A parteira da história. Por Flávio R. Kothe

As antigas potências coloniais europeias se tornaram, desde 1945, colônias de uma ex-colônia britânica e, atualmente, estão sendo superadas pelo mundo multipolar

No A Terra é Redonda

Se a violência é a parteira da história e escorre sangue quando uma nova era está sendo parida, isso significa não só que é preciso repensar o pacifismo como uma forma de conservadorismo. Há situações em que é preciso não recuar mais, para não ser destruído. Um governo popular não imaginar que oligarquias não possam tentar tomar o poder até mediante um golpe de Estado é não ter a cautela suficiente para, mais que se manter no poder, preservar e implantar os valores que o fizeram chegar ao governo.

Estar no governo não é necessariamente ter poder. Quem perde o poder é condenado pela história, seja como vilão, incompetente ou indigno de ser lembrado. Ele não será lembrado como alguém que perdeu o poder por méritos. Quem se mete em política tem de assumir que nela imperam regras outras que não as de um cerimonial palaciano.

Se um político em alto cargo se deixa derrubar por não se precaver dos inimigos e não perceber punhais que se escondem em sorrisos de supostos aliados, ele não se mostra digno da causa que diz representar. Pode abdicar alegando que teria pretendido evitar derramamento de sangue, mas acaba apenas postergando sangrias maiores, destruições ainda mais perversas.

Sim, deve-se tentar resolver o que se puder com negociações e diplomacia, mas se deve saber que o inimigo armado não vai hesitar em usar todas as armas de que dispõe. A guerra não é apenas a continuação da política por outros meios: a política já é uma guerra cotidiana. Que a maioria negue isso está de acordo com a tendência geral ao negacionismo.

Guerra não é apenas militar, como algo distante, em outros povos. Há lutas locais, negadas como guerras, mas que atingem os moradores. Há, todavia, uma guerra digital mundial, conduzida por transnacionais sígnicas, que nos afeta diariamente. Há genocídios de neurônios a cada dia. Não perceber isso significa, apenas, que se é mais afetado por ela do que se consegue suportar. Temos de reaprender a pensar para começar a pensar sob novos fundamentos.

Há uma terceira guerra, que é mental, aquela que faz o colonizado bater continência para a bandeira do povo senhorial. Essa atitude – de fácil caricatura em políticos toscos – está tão presente dentro da universidade brasileira que nem sequer é percebida. Em vez de pensar a partir de problemas, para os jovens “pensadores” só autores das metrópoles é que delimitam o que pensar: tomados como referência, são sóis para que se “reflita” na colônia (que diz ser soberana, sem ser).

Não se está propondo aqui ignorar o que autores europeus ou norte-americanos publicaram: o problema está em supor que eles são a dimensão do que se possa considerar ciência, filosofia ou arte, quando o fato de quererem controlar outros países escondendo essa ânsia de dominação faz com que não consigam aprofundar o próprio pensamento. Há pontos que eles não ultrapassam. O ponto de vista deles não é o nosso.

A atual guerra na Ucrânia está revelando tal evolução das armas de guerra que se pode supor que a soberania de um país reside mais em universidades, laboratórios de pesquisa e fábricas do que nos quartéis e nos soldos dos militares. Para um país ser soberano, não bastam hasteamentos de bandeira, hinos nacionais, discursos patrióticos. Não basta soberba para ser soberano: é preciso assumir fatos e pensar por si. Ser diferenciado faz diferença. Livre-pensar é apenas pensar: sem liberdade interior não há pensar.

A consciência crítica do século XIX tanto aceitou, não só com Marx e Engels, que a guerra é a parteira da história quanto aceitou com Darwin que o homem é um primata supostamente sábio (homo sapiens) e com Nietzsche que todo ser vivo acaba morrendo, por mais que procure escamotear isso. Não haverá consciência se ela não for crítica, não há crítica que não obrigue o sujeito a negar o que pensava e se reconstruir desde dentro. Não é por admitir fatos banais que se atinge um estágio superior: ao homem dito mediano basta preservar precárias condições de existência como se fossem o paraíso.

Nossa primeira casa é o útero materno, depois estamos todos abrigados na grande morada que é a natureza, a que nos fornece abrigo e alimento, mas em geral é maltratada como se fosse o útero estéril de uma bruxa. Ela há de ser, também, nossa última morada. A quem lhe dá pão e vinho, o ser dito humano responde com a devastação das superfícies, como se ele fosse um câncer da pele, e, ao arrancar petróleo das entranhas da terra, espalha a devastação pelos ares, afeta a temperatura do planeta, prejudica a vida de animais e plantas.

