Um raio x da produtora bolsonarista que lucra disseminando fake news. Quem a financia. E como, nas redes, investe milhões em anúncios contra os direitos reprodutivos abusando de sentimentalismo, pânico moral e da fé dos usuários
Por Julianna Granjeia, na Revista AzMina
A produtora Brasil Paralelo gasta milhões com anúncios nas redes sociais para espalhar desinformação e negacionismo – com muitos conteúdos que atacam o feminismo e direito ao aborto. Entre agosto de 2020 e junho de 2024, a empresa investiu R$24,5 milhões em propagandas, de acordo com a Biblioteca de Anúncios da Meta (proprietária do Facebook e do Instagram). É a maior anunciante do Brasil nessas plataformas. E, dos cerca de 68 mil anúncios feitos no período acima, quase 5 mil tinham a palavra aborto. Muitos deles direcionados para obstetras e ginecologistas, pais de crianças e usuários religiosos.
A história oficial que os três fundadores da Brasil Paralelo (BP) contam sobre o início da produtora – de que “usaram aproximadamente R$13 mil do próprio bolso e empréstimos bancários a juros” – não é coerente com seus números milionários.
Investidor anjo
Em 2020, a Brasil Paralelo mudou sua sede de Porto Alegre para São Paulo. A partir daí, surfando na onda do bolsonarismo, não parou de crescer. Em 2021, a empresa que foi fundada como LHT Higgs Produções Audiovisuais LTDA em 2016 por Lucas Ferrugem de Souza, Henrique Leopoldo Damasceno Viana e Filipe Schossler Valerim, alterou sua constituição e seu nome para: Brasil Paralelo Entretenimento e Educação S/A.
Jorge Gerdau, que até 2021 era mencionado como conselheiro da Brasil Paralelo, passa a figurar como sócio da empresa em ata da assembleia geral extraordinária de acionistas em 11 de maio de 2022. Veja o que diz o documento (com data de registro de 28 de junho de 2022 na Junta Comercial do Estado de São Paulo – Jucesp):
“O Acionista Subscritor (Jorge Gerdau Johannpeter) integraliza as 833 (oitocentos e trinta e três) ações subscritas mediante a conversão do mútuo anteriormente realizado pelo Acionista Subscritor a Companhia, no montante de R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais). Do valor total integralizado pelo acionista subscritor, R$ 833,00 (oitocentos e trinta e três reais) serão direcionados para a conta do capital social e o remanescente é contabilizado como ágio.”
A reportagem consultou especialistas em direito societário, que analisaram as atas e balanços da empresa. Segundo eles, Gerdau celebrou um contrato de mútuo, isto é, emprestou R$1,5 milhão para a empresa, contabilizado no balanço patrimonial como Adiantamento para Futuro Aumento de Capital (AFAC) – o que garantiu ao empresário a possibilidade de transformar o empréstimo em ações preferenciais da Brasil Paralelo.
Como acionista preferencial, classe de ações geralmente destinada para “investidores anjos”, Jorge Gerdau não tem direito a voto nas deliberações da empresa. No entanto, ele tem privilégios como a prioridade na ordem de distribuição de dividendos aos acionistas e a possibilidade de restituição do investimento em caso de encerramento da empresa.
O empresário é um acionista preferencial, mas não entrou na distribuição de dividendos em 2022. Parte dos R$ 7 milhões do lucro daquele ano foram distribuídos para Souza, Valerim, Viana, e outros acionistas. Segundo especialistas, esse procedimento, apesar de legal, não é comum. Gerdau, portanto, não parece interessado no lucro, pois emprestou dinheiro, sem retorno.
Muito dinheiro contra direitos
A produtora passou, então, a ter muito dinheiro para gastar em campanhas antiaborto nos últimos anos, e é bem provável que já tenha gasto R$ 1 milhão com isso. A Meta não divulga o preço exato dos anúncios, por isso essa é uma estimativa considerando os valores máximos da plataforma.
Levantamento do site Intercept Brasil revelou que o ano de 2023 marcou o pico de investimento da produtora nesse tema: R$ 389 mil – sendo somente em outubro do ano passado mais de R$ 200 mil. Vale lembrar que, no mês anterior, em setembro, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber, então relatora da ADPF 442, havia votado a favor da descriminalização do aborto nas primeiras 12 semanas de gestação.
