‘Deixar Caatinga e Cerrado fora da Constituição foi estratégico para setores econômicos conservadores’, diz Alexandre Pires

Em entrevista, diretor de combate à desertificação do Ministério do Meio Ambiente defende a PEC 504 e atualiza as ações da pasta em defesa dos biomas do Semiárido

Por Gleiciani Nogueira, ASACom

Para marcar a semana do Dia de Proteção às Florestas, celebrado em 17 de julho, queremos convidar você a refletir sobre a Caatinga. O bioma predominante do nosso Semiárido, e que já foi o “patinho feio” dos biomas, tem surpreendido frente à resposta positiva dada aos impactos das mudanças climáticas.

De acordo com o Instituto Nacional do Semiárido (Insa), a Caatinga é o bioma mais eficiente no sequestro de Carbono. Na prática, segundo Aldrin Pérez, pesquisador do Insa, isso interfere na regulação do clima, na qualidade do ar, controla a erosão e a perda de solo e mantém a saúde da terra.

Por outro lado, pesquisas apontam que, até 2060, 40% da Caatinga vai passar por um processo de homogeneização em suas comunidades de plantas e os mamíferos desse bioma também estarão sob forte ameaça de extinção.

Ao mesmo tempo que a preservação e o recaatingamento  são medidas urgentes, os megaempreendimentos continuam a chegar na região, mostrando as contradições governamentais.

Para nos ajudar nessa reflexão, conversamos com o diretor de combate à desertificação do Ministério do Meio Ambiente, Alexandre Pires.

ASACom – Quais são as ameaças que a Caatinga enfrenta hoje e como elas têm agravado o processo de desertificação?

Alexandre – Precisamos imaginar como um processo cíclico. Se eu tiver um desmatamento da Caatinga, isso vai interferir na cobertura do solo. Então, se eu retiro a Caatinga, vou deixar o solo cada vez mais exposto ao vento, ao sol, à própria chuva. E isso vai compactando o solo, perdendo umidade naquele ambiente que foi desmatado, consequentemente contribui para alterar a temperatura do planeta, na mudança no regime de chuvas. Se chove menos e o planeta fica mais quente, evapora mais água, tem mais dificuldade de regeneração desse ambiente que foi desmatado. Obviamente que isso vai gerando o processo de degradação da terra e, por consequência, da desertificação. Porque quando a gente está falando de desertificação, nós estamos falando de um ambiente de clima árido em áreas de solos degradados. Então, se tem menos água, mudou o regime de chuvas eu tenho o agravamento das condições climáticas com a intensidade do sol no ambiente e a dificuldade de regeneração da Caatinga.

ASACom – De que forma a Caatinga pode contribuir  para o enfrentamento aos efeitos das mudanças climáticas?

Alexandre – A caatinga é um bioma altamente povoado por comunidades e povos tradicionais da agricultura familiar, com assentamentos da reforma agrária, e as pessoas usam a Caatinga de forma sustentável.  As várias organizações que compõem a ASA e atuam nesse território do Semiárido aprenderam com as famílias agricultoras, com esses povos e comunidades tradicionais, uma série de instrumentos e práticas sustentáveis que foram sistematizadas no que hoje nós chamamos de tecnologias sociais. E essas tecnologias são as principais formas que a gente tem para fazer esse enfrentamento às mudanças climáticas. Nesse ambiente, por exemplo, o uso de barragens de pedra para conter conter as águas no período de chuva dos pequenos riachos. Fazer com que essa água permaneça mais tempo num determinado ambiente e consiga se infiltrar, reabastecendo os lençóis freáticos. Fazer o processo de manejo sustentável dos animais para que o consumo de alimento por eles não seja danoso à Caatinga, e recuperar áreas degradadas com sistemas agroflorestais.

Também é preciso reforçar a importância da apicultura como uma estratégia econômica de segurança alimentar e de contribuição para a recomposição da biodiversidade da Caatinga. Essas são algumas práticas que muitas famílias já fazem. Eu acho que investir em atividades e recursos que assegurem esse tipo de iniciativa é algo fundamental para que a gente consiga enfrentar as questões dos efeitos das mudanças climáticas, preservando e recuperando a nossa Caatinga.

ASACom – Com as mudanças climáticas afetando severamente outros territórios brasileiros, a exemplo do Sul e da região amazônica, existe um risco de que essas importantes estratégias de conservação e preservação da Caatinga saiam do foco? 

