O uso do corpo de meninas, mulheres e pessoas que gestam como moeda de troca política

Nas redes sociais, os políticos da extrema-direita utilizam o debate em torno do PL n. 1904/24 para construir a ideia de uma luta contra o mal e empreender uma verdadeira cruzada antiaborto

Elaine Gomes e Vanessa Guimarães, Le Monde Diplomatique

Após pressão da sociedade civil, principalmente dos movimentos feministas, o Presidente da Câmara dos Deputados recuou momentaneamente quanto à suposta urgência na tramitação do Projeto de Lei n. 1904/24. O texto restringe a aplicabilidade das hipóteses legais de interrupção da gestação existentes no Brasil: gravidez decorrente de estupro, risco de vida à gestante e casos de anencefalia.

O PL n. 1904/24 cria uma aberração social e jurídica ao tentar estabelecer pena, ou seja, punição direta para as vítimas de estupro que escolherem acessar o direito, estabelecido no Código Penal, de interromper a gravidez. O texto desconectado da realidade social brasileira compara uma das hipóteses legais de interrupção da gestação ao crime de homicídio oferecendo uma resposta criminalizante e encarceradora a uma questão de saúde pública.

Chama atenção a expressão “viabilidade fetal”, presumida em gestações acima de 22 semanas. Pois a presença da expressão possibilita a interpretação de que este projeto de lei não se limite a criminalizar o aborto legal praticado acima de 22 semanas, mas em qualquer etapa da gestação caso seja reconhecida a viabilidade do feto. O que aumenta o retrocesso trazido pelo texto.

No campo dos direitos sexuais e reprodutivos, a situação é brutal para meninas e mulheres. A OMS aponta 39 mil mulheres e meninas morrem por ano em todo mundo, em decorrência da prática de aborto inseguro. No Brasil, as interrupções inseguras estão entre as cinco principais causas de mortalidade materna.

Dados do Atlas da Violência (2024) aponta que meninas de até 14 anos são as vítimas mais frequentes de violência sexual. O estudo demonstrou que na faixa dos 10 a 14 anos, 49,6% das meninas sofreram violência sexual, sendo os principais algozes homens que participam da dinâmica familiar, como pais e padrastos.

A dinâmica intrafamiliar dos estupros ocasiona demora na identificação das gravidezes. A fixação de um marco temporal gestacional e da viabilidade do feto como critérios de aferição penal cria obstáculos de acesso a interrupção legal da gravidez obrigando as meninas a uma maternidade compulsória, ou seja, um processo de tortura física e psicológica.

Registre-se ainda que conforme dados do Instituto Patrícia Galvão (2022) 87% dos brasileiros acreditam que é direito da vítima de estupro decidir se deseja interromper a gravidez e 3 em cada 4 mulheres gostariam de ter o direito de interromper a gravidez caso fossem vítimas de estupro.

No conto de aia do Poder Legislativo brasileiro, aquela que praticasse o aborto legal teria pena. E pena maior do que aquele que pratica o estupro de vulnerável. Fato que até em análises fundadas no senso comum demonstra no mínimo incoerência, mas, sobretudo, violência no controle dos corpos das mulheres, meninas e pessoas que gestam.

A comparação de penas nos debates públicos imediatamente abriu espaço para que políticos reacionários e punitivistas, entre eles o autor do projeto de lei, cogitassem aumentar a pena nos crimes de estupro para a suposta resolução do conflito social. Resolução tão equivocada quanto o texto inicial do projeto proposto. O grande problema do PL n. 1904/24 é criminalizar meninas, especialmente, negras e pobres, o que significa a materialização jurídica do ódio.

A forte pressão social fez com que o autor do projeto cogitasse outra alteração no texto inicial que merece ser questionada. O veto ao aborto legal viria sob a imposição de uma pena para os profissionais de saúde que realizassem o procedimento de interrupção da gravidez. Observa-se que a proposta é tão cruel quanto a do texto inicial, pois, indiretamente, inviabiliza o aborto seguro.

Não é trivial criminalizar os profissionais da saúde que realizarem o aborto legal, isso impede que milhares de meninas e mulheres possam ter assistência médica adequada e acesso a políticas públicas reprodutivas.

Não há conserto possível para o texto do PL n. 1904/24 capaz de preservar a dignidade humana, pois os parlamentares não estão comprometidos com o acesso à saúde pública, o combate à violência e o acesso a contraceptivos. Não há melhor descrição para a situação do que o slogan “nem presa, nem morta”.

É preciso destacar que as ações do Presidente da Câmara dos Deputados e de políticos reacionários usam o corpo das meninas, mulheres e pessoas que gestam como moeda de troca política. Estamos diante de um jogo de poder entre o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário, de olho no controle político de posições importantes na Câmara dos Deputados e nas futuras eleições. Neste jogo, a vida de meninas, mulheres e pessoas que gestam é colocada em risco, em nome de uma falsa proteção à “vida”.

A estratégia de acionar um tema que causa pânico moral e de pautar um projeto de lei relativo a direitos sexuais e reprodutivos é conhecida, dessa vez, ainda associada a inflação de leis penais. Percebe-se que o que está em jogo não é a defesa da vida e, menos ainda, um debate público sério em prol da coletividade ou da saúde pública.