Os conteúdos impulsionados influenciam contra o direito ao aborto, usando e abusando dos sentimentos e da fé das pessoas. Criam um cabo de guerra com defensores de direitos humanos e feministas. Mas, por trás, estão as propagandas de seus cursos e planos de assinatura.
“O seu apoio à Brasil Paralelo pode impedir o aborto e salvar vidas. Arraste para o lado e descubra como apoiar a nossa causa. Nós contamos com você” – esse anúncio de assinatura da Brasil Paralelo voltou a circular em junho passado nas redes sociais com a última investida da Câmara dos Deputados contra o direito ao aborto.
Em maio, o projeto de lei 1904/24, que ficou conhecido como PL do Estupro e acabou sendo suspenso, foi apresentado pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), da bancada evangélica. A proposta equipara a interrupção de gestações acima de 22 semanas — direito previsto em lei desde 1940 para casos de estupros — ao crime de homicídio.
Disputa desigual de poder
Essa empreitada contra o aborto tem sido feita na política, nas redes sociais, na linguagem e no discurso. E é uma disputa muito desigual para quem defende os direitos reprodutivos e não conta com os mesmos recursos e aberturas para isso com as Big Techs (grandes empresas de tecnologia e inovação que dominam o mercado).
Em 2021, o lucro da Brasil Paralelo, que teria sido de R$ 7,4 milhões, foi retificado (em documento registrado em 2022) e passou para R$ 12,5 milhões. Nesse mesmo ano, a empresa entrou no foco da CPI da Pandemia no Congresso, por conta de sua suposta “influência na radicalização política adotada pelo Palácio do Planalto”, conforme apontava o pedido de investigação dos senadores.
Os números da Brasil Paralelo nas plataformas da Meta também demonstram o funcionamento dos algoritmos nas redes sociais. Laura Molinari, uma das fundadoras da Campanha Nem Presa Nem Morta, destaca a discrepância no tratamento entre uma empresa como a BP e organizações de direitos humanos.
No Instagram, a Nem Presa Nem Morta, por exemplo, já não consegue anunciar há alguns anos. “Tentamos recentemente o vídeo ‘Tirem os Lencinhos do Armário’, que tem apenas pessoas pregando o lenço verde em vários lugares do Brasil, e não conseguimos porque recebemos a mensagem de que o anúncio viola as diretrizes da plataforma”, contou Laura. Ela acha difícil entender como as Big Techs (como a Meta) entregam os conteúdos aos usuários, já que o movimento feminista tem grande dificuldade nas redes sociais. Procuramos a Meta, mas não tivemos retorno até o momento da publicação desta reportagem (esse texto será atualizado caso haja retorno).
Desinformação de gênero
Deputados, influenciadores, sites de junk news e empresas como a Brasil Paralelo propagam em larga escala falácias sobre os direitos reprodutivos, suscitando culpa entre as mulheres. Eles usam linguagem sensacionalista pregando uma suposta “defesa da vida” em meio a conspirações com vieses morais e religiosos.
É comum também omitirem em seus conteúdos, os direitos e as legislações atuais existentes ou estatísticas oficiais relativas ao aborto no Brasil. Costumam afirmar que “todo aborto é assassinato”, o que não é verdade, já que o país possui situações que permitem a interrupcão da gravidez.
O documentário “Duas Vidas”, da Brasil Paralelo, que estreou em outubro de 2023 – logo após o voto da ministra Rosa Weber -, compara o aborto a genocídios e ao holocausto comandado por nazistas. A produtora tem outras produções audiovisuais com temáticas antigênero.
Em Duas Vidas, eles recorrem ao argumento amplamente veiculado pelos movimentos antidireitos de que a vida humana não pode ser contabilizada apenas a partir de 12 semanas, pois existiria desde a concepção. A Brasil Paralelo ainda coloca a escolha pelo aborto como imoral, um “atentado contra a vida”, amedrontando quem busca o direito ao aborto legal.
Outro recurso bastante utilizado pela BP é o compartilhamento de histórias familiares de superação e testemunhos de “mulheres que escolheram a vida”. Um dos depoimentos principais é da cantora e ativista Zezé Luz, que fundou uma entidade contra o aborto – acusada em 2023 de perseguir e tentar impedir o direito ao aborto de uma adolescente de 14 anos, vítima de violência sexual, em Santa Catarina.