Alexandre – A gente vai ter foco nos ambientes e nos biomas de forma distinta. E tudo vai depender, de fato, do contexto de agravamento ou dos eventos climáticos extremos que a gente está vivenciando como o que a gente viveu da seca no final de 2023, na região Norte do Brasil, e que deu visibilidade ao contexto amazônico e, obviamente, do que a gente viveu agora no início de 2024 com as cheias na região Sul. Recentemente, nós vimos como o foco da atenção da sociedade e do governo brasileiro ficou na região do Pantanal em função dos incêndios. Então, não é um problema ter focos em biomas distintos, porque cada um vai, em algum momento, requerer uma atenção maior. O que não pode é dar exclusividade de atenção a um bioma em detrimento de outros. Nós precisamos, enquanto sociedade, entender que os biomas existem e coexistem. A Amazônia depende da Caatinga, que depende do Cerrado, que depende do Pantanal, que depende da Mata Atlântica, que depende dos Pampas. Ou seja, nós precisamos entender que os biomas, nessa coexistência e co-dependência requerem, de um modo geral, a atenção do Estado e da sociedade de forma igualitária. Embora, em algum momento a gente vá precisar ter atenção de forma específica, por exemplo, eu tenho chamado a atenção com a campanha Terra, Floresta, Água de Enfrentamento à Desertificação, que a gente lançou no último dia 10 de junho, em Petrolina (PE), por ocasião da Missão Climática pela Caatinga. Um internauta perguntou: “Mas vocês estão falando de desertificação? Enquanto a região Sul está se acabando em água?” Nós não só podemos falar das situações no momento em que elas estão acontecendo. Falar de uma campanha de combate à desertificação neste momento é pensar no que pode vir a ser um processo de estiagem extrema então nós precisamos nos antecipar. A sociedade está muito voltada para aquela coisa do momento e não está gerando as capacidades de pensar que é preciso a gente olhar e pensar para o futuro.

ASACom – Alexandre, você citou essa missão climática pela Caatinga, que foi realizada em junho, Juazeiro, na Bahia. O ministério, na ocasião, lançou uma série de iniciativas visando a conservação e recuperação da Caatinga, incluindo investimentos financeiros. Como será a aplicação desses recursos e como é que essa ação se conecta com o que já vem sendo feito pela sociedade civil organizada?

Alexandre – Tem dois recursos de investimentos que a gente anunciou em Petrolina que são da Secretaria de Biodiversidade, Florestas e Direitos dos Animais, do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Esses recursos são voltados para as unidades de conservação, que ajudam a preservar a biodiversidade do bioma, sendo um recurso do Fundo Global para a Biodiversidade e o o outro um recurso global de clima de enfrentamento da questão climática. A secretaria vai certamente lançar editais para contratar organizações que possam desenvolver ações de fortalecimento da gestão das unidades de conservação nesses ambientes, a recuperação e proteção do bioma Caatinga e a criação de novas unidades de conservação. Temos chamado a atenção do Departamento de Combate à Desertificação de que a criação de unidades de conservação no Semiárido exige muito cuidado, porque nós precisamos, sobretudo, pensar na modalidade de uso sustentável exatamente por ser um bioma muito populoso.

Um dos projetos já está definido e vai trabalhar no estado de Pernambuco, Bahia e Piauí. O outro ainda está aguardando algumas definições, mas certamente vão ter editais para que as organizações acessem e possam desenvolver as metas dos projetos. Um outro recurso que a gente anunciou junto em parceria com a Sudene é algo em torno de R$ 4 milhões que é para apoiar os governos dos estados do Semiárido, os nove do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo na elaboração dos seus Planos Estaduais de Combate à Desertificação.

ASACom – Quais são as outras estratégias do ministério para dar visibilidade à Caatinga?

Alexandre – Tem um instrumento que é a Política Nacional de Combate à Desertificação que a ministra Marina Silva criou, inclusive, na primeira gestão dela à frente do ministério, no primeiro governo do presidente Lula. São os Planos de Prevenção e Controle do Desmatamento e Queimadas  (PPC) nos biomas. O governo já elaborou o PPC da Amazônia, do Cerrado, e estamos agora no processo de elaboração dos planos dos outros biomas: Caatinga, Mata Atlântica, Pantanal e Pampas. A gente espera que o da Caatinga seja além de instrumento na política de combate à desertificação, um instrumento que contribua efetivamente para a preservação do bioma. Por outro lado, eu acho que é importante a nossa campanha de enfrentamento à desertificação e às secas. Ela é uma campanha educativa que contribui para o processo de preservação da Caatinga. Preservar e restaurar a caatinga é a principal estratégia de combate à desertificação que a gente pode ter no Brasil e é nesse sentido que a campanha se estrutura em três elementos centrais, que é cuidar do solo para ter floresta e essa floresta poder gerar água, produzir água que a gente sabe, se não tem floresta, não tem água, se não tem solo fértil, não tem floresta.

ASACom – Não é contraditório que biomas tão essenciais para o enfrentamento às mudanças climáticas, como a Caatinga e o Cerrado, não sejam reconhecidos como Patrimônio Nacional e estejam na peleja pela aprovação da PEC 504? 

Alexandre – Eu acho que a gente pode ler esse contexto sobre várias óticas. Se a gente imaginar que nós estamos falando da Constituição Federal de 1988 e que naquela época talvez imperasse de forma muito forte na sociedade e no Estado brasileiro a visão desse ambiente da Caatinga e do Semiárido como um lugar do não gente, o lugar da não existência, o lugar do vazio, como se a Caatinga fosse algo menor. E eu acho que isso tenha sido uma visão equivocada, obviamente, a partir da minha leitura, e que impediu que os constituintes assegurassem a presença da Caatinga, do Cerrado e dos Pampas, porque são os três biomas que não estão presentes na Constituição Federal, como patrimônios nacionais.

