PL 2.338/23 é criticado por bolsonaristas, com apoio de big techs que dizem que legislação dá “direitos demais”
Por Laura Scofield | Edição: Ed Wanderley, em Agência Pública
De um lado, bolsonaristas tentam derrubar o Projeto de Lei (PL) 2.338/2023, que regula a inteligência artificial (IA) no Brasil; do outro, empresas de tecnologia buscam convencer os senadores de que o projeto garante direitos demais. É nesse contexto que o projeto de lei da IA será analisado pela Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial (CTIA), no Senado Federal, nos próximos dias, após audiências públicas sobre o assunto realizadas na casa de 1º a 3 de julho.
O PL de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), já teve uma primeira versão do relatório final apresentada pelo relator, Eduardo Gomes (PL-TO), e aguarda votação na CTIA após ser alvo de mobilizações contrárias nas redes sociais, sob argumentos de censura – parte deles repete o discurso usado durante o debate do PL 2.630/20, conhecido como PL das Fake News. A votação foi adiada duas vezes em junho.
Por que isso importa?
- Legislação pode limitar o alcance e o uso dos dados privados de brasileiros por grandes empresas de tecnologia e definir os responsáveis por arbitrar eventuais abusos no uso de inteligência artificial.
Uma das influenciadoras que lideraram a campanha contra o projeto de IA foi Bárbara Destefani, do canal Te Atualizei. No dia 11 de junho, ela publicou um vídeo no qual afirmou que o PL poderia “dar ao governo federal o controle da distribuição da informação”, já que classifica os algoritmos de recomendação das redes como elementos de risco em sistemas de IA. Destefani é alvo de inquéritos do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre notícias falsas relacionadas ao processo eleitoral. A hashtag #PL2338Nao ficou entre os assuntos mais comentados da plataforma X naquela semana.
Para Rafael Zanatta, diretor da Associação Data Privacy Brasil, o argumento de censura “não se sustenta”, pois a análise do risco dos algoritmos caberá ao Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial(SIA), um “órgão de natureza técnica, não de governo”, proposto pelo PL para coordenar a aplicação da regulação e sua atualização.
O PL 2.338 propõe que o SIA seja composto de uma autoridade coordenadora, órgãos e entidades públicas federais e um Conselho de Cooperação Regulatória de Inteligência Artificial. Depois de uma disputa entre órgãos como a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) foi formalizada como coordenadora do sistema.
A ANPD é uma autarquia de natureza especial, ou seja, é dotada de autonomia técnica e decisória, e não é subordinada hierarquicamente a ministérios ou à Presidência. Em entrevista à Agência Pública antes da formalização da coordenação do SIA, a diretora Miriam Wimmer defendeu a escolha da autoridade para a função em razão da “sinergia [da regulação de IA] com a legislação de proteção de dados”. “A ANPD está bem posicionada para receber atribuições adicionais, desde que, é claro, também ocorra um fortalecimento institucional, porque aumentar o escopo também significa aumentar a musculatura da autoridade”, afirmou.
Nesta terça-feira (2), a ANPD determinou a suspensão cautelar do tratamento de dados pessoais para treinamento da IA da Meta, que entrou em vigor em 26 de julho, porque teriam sido encontrados “indícios de tratamento de dados pessoais com base em hipótese legal inadequada, falta de transparência, limitação aos direitos dos titulares e riscos para crianças e adolescentes”.
De acordo com o vice-presidente da CTIA, senador Marcos Pontes (PL-SP), o PL 2.338 pode ser votado pela comissão ainda nesta semana. A audiência pública que ocorreu na última segunda-feira (1) para abordar o projeto visava “debater a categorização e avaliação de riscos em sistemas de IA”, mas Pontes repetiu várias vezes que o “maior risco é o excesso de proteção contra riscos”. O prazo final para o encerramento dos trabalhos do grupo, já prorrogado duas vezes, é dia 17 de julho.
Em entrevista à Pública, o relator Eduardo Gomes disse que pretende apresentar no novo texto “as contribuições finais para aquilo que já foi estudado, divulgado e discutido”, mas não quis dar detalhes sobre o que pode mudar na próxima versão. De acordo com ele, o PL será votado na próxima quinta-feira (4).