Laura Molinari trabalha para transformar o debate público a favor da descriminalização do aborto no Brasil e opina que esse debate é também muito desigual. “A partir do momento em que o aborto é criminalizado e tem um estigma tão grande, é mais difícil conseguir trazer à tona as histórias de mulheres que decidiram abortar.” Laura observa, no entanto, que, este ano, o movimento ‘Criança Não É Mãe’ (contra o PL do Estupro) fez com surgissem vários relatos de meninas violentadas que tiveram dificuldade de acessar o aborto legal.
Nem toda vida importa para eles
Não há discussão sobre políticas públicas de saúde no documentário da Brasil Paralelo. Mas tem o uso enviesado de dados do Boletim Epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde para dizer que: as “[apenas] 51 mortes maternas registradas em 2021 não justificam tratar o aborto como problema de saúde pública”. Isso contradiz a fala recorrente da extrema-direita de que “toda vida importa”.
Recorrer a esse número ainda é problemático porque as bases de dados oficiais de saúde não permitem ter uma estimativa real do número de abortos que ocorrem no Brasil. A criminalização tem como consequência a subnotificação dos procedimentos feitos clandestinamente, assim como suas complicações e mortes.
O aborto é um cuidado em saúde como qualquer outro, definido assim pela Organização Mundial da Saúde (OMS) coloca. “É uma falácia dizer que um problema de saúde pública precisa ter um número massivo de pessoas mortas. Nós estamos falando de sequelas e mortes evitáveis, poderia ser uma por ano”, afirma Helena Paro, ginecologista, obstetra, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Ela lembra que no Brasil se tem uma estimativa de 500 mil abortos clandestinos realizados por ano.
O uso estratégico da desinformação de gênero para silenciar mulheres e desencorajar o acesso a direitos é recorrente no site da Brasil Paralelo. Para a vítima de violência sexual é colocada a adoção como alternativa positiva, ignorando que a gestação e o parto podem oferecer risco de morte para a gestante, especialmente nos casos que envolvem crianças e adolescentes. E o aborto é retratado como se fosse sempre crime, sujo, vergonhoso e desumano.
Linguagem ardilosa
A doutora em Linguística Jana Viscardi destaca que a construção do pânico em torno do direito ao aborto passa pela linguagem. Por isso, é tão importante perceber os termos utilizados – ou não – por esses atores públicos e privados antiaborto.
“É comum que se ouça falar de ‘mãe’ e ‘bebê’ quando se fala de ‘gestante’ e ‘feto’. O fato de uma mulher estar gestante não implica que ela vá ser mãe. E o fato de um embrião ter sido gerado, não implica que ele se tornará feto, depois, um recém-nascido e, finalmente, um bebê”, analisou Jana em post publicado em sua rede social durante a discussão do PL 1904/24.
A extrema-direita chama o feto repetidamente de bebê para convencer as pessoas de que aborto é desumano e um homicídio, como alerta Jana. A mentira ou manipulação das informações é parte da estratégia dos grupos antidireitos. Forjam fatos e dados científicos para aprofundar ainda mais o estigma e restringir o acesso ao aborto legal e seguro.
No site da Brasil Paralelo, eles também associam o aborto ao câncer de mama citando supostos estudos científicos, entre eles o da médica Angela Lanfranchi, ativista antiaborto que dá palestras em eventos conservadores.
Apesar dessa falsa correlação ser difundida desde a década de 90, o crescimento recente de tal desinformação fez com que a Sociedade Americana de Câncer (ACS, em inglês) emitisse, em junho deste ano, um posicionamento sobre o tema. O comunicado dizia que estudos de maior qualidade não encontraram nenhuma ligação entre aborto e câncer de mama.
“A questão a ser corretamente colocada é de que a amamentação teria uma proteção contra o câncer de mama, mas não que o aborto aumentaria o risco da doença, pois qualquer mulher não lactante o teria”, explica o médico ginecologista obstetra Cristião Rosas, coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir.
Manipulações sobre aborto: os líderes de audiência
O NetLab, Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), divulgou neste ano o relatório “Temos Que Dar um Basta”, sobre a Campanha Multiplataforma contra a ADPF 442 e o Direito ao Aborto no Brasil. Eles coletaram publicações sobre esse assunto em diferentes plataformas de mídias digitais de agosto a novembro de 2023.
O site da Brasil Paralelo se destaca na pesquisa tendo o maior percentual de tráfego pago: 11,2% de suas visitas vêm dessas fontes, justificando o alto investimento da empresa em anúncios na Meta.
A Brasil Paralelo se aproveitou da ADPF para a promoção de cursos e filmes sobre o tema, como fez recentemente durante a discussão do PL1904. De acordo com os pesquisadores, a produtora é quem mais publica e mais engaja na pauta aborto no Instagram.
Os anúncios da BP que mais receberam investimentos durante o período analisado promovem o filme ‘Duas Vidas’. “Fazendo referência à ideia de guerra cultural, a BP utiliza a pauta do aborto para atacar a mídia e mostrar sua participação numa batalha moral maior“, aponta o relatório do NetLab. A produtora também se apresenta como fonte de informação comprometida com a “verdade”. Mas não utilizam dados oficiais nem fontes confiáveis.
O NetLab destacou que os anúncios têm um tom de alarmismo e denúncia, mostrando o aborto como uma ameaça. Ao passo que são eles que ameaçam o direito adquirido ao aborto no Brasil.
“Mais do que influenciar a audiência contra o direito ao aborto, os conteúdos usam da emoção e da religião para fins comerciais, afirmando que usuários que assinem os planos pagos podem ‘salvar vidas’”, reforça Nicole Sanchotene, pesquisadora de pós-doutorado do NetLab UFRJ e doutora em Comunicação.
Anúncios com endereço certo
Ao anunciarem nas plataformas da Meta, as páginas podem direcionar suas campanhas de acordo com interesses ou dados declarados dos usuários. Sabe todas aquelas informações que fornecemos sem querer aos algoritmos das redes sociais? Elas são vendidas para os anunciantes, que as utilizam a favor e contra o público.
Pessoas que consomem conteúdos relacionados a mulheres e usuários identificados como ginecologistas e obstetras estão entre os que mais receberam anúncios da Brasil Paralelo (no período analisado entre outubro de 2023 e janeiro de 2024 pelo NetLab).
“Ao menos 4 anúncios classificados como sensíveis foram direcionados a pais de crianças de até 12 anos”, diz Carlos Eduardo Barros, pesquisador do NetLab, mestre e doutorando em Ciência da Informação. Outro segmento que se destaca é o de usuários com interesses em temas religiosos, padres e pastores, com anúncios focados nesse público. Isso evidencia que toda informação (ou desinformação) tem objetivo específico de atingir e manipular a opinião pública em torno de um tema.
É evidente o investimento e poder da Brasil Paralelo, da bancada evangélica no Congresso, e de figuras públicas que ficam muito mais à vontade para se posicionarem contra o aborto do que a favor. Mas as organizações pelos direitos reprodutivos ainda estão conseguindo pautar o debate público. Pesquisas apontaram que a maioria da população ficou contra esse projeto de lei 1904/24.
“É importante reconhecer que mesmo com tantas disparidades, temos conseguido de alguma maneira avançar, ainda que seja às custas de um PL como esse”, avalia Laura Molinari, da Campanha Nem Presa Nem Morta.
A reportagem procurou os fundadores da Brasil Paralelo e o Jorge Gerdau. Não tivemos retorno até o momento desta publicação (esse texto será atualizado caso haja retorno).
*Esta reportagem foi realizada com apoio do Consorcio para Apoyar al Periodismo Independiente en la Región (CAPIR) e Institute for War and Peace Reporting (IWPR).
**Os Direitos Sexuais e Reprodutivos na Revista AzMina são uma pauta transversal. Essa matéria faz parte de uma série de reportagens especiais sobre o Lobby Antiaborto no Brasil.
Julianna Granjeia é colaboradora d’AzMina e não faz parte da equipe fixa da organização. Esta reportagem foi editada por Joana Suarez, com revisão de Bárbara Libório e Jane Fernandes, todas da equipe AzMina. As artes foram feitas por Giulia Santos.