A privatização da água é uma ameaça à saúde global

A água é um recurso básico para todos os seres humanos. No entanto, as forças do mercado estão privatizando cada vez mais seu fornecimento – não apenas a tornando inacessível para as pessoas pobres e da classe trabalhadora, mas representando uma séria ameaça à saúde pública após a pandemia.

Por Beauty Dhlamini, Jacobina

Nos acostumamos com o impulso insaciável do capitalismo de privatizar tudo, mas a frase “privatização da água” é uma que muitos de nós acham particularmente irritante. Como um recurso tão básico pode ser capturado por um pequeno punhado de corporações para produzir lucro para poucos, às custas de cada pessoa no planeta?

Ainda assim, a privatização da água está se expandindo em todo o mundo e com efeitos devastadores: o despejo de resíduos no Sul Global, o vazamentos de esgoto em corpos d’água que abastecem comunidades mais pobres e a escassez contínua – tudo durante a maior crise climática que os humanos já viram. Os suprimentos de água doce estão secando rapidamente, com as mudanças climáticas como força motriz por trás do aumento do nível do mar e das fronteiras físicas alteradas.

Enquanto isso, espera-se que a demanda de água cresça 55% até o ano de 2050 – tornando-se particularmente alarmante em um momento de escassez mundial de água devido ao aumento da demanda por serviços de água e saneamento durante a pandemia. Os provedores de serviços exigem um fornecimento contínuo de produtos químicos necessários para testes e tratamento de água e águas residuais, apresentando desafios em países onde o tratamento de águas residuais permanece limitado. Em países árabes como o Iêmen, o estresse hídrico aumentou, devido à maior alocação de recursos hídricos no setor agrícola para compensar as baixas exportações de alimentos.

A COVID-19 pode ter produzido um aumento na privatização da água. De fato, muitos governos nacionais e até instituições de saúde pública estão usando a crise para promover aquisições do setor privado em água e saneamento. Isso pode ser visto em países como o Brasil, onde a privatização inevitavelmente levará a uma menor distribuição de água nas áreas mais pobres do país. Ironicamente, esse tipo de ação tem sido apoiado por grandes organizações multilaterais com grande influência nessa área.

Por exemplo, o Banco Mundial desenvolveu um programa de “financiamento misto” que exige a participação do setor privado antes que os operadores públicos de água possam receber apoio financeiro. E o UN-Habitat e o UNICEF estão promovendo parcerias público-privadas para “engajar e capacitar” pequenos vendedores privados de água. Ironicamente, isso vai contra as advertências dos relatores especiais da ONU sobre como a pandemia de COVID-19 expôs o impacto catastrófico da privatização de serviços vitais, incluindo o fornecimento de água.

A privatização da água no Reino Unido

Em nenhum lugar os preços da água aumentaram mais do que no Reino Unido. Depois que a indústria foi privatizada em 1989, o governo conservador de Margaret Thatcher afirmou que a venda geraria fundos para realizar grandes obras de infraestrutura. Mas os preços da água aumentaram significativamente – 46% apenas no primeiro ano.

Não parou por aí. Em 1994, quase 2 milhões de lares britânicos deixaram de pagar suas contas de água e mais de um milhão de outros estavam atrasados nos pagamentos.

O Reino Unido sediou a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 26) do ano passado em Glasgow. Embora tenham estabelecido quatro metas ambiciosas – incluindo “garantir que as promessas de redução de emissões de carbono sejam mantidas para manter 1,5° vivo, entregando para países vulneráveis ao clima, garantindo que os compromissos de adaptação e perdas e danos sejam honrados, fazendo com que as finanças fluam e trabalhem juntas e continuem a ser um Presidência inclusiva” — negligenciou um dos aspectos-chave para cumprir suas próprias ambições de mudança climática: um plano detalhado para melhorar seus corpos d’água protegendo-os como parte de nossas soluções climáticas.

O Reino Unido atualmente luta com a proteção e gestão dos oceanos, com apenas um terço dos mares do Reino Unido sendo protegidos legalmente. Além disso, 40% dos pagadores de impostos na Inglaterra vivem em áreas consideradas “com falta de água”, áreas onde a demanda por água potável supera a oferta.

De acordo com a Agência do Meio Ambiente, em 2012 houve mais de 403.000 derramamentos de esgoto nos rios e mares da Inglaterra, totalizando mais de 3,1 milhões de horas de derramamento. Nove companhias de água privatizadas na Inglaterra assumiram dívidas de 48 bilhões de libras (mais de 250 bilhões de reais) nas últimas três décadas; essa dívida custou 1,3 bilhão de libras (mais de 6 bilhões de reais) em juros apenas em 2019. Mas, em vez de investir em soluções de gerenciamento de água que reduziriam bastante a poluição, as empresas de água pagaram mais de 2 bilhões de libras (mais de 10 bilhões de reais) por ano em média aos acionistas desde a privatização.

Isso é particularmente frustrante porque a Escócia, vizinha da Inglaterra, mostrou que não precisa ser assim.

O contra exemplo Escocês

Os serviços escoceses de água e esgoto são de propriedade pública. Desde 2002, o país investiu aproximadamente 35% a mais por domicílio em infraestrutura, do que as empresas de água inglesas privatizadas. Ao mesmo tempo, cobra dos usuários 14% menos e não paga dividendos aos acionistas.