O que é o homem? Ele não é aquela maravilha a ser admirada pelas maravilhas que faz, conforme pregava o sacerdote Sófocles; também não é uma criatura divina, como o Gênesis judaico e suas variantes posteriores apregoam, pois ele é antes “demoníaco”. Ele não é o “homo sapiens” que tenha na sabedoria a sua diferença, pois o que a maioria demonstra é que ela não se inclui na espécie. Pretender que ele é um “animal racional” ainda parte da animalidade, buscando uma diferença que seja a negação de todos os não-humanos (como se nenhum tivesse qualquer forma de “razão”) e colocando uma exigência que a maior parte dos humanos sequer cumpre (e talvez nem precisem, já que boa parte das decisões são tomados por motivos afetivos).

O homem também não é mera “vontade de poder”, já porque poder é ânsia de dominar outros por se ser dominado pelo que não se sabe. Vontade é um conceito que simplifica demais as forças e repressões que aí interagem. Reduzi-la a desejo é mero eufemismo.

Não se sabe o que é o homem. Ele mente para si e mente para outros, mas acredita que sejam verdades as mentiras que ele repete como se verdades fossem. A mentira é contagiante: se outros, seus “iguais”, dizem e agem como se certas fantasias fossem verdades, então é fácil, e conveniente, aderir a palavras e atos de ritos e mitos. Seria demente crer no que proclamam, mas é considerado demente quem não acompanha “o coletivo”.

Será preciso construir pela cidadania um cidadão mais digno. Os direitos do cidadão são mais importantes que os do Estado: estes derivam daqueles. O homem não é, porém, apenas um “zoon politikon”, um animal político, pois qualquer animal que viva em bando precisa aprender a respeitar a hierarquia que nele impera para sobreviver.

O que diferencia o homem? Ele é uma espécie diferenciada de primata, sim, pois faz coisas que chimpanzés, gorilas e bonomos não conseguem, embora eles sejam também capazes de atos que nem Tarzan faria. O homem é capaz de destruir a natureza, sim, mas é também o mais capaz de a reconstruir e proteger espécies ameaçadas. Antes de construir, ele destrói.

Ainda precisa aprender a conviver com a natureza e construir habitações dignas, algo mais que “Minha casa, minha vida”, sem que sejam palacetes em que o dono, ao se exibir como melhor que os outros, já se mostra inferior. O homem só vai se respeitar se souber respeitar a natureza. A sociologia precisa ser superada pela ecossociologia.

O horizonte dominante no país supõe que a mente divina seria O Ser, no qual estaria presente a essência de todos os entes. A escolástica de Aquino se desviou aí de Aristóteles, que dizia que não há um ente que possa ser todos os entes. Cada ente é o que é por não ser o que outro é. Um não pode ser o ser de outro. Não é lógico que um ente possa ser todos os entes e tenha sua identidade por conter a identidade de todos.

Na alegoria se tem, no entanto, o aceno de que nisso que nos aparece há algo mais, diferente, do que sua fachada encena.[i] Como é que algo pode ser outro? Como algo diferente vibra no interior de um ente? Como podemos discernir esse outro? Ou seja, como fazer a leitura alegórica da alegoria? Na sobreposição do valor de troca sobre o valor de uso, quem compra a mercadoria acredita que está recebendo mais do que paga, a publicidade procura construir fetiches, auratizando artigos e pessoas. Não se pode ignorar o que Marx, Freud, Benjamin, Adorno, Jameson e outros escreveram sobre essa temática, mas temos de avançar.

Não pensa quem não pensa adiante. Que as metrópoles coloniais não respeitem o pensamento que surge no que querem que sejam seus quintais, isso é arrogância delas, mas ela já vai sendo superada pela história. As antigas potências coloniais europeias se tornaram, desde 1945, colônias de uma ex-colônia britânica e, atualmente, estão sendo superadas pelo mundo multipolar.

Não se pode mais aqui pensar apenas em termos de repetir o que autores das metrópoles ditaram. A história está tratando de modificar os parâmetros vigentes.

*Flávio R. Kothe é professor titular aposentado de estética na Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Alegoria, aura e fetiche (Editora Cajuína).

Nota

[i] Kothe, Flávio R. Alegoria, aura e fetiche, livro de ensaio, ISBN 978-65-85121-36-1, Cotia, Editora Cajuína, Série Leituras, 2023, 184 páginas.

Ilustração: Mihai Cauli

 

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

dezenove − 17 =