Mas quando a gente fala da Caatinga, a gente vê uma visão estereotipada que a sociedade brasileira construiu, que inclusive o Estado ajudou a construir essa visão estereotipada. Eu acho uma contradição enorme, porque a Caatinga, sendo um bioma exclusivamente brasileiro. Eu gosto de chamar a Caatinga como se fosse a nossa pedra preciosa por ser rara, porque você não vai encontrar algo igual a ela em lugar nenhum do mundo, e eu estou falando do ambiente natural. Mas quando a gente soma esse ambiente natural, à cultura, ao jeito de vida das pessoas, à diversidade de povos que vivem nesse território, aos modos de vida e de uma perspectiva cultural, isso deixa esse lugar ainda mais especial. Então, não cuidar e não proteger é algo de um equívoco gigante. Não proteger o Cerrado, que é o que a gente chama de berço das águas do Brasil, que tem pelo menos três grandes bacias mostra também que há um equívoco do ponto de vista político, de não assegurar esses biomas como patrimônio.

Agora, ao mesmo tempo, nós podemos fazer uma outra leitura que é assegurar um bioma como um patrimônio nacional é uma modalidade de ter atenção, de criar perspectivas de que políticas e programas possam ser desenvolvidos para uma maior proteção desse ambiente. Não que essas políticas e programas assegurem a proteção integral, porque a Amazônia e o Pantanal, por exemplo, são biomas que estão dentro da Constituição Federal e a gente sabe os crimes que esses sofrem em função de uma lógica econômica produtivista que tem uma certa hegemonia no Brasil. Mas, de toda forma, a gente pode fazer a leitura que deixar a Caatinga e o Cerrado de fora também foi algo estratégico para setores econômicos do Brasil, de caráter conservador e de uma exploração irracional, para poder usar dos recursos disponíveis nesses ambientes de forma mais livre. Então, eu acho que a luta que a ASA e a campanha pelo Cerrado têm empreendido nesses últimos anos, junto ao parlamento brasileiro para votar e aprovar a PEC 504, é algo extremamente importante e que precisa se manter altiva para que a gente, em algum momento, tenha um ambiente político favorável no Congresso brasileiro que consiga essa aprovação.

ASACom – Como o Ministério do Meio Ambiente está se organizando para participar da próxima COP de Combate à Desertificação e quais os desafios que estão colocados nesta conferência?

Alexandre – A COP 16 acontece na Arábia Saudita em dezembro e é importante dizer que essa é a terceira conferência que nós vamos ter este ano, porque a primeira vai ser a Conferência do Clima e a segunda vai ser a Conferência da Biodiversidade. Elas têm interface umas com as outras. Então, quando nós estamos inclusive provocados pelos secretários executivos de todas as três conferências a buscar sinergias de trabalho entre elas, montamos uma estratégia para a presença do Brasil na COP. Nas últimas conferências, o Brasil esteve presente muito mais do ponto de vista diplomático do que do ponto de vista técnico e da participação da sociedade civil. Porque em função dos governos que nós tínhamos, de 2016 para cá, essa agenda foi praticamente abandonada dentro do Ministério do Meio Ambiente e do governo federal como um todo.

A COP vai ter sete dias dedicados a temas que vão tratar desde o financiamento do combate à desertificação até assuntos como a questão científica e produção de conhecimento. Estamos planejando fazer algumas agendas com organismos internacionais levando as experiências brasileiras, de modo que a comunidade internacional conheça o que nós estamos fazendo aqui. Nós saímos num processo de muita motivação para organizar a nossa presença da COP. No final da missão climática pela Caatinga, que a gente teve a presença da ministra Marina em Juazeiro (BA) e Petrolina (PE), e do secretário executivo da COP, Ibrahim Teal, ele foi muito enfático quando expressou que o Brasil precisa ir para a COP 16, mostrar o que está fazendo aqui. O secretário ficou muito impressionado com as experiências que viu numa comunidade de fundo de pasto, com o diálogo que ele teve com a comunidade, com a equipe técnica do IRPAA.

Então, nós queremos organizar uma agenda com um conjunto de ministérios e órgãos do governo federal para apresentar a nossa proposta e queremos fazer isso também com a comunidade científica e as organizações da sociedade civil, onde a gente certamente vai contar com a presença da ASA e das outras organizações credenciadas na Convenção referência para o tema. Mas vamos convidar de forma um pouco mais ampla para que a gente de fato tenha uma presença marcante e robusta, e que a gente consiga estar presente, como o secretário nos pediu, mostrando para a comunidade internacional como é que a gente está fazendo o processo de combate à desertificação aqui. Acho que um outro ator, que para nós é muito importante, é o consórcio de governadores do Nordeste com quem a gente tem montado uma parceria importante para discutir a pauta da questão climática, do combate à desertificação e de proteção da caatinga.

Foto: Gabriel Carvalho / SETUR-BA

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