O dossiê “Geografando e Re-existindo: um tributo a Carlos Walter Porto-Gonçalves” é o presente que a revista GEOgraphia, do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, nos traz. A publicação foi organizada por Rogério Haesbaert e Valter do Carmo Cruz, com depoimentos de Marcia Meschesi, Osmarino Amâncio Rodrigues, Samuel Britto das Chagas, Ariovaldo Umbelino de Oliveira, e Enrique Leff. Há também artigos de Henri Acselrad, Rogério Haesbaert, Marcelo Lopes de Souza, Horacio Machado Aráoz, José Ángel Quintero Weir, Valter do Carmo Cruz, Glauco Bruce Rodrigues, Bruno Malheiro e Tatiana Tramontani Ramos.
Abaixo, o texto que apresenta o dossiê e o link para a publicação on-line.
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Apresentação, por Valter Cruz, Rogério Haesbaert
A ideia deste dossiê surgiu pouco tempo depois da primeira homenagem realizada ao nosso grande intelectual, ativista, querido colega e amigo Carlos Walter Porto-Gonçalves na Universidade Federal Fluminense, juntamente com Marcia, sua companheira, e o apoio de vários alunos e a direção do Programa de Pós-Graduação em Geografia, em 21 de setembro de 2023, duas semanas depois de sua partida. Imaginamos aqui convidar alguns companheiros que tiveram um contato mais direto com Carlos, tanto na vida afetiva ou de ativismo quanto no convívio e intercâmbio acadêmicos, mesclando assim depoimentos e artigos de reflexão – que alguns também mesclaram, pois não é fácil, em momentos como este, separar razão e emoção.
Infelizmente esses convites sempre pecam pela parcialidade, com nossa memória olvidando alguém e outrxs que, mesmo contatadxs, por diversas razões, não conseguiram atender ao chamado (ou a nossos prazos). Que estas homenagens possam de alguma forma representar também aquelxs que, mesmo ausentes, teriam todo o mérito para compartilharem conosco este dossiê.
Como poderá ser visto ao longo dessas declarações e/ou reflexões, Carlos nos inspira por vários âmbitos, em múltiplas geografias que ele desenhou como poucos, na vinculação permanente entre teoria e prática, produção acadêmica e ativismo junto a movimentos sociais. Assim, temos aqui um leque muito rico de sensibilidades e análises que demonstram com vigor as diversas faces e os muitos insights que Carlos nos oferece para desdobrarmos, como uma caixa de ferramentas (como diria Deleuze) capaz de proporcionar novas questões, novos conceitos, novos caminhos metodológicos e, mais ainda, novas formas de intervenção política transformadora.
Diferentes autores com distintas interfaces com a trajetória de vida e a obra de Carlos se cruzam aqui, entre o afeto de depoimentos emotivos e reflexões sobre suas contribuições como intelectual e ativista, numa ponte permanente entre um saber que se transforma e a plena consonância com a transformação – os diferentes movimentos – da sociedade – sociedade essa nunca separada da base “natural” na qual se realiza. Por isso a Geografia de Carlos Walter é sempre, em múltiplos sentidos, uma Geografia da ação, em movimento, dos movimentos, com e pelos movimentos.
Este dossiê tem início com cinco importantes depoimentos: de Marcia Meschesi, companheira de Carlos, esteio afetivo e material (além de entusiasta parceira política) indispensável em sua trajetória; Osmarino Amâncio Rodrigues, líder seringueiro, companheiro de luta de Chico Mendes, e que compartilhou vários momentos do trabalho e da atuação política de Carlos, dentro e fora da Amazônia; Samuel Britto das Chagas, agrônomo e consultor ambiental engajado na luta pela defesa da terra e da água nos cerrados do oeste baiano, que compartilhou momentos dessa luta e redigiu importante relato desses conflitos junto com Carlos; Ariovaldo Umbelino de Oliveira, geógrafo da USP, um dos principais estudiosos da Geografia Agrária brasileira e que conhece Carlos desde seu papel renovador na Geografia dos anos 1970 e que conviveu com ele tanto em movimentos sociais quanto junto à Associação dos Geógrafos Brasileiros, e, fechando esta primeira parte, temos o depoimento de Enrique Leff, grande intelectual mexicano, que apresenta a história de uma forte amizade, marcada pela cumplicidade afetiva, intelectual, ética e política, uma intensa troca intelectual e uma aliança que é responsável, em grande parte, pela construção do pensamento ambiental crítico e do campo da ecologia política na América Latina.
Em um percurso pelos artigos que compõem a segunda parte do dossiê, as palavras-chave enunciadas já nos oferecem um panorama das múltiplas faces e do grande potencial analítico presentes na obra de Carlos. Entre os conceitos acionados, temos, como não poderia deixar de ser, geografia – ou melhor, geo-grafias, uma geografia em ato e no plural, e seus derivados, como geograficidade (do social), geografias ancestrais, geoautobiografia… Território e territorialidade, tão caros, também, à obra de Carlos, aparecem em diferentes perspectivas, com destaque para a abordagem descolonial e a concepção de conflito, ou melhor, de tensão de territorialidades envolvendo distintos movimentos sociais. Em termos de método, é destacada a sua condição de intelectual orgânico e seu sentipensarfazer com/através do território, nunca separado de suas bases naturais, condição básica na ênfase pioneira que ele dava à interlocução entre Geografia e Ecologia Política – muito evidente nos debates contemporâneos sobre o Antropoceno. Em termos de universo empírico aparece o destaque para os seringueiros e suas reservas extrativistas, a(s) Amazônia(s), os cerrados, o Brasil (especialmente através da questão agrária) e os povos originários da América Latina.