O atual governo mostrou que pode se mobilizar em favor da proteção dos sistemas hídricos, após a rejeição de uma emenda de esgoto ao Projeto de Lei Ambiental que não foi aprovada no Parlamento em outubro de 2021. Isso levou a compromissos rápidos do secretário do Meio Ambiente, George Eustice, que prometeu um dever legal das empresas de água de implementar medidas para reduzir o derramamento de esgoto nos rios e mostrar os progressos alcançados nos próximos cinco anos.

Infelizmente, não é suficiente. Sem o clamor público contra os impactos dessa emenda, haveria um volume enorme de águas residuais contaminadas não tratadas, pois continuam chegando aos corpos d’água, prejudicando nossos ecossistemas e, inevitavelmente, nossa saúde. A abordagem atual da infraestrutura hídrica precisa de uma revisão radical.

A privatização da água envolve a participação de empresas do setor privado na prestação de serviços de água e, em alguns casos, a transferência completa de recursos hídricos do estado para o setor privado. Entre um conjunto de reformas neoliberais no Norte Global, a privatização da água e as parcerias público-privadas foram incansavelmente promovidas durante a década de 1980 por corporações multinacionais e agências financeiras internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, que insistiam que a privatização era fundamental para entregar alocação eficiente de recursos.

O acesso à água potável é um direito humano inerente e essencial para a manutenção da vida; as pessoas deveriam ter a propriedade da água, não as corporações. As alegações corporativas de que a privatização pode resolver os problemas globais de água de hoje são, na verdade, garantir lucros para empresas privadas – prejudicando o meio ambiente e bloqueando o acesso universal à água no processo.

A nacionalização dos sistemas hídricos e sua gestão, que se traduziria em gestão estatal ou coletiva, são a melhor solução.

A escassez no Sul Global

A privatização e a desregulamentação no Norte Global não acompanharam os efeitos das mudanças climáticas, o que consequentemente levou ou deve continuar levando a mudanças na oferta e demanda de água – especialmente no Sul Global. A privatização da água começou em países do Sul Global, juntamente com as reformas hídricas na década de 1980, por meio da imposição neocolonial de programas de ajuste estrutural.

Isso abriu um precedente segundo o qual as crises hídricas não são novas no Sul Global. Por exemplo, no Sudeste Asiático, secas e inundações assolam Bangladesh todos os anos, interrompendo a vida dos agricultores que dependem fortemente da irrigação. Enquanto vários tratados e acordos estão em vigor entre Bangladesh e Índia para tratar da gestão e alocação de água, ultimamente a Índia não tem liberado seus volumes de água de acordo com tais tratados.

Como resultado, o suprimento de Bangladesh está acabando e, em abril de 2021, suspendeu projetos como o Projeto de Irrigação Ganges-Kobadak. A suspensão ocorreu em um momento em que os agricultores na área sul de cobertura do projeto do país precisavam de mais água do que nunca, em meio a chuvas excepcionalmente baixas, causando choques térmicos nos campos de arroz. Desde então, o projeto foi retomado, mas o fácil acesso à água potável ainda continua sendo um grande problema.

No Zimbábue, o acesso à água potável ainda é um privilégio, pois o direito constitucional do país à água potável foi negado a muitos de seus cidadãos, com a privatização por algumas autoridades locais colocando essa preciosa utilidade ainda mais fora do alcance dos pobres. Isso não só se tornou rotina na vida cotidiana dos zimbabuenses – veja, por exemplo, a normalização da “grande descarga”, na qual os moradores são obrigados a dar descarga nos banheiros ao mesmo tempo em que a água é restaurada para desobstruir o sistema de reticulação do esgoto, que passa longos períodos sem água fluindo por ele. Também prolongou e sustentou surtos de cólera no país desde 2008.

Muitos no Sul Global, inclusive na África e na Ásia, continuam a expressar forte oposição popular às políticas de privatização. Em toda a África, as reformas de privatização foram caracterizadas como “recolonização” devido à participação de empresas estrangeiras.

Pesquisas mostram que quando os governos decidem privatizar serviços públicos como a água, o resultado são efeitos prejudiciais à saúde global. Não é surpresa que os serviços de água, saneamento e higiene gerenciados com segurança também desempenhem um papel significativo na prevenção de surtos de doenças infecciosas.

Problemas ecológicos globais como a crise hídrica não resultam meramente do esgotamento dos recursos naturais; eles vêm principalmente de distribuições desiguais de recursos naturais e poder. A falta de políticas regionais justas de compartilhamento de água, leva ao sofrimento das pessoas pobres que dependem dos recursos naturais para sua sobrevivência. Eles devem suportar tanto as inundações na estação das monções quanto a estação das secas.

Globalmente, a água tanto define as fronteiras quanto as atravessa. A água não apenas conecta as nações, mas as sustenta: mais de 40% da população mundial depende de água doce de rios que atravessam dois ou mais países, e 75% dos estados membros da ONU compartilham uma bacia hidrográfica ou lacustre com um país vizinho. Com a adoção da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e seus dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, a gestão integrada dos recursos hídricos foi consagrada na meta 6.5: “Até 2030, implementar a gestão integrada dos recursos hídricos em todos os níveis, inclusive por meio da cooperação transfronteiriça, conforme apropriado”. É crucial que, nas próximas décadas, a cooperação hídrica nos níveis político e técnico esteja na vanguarda das agendas de saúde globais regionais, nacionais e internacionais.

Sobre os autores

Beauty Dhlamini é uma colunista da revista Tribune. Especialista em saúde global com foco em desigualdades na saúde e co-apresentadora do podcast Mind the Health Gap.

Imagem: SAÚDE/GOVERNO RJ.

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