“Eu tenho certeza, vamos chamar assim, que o Eduardo, nosso relator, vai prestar atenção e retirar do texto qualquer tipo de coisa que possa trazer risco à nossa liberdade, e não colocar na mão de algumas pessoas a definição do que é certo, do que é errado ou do que é verdade, do que é mentira”, afirmou o ex-ministro da Ciência e Tecnologia no governo Bolsonaro.
Menos direitos e mais tempo
Além das pressões bolsonaristas, empresas de tecnologia têm atuado no Congresso e defendido que o PL 2.338, como está, garantiria direitos demais aos cidadãos e, ao estabelecer muitos deveres às empresas, estaria prejudicando a capacidade de inovação do setor de IA.
O senador Marcos Pontes e organizações que representam interesses de empresários do setor defendem uma regulação que estabeleça apenas princípios, em vez de regramentos restritos sobre o uso de IA. Presentes na audiência pública no Senado argumentaram que garantir o desenvolvimento tecnológico do setor deveria ser o foco de uma regulamentação de IA.
“A gente já tem impactos por milésimo de segundo da inteligência artificial, e o Congresso tem que regular para as pessoas terem o mínimo de conhecimento, por mais liberdade que [se] tenha na rede”, afirmou o relator Eduardo Gomes em entrevista à Pública. Questionado sobre o pleito das empresas de tecnologia por uma regulação mais principiológica, disse que “passem sugestão de texto, aquilo que for consistente, que tiver apoio da maioria, vai ser aproveitado”.
“O cenário posto é um convite à criação de direitos, deveres e obrigações e, muitas vezes, com o desprestígio de inovação e desenvolvimento tecnológico. E aí, nesse exercício, a gente tem, de fato, uma interferência, me parece, verticalizada, muito assertiva para a criação de direitos e poucas inovações, e poucos incentivos para que a gente possa verdadeiramente desenvolver a tecnologia de inteligência artificial no Brasil”, argumentou Marcelo Almeida, diretor de relações institucionais e governamentais da Associação Brasileira das Empresas de Software (Abes). “Acredito que o melhor lugar para a regulação da inteligência artificial seja o tempo, a paciência”, disse Mateus Costa-Ribeiro, fundador da Startup Talisman IA.
Muito além dos riscos
De acordo com Rafael Zanatta, “a ideia de regulação do risco é o eixo central” da legislação da União Europeia sobre IA, que serviu de inspiração para a equipe de juristas brasileiros que elaborou a primeira versão do PL, apresentada por Rodrigo Pacheco.
“A terceira onda de leis do Sul global, que tem Brasil, Índia e outros países, também tem uma conexão muito forte com essa ideia de que certos tipos de riscos produzidos por sistemas de IA vão ser classificados como inaceitáveis e algum grau de obrigação deve ser colocado para as empresas”, explicou.
Em outubro de 2021, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 21/20, um “marco legal para uso da inteligência artificial” baseado em princípios, como o defendido pelas empresas de tecnologia. Na Câmara, quem relatou o projeto foi a deputada Luísa Canziani (PSD-PA), que, pouco depois, se tornou presidente da Frente da Economia Digital.
A frente teve como secretaria executiva, até agosto de 2023, o Instituto Cidadania Digital (ICD), que, de acordo com reportagem do The Intercept Brasil, foi registrado com dados de uma organização de lobby das big techs e era financiado por algumas delas. Outra reportagem do Intercept mostrou que o senador Marcos Pontes omitiu que convidados por ele para as audiências públicas desta semana representavam essas empresas. O senador foi um dos participantes de uma viagem, em março, a companhias de tecnologia nos Estados Unidos. Levantamento do Aos Fatos mostrou que os parlamentares que foram à viagem foram campeões de emendas ao PL que visa regular a IA no Brasil. A Pública também já mostrou a influência do Google na CTIA.
Após a votação do PL 2.338/2023 na CTIA, se aprovado, o projeto será encaminhado ao plenário do Senado Federal. De acordo com o secretário da comissão, é possível que o texto seja apreciado no plenário ainda na semana que vem, visto que Pacheco, autor do projeto, teria interesse em sua tramitação antes do recesso parlamentar.
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Vice-presidente da CTIA, senador Marcos Pontes (PL-SP). Edilson Rodrigues/Agência Senado