Muita gente tenta calar Judith Butler

Por Equipe Boitempo

Há 8 semanas fomos surpreendidos por uma decisão judicial (que corria em segredo de justiça) autorizando o recolhimento de todos os exemplares de Quem tem medo do gênero?, de Judith Butler, do nosso estoque e exigindo a sua retirada imediata de todas as livrarias do Brasil. O pretexto foi a reprodução, na capa interna da obra (com detalhe destacado na frente, em cor rebaixada) de uma foto tirada em manifestação contrária à autora durante sua última vinda ao país. Nessa imagem, devidamente creditada e com direitos livres, uma manifestante segurava cartaz com dizeres antigênero. Uma das ilustrações utilizadas no cartaz era do personagem “Quico” – desconhecido por nós e toda a torcida do Flamengo – cuja propriedade é reivindicada pela Casa Publicadora Brasileira.

A editora de Tatuí, de fato detentora da marca, poderia ter entrado em contato conosco pedindo a retirada do personagem da capa (pois era absolutamente desnecessário, cabe dizer), o que teríamos atendido de pronto. Preferiu, no entanto, uma ação judicial de monta por considerar que nossa edição seria “totalmente alheia à filosofia original do personagem Quico”. A Casa Publicadora Brasileira é uma editora religiosa (adventista).

Não é a primeira vez que tentam calar Butler em nosso país. Seu livro foi escrito justamente após os violentos ataques que a filósofa recebeu naquela sua última visita ao Brasil, em 2017. As semanas iniciais de um lançamento são fundamentais para o desempenho de um livro em nosso pacato mercado editorial. Junto com os prejuízos logísticos, operacionais e possivelmente judiciais, a censura imposta sobre o livro configura um baque nada desprezível a uma editora como a Boitempo. Não seremos intimidados por esse tipo de golpe baixo. Nas palavras de Butler, em entrevista à TV Boitempo:

“Eles estão tentando, mas não vão ganhar. Porque nosso lado é o lado da maior aceitação, da maior compreensão, e oferece mais reconhecimento a mais pessoas. As pessoas querem viver com liberdade e alegria. Não querem viver com vergonha e censura. Nós temos alegria e liberdade do nosso lado. É por isso que ao final vamos vencer.

Quem tem medo do gênero? é uma obra que ilumina como a centralidade do medo em torno do “gênero” em discursos conservadores e reacionários carrega o objetivo de criar pânico moral e angariar apoio popular a projetos políticos fascistas, autoritários e excludentes. Desde o anúncio de sua publicação, não foram poucos os ataques de caráter transfóbico e fascista também em nossas redes sociais. São ataques que reforçam a tremenda atualidade do livro, que tematiza diretamente o contraditório comportamento de censura do movimento antigênero, como se verifica na seguinte passagem:

O pressuposto é de que, se as crianças lerem sobre algo, elas se tornarão esse algo? Que estranhos poderes são atribuídos à leitura e aos livros? A censura oculta, portanto, sua crença no desmedido poder transitivo das palavras que teme: elas são aparentemente instigantes e transformadoras demais para que se possa deixá-las perto de uma criança. As palavras em si são apresentadas tacitamente como recrutadoras e molestadoras, motivo pelo qual devem ser removidas da sala de aula a fim de cercear seu efeito aparentemente gigantesco e destrutivo. Os medos são alimentados para que se torne aceitável demitir pessoas de seus cargos; restringir o que pode ser dito, mostrado, ouvido e ensinado; e estigmatizar, como pessoas perigosas, docentes, profissionais da administração e artistas que ousem levantar questões. Tais ações podem não configurar um fascismo completo, mas constituem elementos claros do fascismo que, se permanecerem livres de oposição, não trarão bons presságios para o futuro. Lembremo-nos de que se tem imaginado que certas palavras são tão poderosas que só a censura traria alguma esperança de privá-las de seu poder. É, sem dúvida, uma situação desesperadora para quem vive com medo de textos, discursos, imagens e performances – incluindo performances drag. E, no entanto, as práticas de censura atribuem às palavras, aos textos e às performances mais poder do que elas jamais poderiam ter por si sós. Aprender palavras como “gay”, “lésbica”, “trans” e até mesmo “gênero” deveria, idealmente, levantar questões inofensivas para pessoas jovens: o que significam? Será que dão uma oportunidade de contar algumas histórias, apresentar algumas informações e livrar estudantes de preconceitos infundados? Essa abertura da mente às possibilidades vividas que abundam na vida contemporânea é uma forma de conhecer o mundo em que se vive. Não é preciso viver de determinada maneira para saber que é assim que outras pessoas vivem, e adquirir conhecimento sobre certo modo de vida não significa que seja obrigatório segui-lo. Tudo isso deveria estar suficientemente claro, mas as formas básicas de clareza estão desaparecendo rapidamente à medida que surgem oportunidades de inflamar paixões a serviço da consolidação de poderes autoritários (Judith Butler, Quem tem medo do gênero?, p. 101).

O debate intelectual é fundamental para a transformação social. O ataque à circulação do pensamento é gravíssimo. Com uma nova capa, Quem tem medo do gênero? retorna esta semana às livrarias e esses fatos apenas comprovam o quanto as reflexões de Butler precisam ser realmente lidas e debatidas.

Neste seu primeiro livro não acadêmico, Judith Butler analisa como o “gênero” se tornou central em discursos conservadores e reacionários, um fantasma com o objetivo de criar pânico moral e angariar apoio popular a projetos políticos fascistas, autoritários e excludentes.

Intervenção essencial em uma das questões mais inflamadas da atualidade, Quem tem medo do gêneroé uma convocatória arrojada a construir uma coalizão ampla contra as novas formas do fascismo. “É crucial que a política de gênero se oponha ao neoliberalismo e a outras formas de devastação capitalista e não se torne seu instrumento”, insiste Butler.

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