A postergação da tramitação do PL n. 1904/24, para o 2º semestre, retira a pressão social dos políticos para as eleições municipais. Contudo, continua sendo uma “carta curinga na manga” do Presidente da Câmara no aceno político à extrema-direita e, ao mesmo tempo, uma “faca no peito” de mulheres, meninas e pessoas que gestam.

Importante lembrar dois pontos para entender o processo de implosão do sistema democrático em curso: o impacto dos discursos de ódio nas redes sociais associados a campanhas políticas e os ataques à legitimidade institucional do Supremo Tribunal Federal (STF).

A disputa eleitoral municipal se aproxima e a exploração de “pautas bomba morais” gera engajamento nas redes sociais. Partidos e políticos vão explorar a repercussão do PL n. 1904/24 com suas bases eleitorais. A exploração do pânico moral gera capital político em nichos específicos e ocupação de espaços decisórios nas prefeituras e câmaras municipais. Passo preparatório para as eleições de 2026.

Nas redes sociais, os políticos da extrema-direita utilizam o debate em torno do PL n. 1904/24 para construir a ideia de uma luta contra o mal e empreender uma verdadeira cruzada antiaborto. Isso é um instrumento de chantagem política para desmoralizar publicamente aqueles que forem contra o PL n. 1904/24, associando-os a inimigos da moral, da família e dos bons costumes.

A necessidade de regulação das redes sociais torna-se premente para que as próximas eleições não sejam manipuladas por projetos de desinformação, tornando o processo eleitoral controlado por um cabresto midiático e informacional. Todavia, ao contrário do PL n. 1904/24, a Câmara dos Deputados engavetou o texto do PL n. 2630/2020 (conhecido como PL das Fake News), ao criar um grupo de trabalho para discutir um novo projeto.

Por outro lado, a reação do Poder Legislativo frente a decisões recentes do Poder Judiciário, sobretudo as decisões do STF, configura um contra-ataque político à atuação da Corte Constitucional na preservação dos conteúdos protetivos dos direitos humanos e fundamentais (efeito backlash). O Poder Legislativo tem servido como instrumento para a implementação de medidas agressivas que impedem o acesso a um solo comum de direitos humanos a grupos vulnerabilizados.

Recentemente, o STF suspendeu a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proibia médicos de realizarem a chamada assistolia fetal, um procedimento usado nos casos de aborto legal decorrentes de estupro. A Corte Constitucional ao analisar a resolução afirmou que o CFM ultrapassou a lei e a Constituição ao impedir a realização da “assistolia fetal” em gravidezes acima de 22 semanas, o que atingia a interrupção da gestação permitida por lei.

Destaca-se que se trata de um caso de judicialização da política, que em nada se confunde com ativismo judicial. Visto que o CFM criou resolução contrária ao direito prestacional de acesso à saúde pública nos casos de interrupção da gestação permitida pelo Código Penal (1940). Contudo, a reação de um Poder Legislativo não tardou. Alguns meses depois, ocorreu a votação para a tramitação do PL n. 1904/24 em regime de urgência, que durou 24 segundos.

Os ataques para a implosão do sistema democrático são inúmeros e se caracterizam por medidas de exceção, lentas e graduais. É possível citar, por exemplo, a instrumentalização do regimento interno da Câmara dos Deputados e o obstáculo ao debate público nas Comissões temáticas. Portanto, é necessário colocar foco sobre os políticos que atuam contra a atividade parlamentar. Políticos que reiteram a ação de legislar contra a CRFB/88 e contra o desejo da sociedade devido a interesses políticos, financeiros e religiosos, ou seja, pessoais.

É preciso considerar ainda que a existência de vícios formais no processo de formação da lei infraconstitucional e de vícios materiais, ou seja, inconvencionalidade e/ou inconstitucionalidade no conteúdo do projeto de lei, geram a possibilidade de judicialização. O conteúdo do projeto de lei é contrário à legislação internacional e constitucional de proteção aos direitos das crianças e das mulheres, tornando inevitável a realização de controle de convencionalidade e de constitucionalidade pelo STF.

É fundamental questionar, portanto, em que medida o Poder Legislativo deseja e age, intencionalmente, para a transferência do ônus político e social para o STF, que em caso de vícios formais ou materiais deve interferir em atos legislativos e administrativos que se oponham aos parâmetros constitucionais e convencionais.

O corpo das meninas, mulheres e pessoas que gestam não é moeda de troca política. O PL n. 1904/24 deve ser arquivado e suas propostas rechaçadas socialmente. Sem esquecer dos políticos reacionários que atuam contra a democracia e que devem ser constrangidos a cumprir a CRFB/88 e não mais eleitos ou reeleitos.

Elaine Gomes é advogada. Mestre em Direito pela Universidade Federal do estado do Rio de Janeiro (UFRJ). Especialista em Direito Público e Privado pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).

Vanessa Guimarães é advogada especializada em Direito Público e Privado pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Membra da Comissão Popular de Direitos Humanos do estado do Rio de Janeiro (CPDHRJ).

 

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

9 − cinco =