pública (desde 1993 já houve sete reformas) e os recentes ataques aos mínimos de investimento público em educação e saúde em todos os três níveis de governo produzem um ambiente de deterioração e negligência com a atuação do Estado na garantia daqueles direitos. Além de tudo, se estas investidas tiverem sucesso, o futuro da educação, da saúde e da seguridade social públicas será no mínimo trágico.

Para localizar o efeito desta pressão ao longo do tempo, de 2013 a 2023, o orçamento discricionário das IFES, corrigido pelo IPCA, caiu 55,33%, sendo que a parte correspondente a investimento caiu 93,14%. O salário de um professor titular com doutorado em regime de dedicação exclusiva, de 2014 a 2024 (já considerando o aumento de 9% fornecido pelo governo no ano passado) caiu 26,59%.

Pelo fato de esta situação ocorrer como política de Estado no Brasil, independentemente de quem está no governo, é o que faz a greve ser tão frequente. Ela é a única forma que os trabalhadores em educação, assim como qualquer outro trabalhador, possuem para reduzir a precarização acentuada na educação pública federal. Nós somos trabalhadores como os metalúrgicos o são. É evidente, pelos elementos listados acima, que estamos nos contrapondo ao capital improdutivo alimentado pelos juros da dívida pública, que está aos poucos capturando porções cada vez maiores do orçamento público para a produção de sua renda. Aparentemente, os interesses do capital estão tão enraizados na máquina do Estado, que o nosso patrão acaba sendo um misto híbrido de governo e capital. Nós negociamos com o governo, que, por dentro do Estado, negocia com o capital – e seus representantes no Congresso e na própria máquina do Estado – a abertura de espaço no orçamento para a educação federal.

Para confundir ainda mais o entendimento da atuação do Estado na educação federal, as dificuldades orçamentárias são colocadas com vieses relevantes, frequentemente, confrontando recursos de uma área social contra outras. Isto torna-se uma falácia, porque, na verdade, todo o investimento público é afetado na pulsão de produzir renda para o capital. No entanto, mesmo dentro daquilo que sobra do orçamento, as forças políticas e econômicas do capital avançam para desviar recursos para vários setores econômicos poderosos. Exemplos não faltam. A evasão fiscal no Brasil é estimada em cerca de 8% do PIB, ou seja, algo próximo a um trilhão de reais, estando centrada no Sul e Sudeste. A renúncia fiscal prevista no projeto de lei da LDO para 2025 ultrapassa 640 bilhões e somente os grandes devedores do Rio de Janeiro e de São Paulo contribuem com quase 500 bilhões de reais de estouro nas contas do governo. Vale salientar que várias destas renúncias fiscais não se justificam, como, por exemplo, os incentivos para a indústria automobilística e a renúncia do imposto de exportação do agronegócio, dois dos mais competitivos setores da economia mundial. Mas, tamanho poder econômico encontra certamente quem os defenda dentro do Estado, dentro dos governos, dentro do Congresso e, também, no jornalismo econômico brasileiro.

Como pode ser visto pelo relato acima, os docentes das IFES e IFTs não fazem greve por fazer. Eles, além de terem que trabalhar em condições extremamente precarizadas, devem repor cada minuto de aula não dada durante a greve. Isto significa, frequentemente, prejudicar seu tempo livre para atividades extras e mesmo suas férias. Quem se dispuser a visitar as instituições federais de educação superior do Brasil, poderá conhecer a complexidade das relações que qualquer uma destas universidades possui com a comunidade extra-acadêmica em várias escalas de tempo e espaço. Por exemplo, lembrem-se que na pandemia foi na universidade pública que se encontraram os profissionais para orientar a sociedade em como proceder e como produzir e aplicar vacinas. É na universidade pública que são feitos todos os processos de desenvolvimento científico que nos permitem adotar ou usufruir do uso de novas tecnologias. É na universidade pública, através de seus serviços de assistência médica, odontológica, fisioterapêutica e de ensino no primeiro e segundo graus, que são formados grande parte dos melhores profissionais. Há uma rede de pesquisa científica e troca de informações que interliga todas as nossas universidades entre si e com outras universidades espalhadas pelo mundo, conectando não somente saberes, mas também culturas, ajudando a difundir a solidariedade e paz entre os povos.

Possuindo relações tão profundas e complexas com as sociedades a nossa volta, torna-se interessante a pergunta de um certo jornalista de economia: “por que o governo demora dois meses para se preocupar com esta greve ?” Talvez seja porque setores poderosos da economia se preocupam mais em justificar sua atuação predatória e especulativa junto ao capital do que em mostrar para a população como estão ameaçados os seus serviços mais essenciais e importantes, como a educação, a saúde e a seguridade social.

 

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