Ação afirmativa deve ser acompanhada de políticas para permanência de estudantes trans no ensino superior e acesso ao mercado de trabalho
A adoção de um sistema de cotas específico para pessoas transgênero nas universidades públicas é ferramenta importante para garantir a inclusão desse grupo, e as instituições de ensino podem ofertar as vagas diretamente, com base no princípio da autonomia universitária, previsto no art. 207 da Constituição Federal. Esse é o entendimento da Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação (MEC), em resposta à nota técnica expedida pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) sobre o direito de acesso à educação e ao mercado de trabalho para pessoas trans Brasil.
O posicionamento do MEC destaca ainda que, além de possibilitar o ingresso na universidade, é preciso desenvolver políticas públicas e ações afirmativas que garantam aos estudantes os meios de continuar no curso até a sua conclusão e a empregabilidade posterior.
Expedida em janeiro deste ano, a Nota Técnica PFDC n° 1/2024 defende a adoção das cotas para pessoas transgênero em universidades e concursos públicos como forma de diminuir as desigualdades e dificuldades enfrentadas por esse grupo na busca por educação e emprego. Enviado também aos Ministérios dos Direitos Humanos e da Cidadania, do Trabalho e Emprego e à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), o documento traz uma série de dados e pesquisas relativos ao grupo, elenca o histórico das ações afirmativas no Brasil e detalha os dispositivos legais que embasam o pedido.
Dados
A PFDC reafirma que as cotas são um dos “vários mecanismos legais e legítimos utilizados em muitas partes do mundo como forma de compensação social a grupos historicamente oprimidos, discriminados, invisibilizados e marginalizados”. No caso da população trans, as informações disponíveis traduzem o quadro de exclusão. Pesquisa realizada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) aponta que, dos 424 mil estudantes matriculados nas universidades públicas federais, apenas 0,1% se declarou homem trans e 0,1%, mulher trans. Além disso, em 2019, somente 12 das 63 universidades federais brasileiras contavam com cotas específicas para pessoas transgênero, o que corresponde a apenas 19% do total.
Já levantamento realizado em 2021 pelo Centro de Estudo de Cultura Contemporânea (Cedec), que entrevistou 1.788 transexuais na cidade de São Paulo, mostrou que apenas 51% declararam ter completado o ensino médio e 27,1%, o ensino superior. O mercado de trabalho é escasso para travestis e mulheres trans: 90% das pessoas que responderam à pesquisa afirmaram viver da prostituição, enquanto 72% realizam trabalho informal (“bico”). A pesquisa também comprovou a baixa expectativa de vida desse grupo de vulneráveis: 70% dos entrevistados não ultrapassaram 35 anos.
O cenário contraria a Constituição Federal, que estabelece a igualdade e a não discriminação como princípios fundamentais da República (art. 3º), como lembra a PFDC. Os objetivos estão previstos também em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (arts. 1º e 7º) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 26). E, com base no princípio constitucional da isonomia (CF, art. 5º), o sistema de cotas representa um mecanismo prático que minimiza as desigualdades entre os indivíduos, com o propósito de possibilitar que todos tenham acesso aos seus direitos. Esse entendimento está validado pelo STF, que já afirmou a constitucionalidade das cotas no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186/DF.
“A criação de oportunidades específicas para as pessoas trans é um caminho necessário para que haja não apenas o cumprimento da legislação nacional e internacional que garante a paridade de oportunidades. Trata-se de uma justa forma de tratar de maneira congruente com o princípio da igualdade material esse segmento social tão espoliado”, defende a PFDC.
Políticas públicas
De acordo com a análise feita pela Secretaria de Ensino Superior do MEC em resposta à nota técnica, “as instituições de educação superior públicas, amparadas no princípio constitucional da autonomia universitária, podem ofertar vagas em seus cursos de graduação para as pessoas transgêneros e travestis”, como algumas já fazem. Para isso, basta que elas definam os critérios de seleção e os informem nos editais próprios dos vestibulares ou à instância competente se forem utilizados de outros meios de oferta das vagas, tais como o Sistema de Seleção Unificada (Sisu).
De acordo com o MEC, a criação de qualquer política de ação afirmativa – seja diretamente pelas universidades, no exercício de sua autonomia, seja por lei aprovada pelo Congresso Nacional – deve estar amparada em estudos, de modo que seja possível garantir não apenas o ingresso na educação superior, mas a permanência das pessoas beneficiadas nos cursos universitários e o acesso ao mercado de trabalho após a sua conclusão. E destaca que, em complemento às vagas específicas, as pessoas trans podem concorrer às vagas de cotas destinadas a outras categorias (pessoas pretas e pardas, com deficiência, oriundas de escola pública, de baixa renda, etc), uma vez que os critérios têm alcance universal e atendem a diversos grupos.
“O tema da inclusão das pessoas transgêneros e de outros grupos de pessoas LGBTQIAPN+ que se encontram em situação de exclusão deve ser aprofundado no âmbito de toda a Administração Pública, de forma a ensejar, sempre que for o caso, a instituição de políticas públicas apropriadas aos grupos que pretendem alcançar, com respeito ao princípio da legalidade, e demais princípios constitucionais e aqueles que regem a Administração Pública, com a finalidade de se alcançar um país mais justo e que possa ofertar as condições de existência digna a todos os seus cidadãos”, conclui o despacho do MEC.
Íntegra da nota técnica da PFDC
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