Desse modo, mais especificamente, o artigo de Henri Acselrad explora a ideia – e a personalidade – de Carlos Walter como um “intelectual em movimento”, na interação constante entre reflexão acadêmica e ativismo político. O autor afirma que foi através da ideia de movimento, em seu mais amplo sentido, que Carlos procurou sintetizar sua trajetória de encontro e aprendizado com territórios, biomas, movimentos sociais, camponeses, indígenas, quilombolas e povos tradicionais numa geo-história espaço-temporal de sua própria experiência.
Rogério Haesbaert, em “Sentir/ouvir, pensar/expressar, fazer geografias: múltiplas territorialidades de afeto no diálogo com um grande geógrafo da ação” dialoga com a obra de Carlos no vínculo entre o intelectual e o afetivo, traduzindo uma abordagem ampliada de ação que se desdobra em múltiplas territorialidades construídas entre o sentir/ouvir, o pensar/expressar e o fazer geografias. Essa construção se dá numa arena política que extrapola as relações sociais de poder e envolve a esfera do “mais do que humano” que cada vez mais nos afeta e (des)territorializa.
Marcelo Lopes de Souza, em “Rebelde dentro da rebeldia: Carlos Walter Porto-Gonçalves, a Geografia e as Ecologias Políticas”, enfatiza a contribuição e o pioneirismo (antecipando a centralidade das questões ditas ambientais) de Carlos ao campo interdisciplinar da Ecologia Política – que Marcelo propõe sempre no plural, dentro da multiplicidade de saberes tão valorizada por Carlos. Sua visão de Geografia nunca desdenhou a dimensão geobiofísica da realidade social e, nela envolvidos, os saberes vernaculares sobre as águas e as intempéries, os solos e a vida.
Horacio Machado em “Carlos Walter Porto-Gonçalves, un sentipensador fundamental para geografiar el Antropos-ceno” questiona a visão “imperial” de uma Geografia a serviço da ocupação e exploração da terra e a concepção de Antropoceno que a acompanha, destacando o papel chave da obra de Carlos Walter nesse questionamento, ao apontar as contradições entre Ocupar e Habitar e, assim, re-imaginar outros futuros possíveis; outras Gea-grafias centradas no Bem Viver ou no Bem Con-viver.
José Angel Quintero Weir, por sua vez, homenageia Carlos através de seu texto “Hacer en el pensar, pensar en el hacer: Hacia una Otra ciencia como territorialidad de los pueblos”. A partir da vivência concreta dos povos originários de que ele próprio faz parte, nos conclama a reconstituir nossas comunidades, nosso “comunalizar” num permanente ir e vir entre o fazer e o pensar, mudando de perspectiva nosso olhar (e nosso espírito) sobre o mundo.
Valter do Carmo Cruz, em artigo intitulado “Carlos Walter Porto-Gonçalves, a Amazônia e um horizonte metodológico descolonial do fazer geográfico” parte da hipótese que a experiência de pesquisa com a Amazônia deu régua e compasso para o autor construir uma renovação metodológica na Geografia brasileira. O texto argumenta que Carlos Walter construiu uma leitura temático-empírica sobre a região e, ao mesmo tempo, um horizonte metodológico descolonial do fazer geográfico que é apresentado através de alguns gestos epistemológicos e pistas analíticas que marcaram a produção do autor sobre a Amazônia.
Glauco Bruce Rodrigues no artigo “Varadouros: a Geografia de Carlos Porto-Gonçalves” busca identificar e apresentar as contribuições e formulações mais importantes e originais da tese de doutorado de Carlos Walter, publicado como livro “Geografando nos varadouros do mundo: da territorialidade seringalista (o seringal) à territorialidade seringueira (a reserva extrativista)”. A proposta do texto é ressaltar alguns dos fundamentos teóricos e metodológicos mais importantes de um dos maiores livros da Geografia brasileira. Um livro, segundo o autor, que nos permite apreender de forma cristalina, em ato, em ação, o que é a Geografia e o que ela deve fazer.
Bruno Malheiro, no artigo “As geo-grafias ancestrais de Carlos Walter Porto-Gonçalves” propõem pensar a obra e a trajetória de Carlos Walter a partir de percursos analíticos que apontam Carlos Walter como um território ancestral. A trilha percorrida pelo autor inclui: o sentipensar o território; a vida como critério de verdade; a diversidade de forças na grafia da terra; a incompletude dos seres e a produção do bem-con-viver; a diversidade epistemológica do mundo e o encontro com o conflito social; a geograficidade da história e a descolonização do conhecimento; e a generosidade e o otimismo como atitudes epistêmicas.
Tatiana Tramontani Ramos, em artigo intitulado “A Geografia dos Conflitos Sociais em Carlos Walter Porto-Gonçalves: de protagonismos e de epistemes” procura refletir sobre a importância da Geografia dos conflitos sociais como método no campo das ciências sociais e, em diálogo com a obra de Carlos Walter, apresenta uma proposta teórica-metodológica onde conflito é uma chave analítica central para a uma leitura crítica da geograficidade do social.
Finalizamos esta apresentação convidando o leitor, depois da leitura destas páginas, a elaborar sua própria homenagem a Carlos Walter, consciente de que o melhor tributo é seguir refletindo, sentindo e agindo a partir dos múltiplos caminhos abertos por sua obra. Eles sem dúvida nos permitem, pela solidariedade e o compromisso político que ele tanto prezava, elaborar novas perspectivas de comunhão e re-existência “desde baixo”.
[A íntegra da revista pode ser acessada aqui]
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Valter Cruz é geógrafo, mestre e doutor em Geografia, professor do Departamento e do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense -UFF. Email: [email protected].
Valter Cruz, Rogério Haesbaert é doutor em Geografia, professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected].