Departamento de Operações de Fronteira (DOF) fotografa documentos e ameaça com autuação apoiadores e indígenas das retomadas
Indígenas e apoiadores da retomada Yvy Ajere, Terra Indígena Lagoa Panambi, município de Douradina (MS), estão, desde a noite desta segunda-feira (29), sendo parados, qualificados e informados de autuações por policiais do Departamento de Operações de Fronteira (DOF) em uma das estradas vicinais que dão acesso ao território tradicional palco, nas últimas semanas, de um conflito fundiário.
Os agentes fotografam documentos de identificação e as placas dos veículos, perguntam o grau de parentesco dos ocupantes, o que fazem no local, no que trabalham, quais organizações representam e, nas oportunidades trazidas pela inquirição, buscam coletar informações sobre a retomada, quantidade de pessoas, lideranças e se mais apoiadores ou indígenas pretendem ir ao local.
Na noite desta segunda, quando a comitiva de movimentos sociais se retirou da retomada após ato de apoio aos Guarani e Kaiowá, todos os veículos foram abordados e seus ocupantes tiveram documentos fotografados. Os policiais não explicaram o motivo do teor das perguntas. Quem passou pela blitz, conforme pessoas ouvidas pela reportagem, salienta o tom de intimidação da operação.
A situação mais grave ocorreu com integrantes do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST). Os policiais do DOF disseram que todos seriam autuados por invasão de propriedade, além do interrogatório improvisado na estrada de terra. Liberados, os veículos com os integrantes do MST foram escoltados pela Força Nacional até Dourados.
“O MST não faz parte da retomada, não fez retomada com a gente. O MST veio aqui hoje (segunda) em solidariedade”
Durante entrevista à imprensa na sede do Ministério Público Federal (MPF) em Dourados, durante a tarde desta segunda, o presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), Marcelo Bertoni, alardeou uma suposta participação do MST nas retomadas Guarani e Kaiowá em Douradina. Horas depois, o DOF iniciou a operação.
“O MST não faz parte da retomada, não fez retomada com a gente. O MST veio aqui hoje (segunda) em solidariedade, ver como estamos. Querem atacar o pouco que a gente consegue que é uma palavra de solidariedade, um dia aqui na retomada vendo como é a nossa luta”, declarou uma liderança Guarani e Kaiowá da retomada Yvy Ajere.
Indígenas denunciam ações policiais
Na manhã desta terça-feira (30), os Guarani e Kaiowá da retomada Yvy Ajere estavam informados da operação do DOF nas imediações da Terra Indígena. De acordo com um integrante da retomada, não há novidades. “DOF, Polícia Militar, eles se envolveram em vários ataques contra o nosso povo. Tem caso de despejo forçado, sem autorização da Justiça, que a PM fez”, conta.
Como exemplo mais recente está a retomada realizada no território de Laranjeira Nhanderu. Em 3 de março de 2023, a PM reprimiu a retomada com tiros e bombas de efeito moral levando presos três indígenas. Para a Aty Guasu, Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, principal organização política do povo, se tratou de um despejo forçado feito ao arrepio das leis vigentes.
Outro caso emblemático ocorreu no ataque que culminou no assassinato do cacique Nísio Gomes, em 18 de novembro de 2011. Investigações do MPF e da Polícia Federal levaram à prisão mais de 20 pessoas e à participação da empresa de segurança privada Gaspen. Entre os acusados estavam ex-policiais. A empresa foi obrigada a encerrar suas atividades por conta do assassinato.
“A comunidade não acredita nessas polícias, no DOF. Eles não vêm para proteger, mas para atacar”
O Guarani e Kaiowá ressalta um aspecto a partir do caso Nísio: “todas as vezes em que retomamos uma área, policiais aposentados, sargentos aposentados estão presentes nesses grupos de pessoas que nos atacam. Nas empresas de segurança. Então isso gera uma desconfiança na gente com os policiais militares, civis, DOF, que estão na ativa, porque eles se conhecem”.
Por sua vez, o DOF está envolvido em inúmeros ataques às retomadas Guarani e Kaiowá. Um caso emblemático ocorreu em janeiro de 2020 nas retomadas contíguas à Reserva de Dourados. Ao lado de seguranças e policiais militares, o DOF atacou os Guarani e Kaiowá. Entre os feridos, um menino de 11 anos teve os dedos da mão esquerda decepados pela explosão de uma bomba.
“A comunidade não acredita nessas polícias, no DOF. Eles não vêm para proteger, mas para atacar. Acontece frequentemente dessas polícias nos abordarem fora da área indígena para intimidar. Na estrada vicinal, na cidade. Aqui em Douradina quase não tinha polícia. Começamos as retomadas e de repente tem blitz, policial abordando a gente, intimidando”, afirma.
DOF: uma polícia ruralista
O DOF é uma polícia estadual, mas com histórico de atuação em territórios indígenas, incluindo aqueles que não estão na região de fronteira, caso da TI Lagoa Panambi e as retomadas do entorno da Reserva de Dourados. A origem desta polícia, contudo, demonstra a razão de muitas de suas operações ocorrerem em áreas indígenas com conflitos fundiários estabelecidos.
Ruralistas do estado foram os principais financiadores da criação do DOF em 1987, ainda com o nome Grupo de Operações de Fronteira (GOF) reunindo policiais militares e civis. O objetivo era o de coibir crimes em propriedades rurais na região de fronteira. Em 1996, um decreto muda o nome do grupo e o aloca na Secretaria Estadual de Segurança Pública.
A primeira sede do ainda GOF, erguida em 1994, foi inteiramente financiada pela Sociedade dos Amigos da Liberdade, Vigilância e Esperança (Salve), fundada e integrada por latifundiários do estado. Em seu hino, o DOF é ressaltado como o “pioneiro da integração”. Neste contexto, estão os povos indígenas que desde meados da década de 1970 passam a fazer retomadas.