Intenções do governo parecem boas, mas há três problemas graves: diluição do conceito de “trabalhadoras domésticas”, ausência de orçamento claro e submissão da proposta ao Legislativo – onde nada de bom pode-se prever…
por CFEMEA
Instituir uma Política Nacional de Cuidados: este é o objetivo do Projeto de Lei (PL) 2763/24 que começou a tramitar no Congresso Nacional, por iniciativa do Poder Executivo. Queremos discutir essa proposição do governo referenciadas nas demandas dos movimentos de mulheres e feminista por políticas que vêm desde o século passado. Essas demandas têm a ver com transformar a injusta divisão sexual e racial do trabalho que sustenta as nossas economias e a reprodução da vida sobre a base da exploração da grande maioria das mulheres. É um desafio enorme que exige uma política, um plano, uma a ação do Estado. Políticas e recursos públicos (municipais, estaduais, nacional, das agências oficiais de fomento) precisam estar estrategicamente orientados a criar equipamentos sociais, garantir direitos, instalar infraestrutura social do cuidado e desmontar as engrenagens (econômicas, sociais e culturais) que mantêm e reproduzem pobreza, miséria e desproteção social que o racismo patriarcal impõe às mulheres trabalhadoras.
O PL 2762/2024 foi enviado pelo Executivo no dia 3 de julho e ainda não tem designação de relatoria. A proposição estabelece, já no Artigo 1° a garantia do direito ao cuidado por meio da“promoção da corresponsabilização social e de gênero pela provisão de cuidados, consideradas as desigualdades interseccionais”. Nos incisos seguintes, declara que “todas as pessoas têm direito ao cuidado”, e define que isso diz respeito ao “direito a ser cuidado, a cuidar e do autocuidado”.
O PL estabelece as diretrizes gerais para uma política pública que ainda precisa ser pactuada com os entes federados, ou seja, Municípios, Estados e Distrito Federal. No artigo 2°, afirma que o cuidado é dever do Estado, o que inclui seus entes federados, e ainda ressalta que também é papel do setor privado e da sociedade civil. A proposta é ampla, reconhece as desigualdades de gênero, raça, etnia, condição física mental e etária e as demais interseccionalidades, além de definir o público prioritário.
O artigo 11, que trata do financiamento, deixa entendido que vai depender dos recursos existentes nos organismos da federação pactuados no Plano Nacional de Cuidados.Quanto a esse plano, o PL 2762/2024 sinaliza que o governo vai elaborá-lo com indicadores, metas, governança, período de vigência e revisão, bem como prevendo os órgãos responsáveis pela execução do plano e da política.
Notamos com surpresa a substituição do conceito “trabalhadoras domésticas” por “trabalhadoras de cuidados”. O fato é que essas ideias estão demarcadas em processos políticos, econômicos e sociais bem diferentes entre si, o que não justificaria a equivalência. As trabalhadoras domésticas, ou o tema do trabalho doméstico no mundo, nos remete a uma luta maior do que a relação empregador/trabalhador. Quando falamos no trabalho doméstico no Brasil, situamos a luta contra o racismo, a luta feminista e a importância de transformação, já que as raízes desse tipo de trabalho foram gestadas e mantidas dentro de um sistema escravocrata e patriarcal que, para 7 milhões de mulheres racializadas, ainda é atual: esse é o número de trabalhadoras domésticas no país. Os resgates de mulheres negras em trabalho análogo a escravidão nas casas grandes de hoje, que têm sido revelados nos últimos anos, comprovam a atualidade da questão.
Quanto ao financiamento da política pública, vale ressaltar a luta histórica dos movimentos sociais pela garantia de orçamento para financiar as suas ações. No caso da Política Nacional de Cuidados, até agora não há plano e nem orçamento – esse último, condição fundamental para sua efetivação, uma vez que o fôlego e a abrangência da política dependem do investimento de recursos para a sua execução.
O Fórum Feminista Antirracista de Políticas Públicas de Cuidado, uma articulação criada em 2023 para dialogar e incidir na construção da política, registrou os riscos de uma política com essa envergadura ser enviada como Projeto de Lei do Executivo ao Congresso Nacional. É de se supor que o parlamento atual, dominado pela extrema direita conservadora, não tardará a transformar a Política Nacional de Cuidados em mais um grande guarda-chuvas para as entidades privadas continuarem direcionando grandes quantidades de recursos públicos para o setor privado, exatamente como vem acontecendo com a saúde e a educação.
As políticas nacionais não necessariamente têm que tramitar pelo Congresso Nacional. O Poder Executivo poderia adotar uma política nacional seguindo as estratégias e metas definidas no Plano Plurianual (PPA) e respeitando os princípios constitucionais, sem precisar aprovar uma lei federal para isso. Quase sempre, quando uma política nacional é enviada ao Legislativo, o objetivo é fortalecê-la. Contudo, desta vez, entre tantas violências e injustiças já cometidas por esse Congresso, que criou um projeto de lei para proteger estupradores e, recentemente aprovou uma emenda constitucional para perdoar partidos políticos que roubaram o direito das mulheres e negros a participar dos processos eleitorais, suspeitamos que o debate naquele espaço não vá fortalecer a Política Nacional de Cuidado. Pelo contrário, pode atrasar ainda mais a definição do plano para a implementação dessa importante política e, por conseguinte, retardar o orçamento para tais investimentos.
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Imagem: Anujath Sindhu Vinaylal