Um olhar sobre o tráfico de pessoas no Brasil

Relatório divulgado esta semana traz dados e análises sobre a prática criminosa, ainda altamente subnotificada no país

André Antunes – EPSJV/Fiocruz

O trabalho escravo segue sendo a principal finalidade do tráfico de pessoas no Brasil, seguido pela exploração sexual. É o que apontam dados do ‘Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas: dados 2021 a 2023’, produzido em conjunto pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e divulgado no dia 30 de julho, Dia Mundial contra o Tráfico de Pessoas.

O documento reúne informações coletadas de diversos órgãos que atuam com o tráfico de pessoas, como Polícia Federal, Defensoria Pública da União (DPU), Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas). Finalidades de exploração do tráfico de pessoas, perfil das vítimas e números sobre indiciamentos e prisões referentes ao crime no país estão entre as principais informações presentes no relatório, que traz também reflexões sobre os desafios no enfrentamento desse crime.

Dados

Desde 2016 o Brasil possui uma lei específica para tratar da repressão e prevenção ao crime de tráfico de pessoas. A lei 13.344/2016 definiu o delito como “agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: remover-lhe os órgãos, tecidos ou partes do corpo; submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; submetê-la a qualquer tipo de servidão; adoção ilegal; ou exploração sexual”. Segundo o relatório do UNODC e do MJSP, o tráfico de pessoas pode ser considerado um indicativo do grau de vulnerabilidade socioeconômica de determinadas populações, uma vez que ela é condição essencial para o ciclo de exploração. “A falta de oportunidades laborais e de perspectiva de sobrevivência podem levar à geração de dívidas e, a partir desse momento, abre-se o caminho para todas as formas de exploração relacionadas ao tráfico de pessoas”, pontua o documento.

Números da Polícia Federal dão conta de que pouco mais da metade dos 94 inquéritos por tráfico de pessoas registrados entre 2021 e 2023 tiveram como finalidade o trabalho em condições análogas a de escravo (50); outros 25 tiveram como fim a exploração sexual das vítimas; servidão e adoção ilegal registraram oito inquéritos cada e, por fim, foram registrados três inquéritos por tráfico de pessoa com finalidade de remoção de órgãos.

Já segundo o MPT, foram instaurados 496 procedimentos de tráfico de pessoas em 2023, sendo 393 por exploração do trabalho em condição análoga ao de escravo, 27 por exploração sexual e 76 por demais hipóteses; em 2022, por sua vez, foram 141 procedimentos instaurados por exploração laboral, 13 por exploração sexual e 43 por outras hipóteses; já em 2021, ano de pandemia, foram instaurados apenas 11 procedimentos por exploração laboral, um por exploração sexual e 7 pelas demais hipóteses. Apesar do baixo registro em um contexto mundial, bem como nos dados da PF e do MPT, a adoção ilegal aparece com um volume grande de processos referentes ao tráfico de pessoas tramitados na Justiça Estadual: segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 52% deles se deram por adoção ilegal; outros 39% foram por exploração sexual e apenas 4% por trabalho escravo.

Já p Sistema Nacional de Informações Penais (Depen), por sua vez, que registra apenas situações de tráfico de pessoas para exploração sexual, somou 505 pessoas presas por esse motivo entre 2021 e 2023 (primeiro semestre). A imensa maioria homens: 492. Desses, 376 foram presos por tráfico internacional de pessoas, além de 10 mulheres, enquanto 116 homens e três mulheres foram presos por tráfico interno de pessoas.

Um dado que chama atenção é o do número de imigrantes em condições análogas à escravidão, que segue em crescimento. Entre 2021 e 2023 foram resgatados/as 355 trabalhadores/as não nacionais, sendo 228 paraguaios, 64 venezuelanos e 44 bolivianos. O relatório chama atenção para a situação das mulheres que migram acompanhadas dos filhos, que estão mais suscetíveis a aceitarem ofertas precárias de trabalho, pela dificuldade em conciliar a inserção no mercado formal de trabalho e o cuidado com as crianças.

Uma mudança registrada no relatório em relação aos anteriores foi um aumento dos casos registrados pelos postos consulares do Brasil no exterior de brasileiros vítimas de tráfico de pessoas para fins de exploração laboral, que foi a principal finalidade do tráfico internacional de brasileiros e brasileiras registrada pelas autoridades consultadas para o relatório. Nos três relatórios anteriores a maioria dos casos registrados de tráfico de brasileiros/as no exterior tinha como finalidade a exploração sexual. Entre 2021-2023, por sua vez, foram identificados 109 possíveis vítimas de exploração laboral, 21 de exploração sexual e 45 de exploração mista (quando há tanto exploração laboral quanto sexual).

Invisibilização

O relatório destaca o que chama de “finalidades invisibilizadas” do tráfico de pessoas. Uma que ganhou relevância do último relatório para esse foi a exploração do trabalho doméstico. Segundo o documento, no país ela frequentemente se vincula a chamada “adoção à brasileira”, na qual meninas e mulheres negras, em sua maioria, são trazidas de cidades do interior para morar na capital com a desculpa de que poderão estudar, mas acabam sendo exploradas, sem salário ou direitos trabalhistas, podendo inclusive sofrer abusos. Se em 2017 apenas três trabalhadores/as foram resgatadas nessas circunstâncias, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) presentes no relatório, em 2021 foram 40 casos. “Em regra o MPT não teria atribuição de atuar num caso tradicional de tráfico de pessoas para fins de adoção, por ser um órgão de defesa da ordem jurídica trabalhista. Mas a gente está vivenciando um retrocesso a uma história colonial, em que temos resgatado várias pessoas já na meia idade, que foram ‘adotadas’ num modelo informal e acabaram em situações de servidão”, diz Tatiana Simonetti, vice-coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do MPT. “É aquela situação em que uma família em situação de miséria, com quatro, cinco filhos, acaba dando uma filha para ser criada por outra família, mais abastada. Essa criança por vezes fica num estado de servidão ao longo de anos, com um falso manto de que é da família, mas não é. Ela não tem tempo para brincar, não recebe o mesmo afeto, o mesmo cuidado. Todos seus direitos lhe são sonegados, inclusive de se desenvolver como pessoa, como ser social”, pontua a procuradora, complementando que o MPT tem atribuição de atuar em casos como esse, que configura uma situação de trabalho análogo ao escravo em âmbito doméstico. “É através do reconhecimento dessa pessoa como titular de direitos que ela vai ter o direito a benefícios previdenciários, aposentadoria, ela vai ser incluída no CadÚnico para ter reparação pelos dados materiais e imateriais sofridos”.

Outra finalidade “invisibilizada” do tráfico de pessoas no Brasil, de acordo com o relatório, é a exploração do trabalho sexual. Segundo Tatiana Simonetti, o enfrentamento ao tráfico de pessoas para fins de exploração sexual muitas vezes esbarra no estigma que o trabalho sexual possui na sociedade brasileira. “O trabalho sexual é uma atividade lícita, embora não regulamentada. A falta de regulamentação faz com que essas trabalhadoras sofram estigmas, preconceitos, sejam criminalizadas. A partir do momento que a gente ignora o trabalho sexual como atividade a gente está estimulando, invisibilizando a exploração sexual e sonegando direitos a esses grupos”, alerta a procuradora. Segundo ela, apesar de ser um órgão de defesa de direitos trabalhistas fundamentais, o MPT recebe muito poucas denúncias de exploração sexual. “Isso quer dizer que as vítimas não se reconhecem como titulares de direitos trabalhistas, não denunciam para o sistema de justiça trabalhista. Quer dizer também que quem atua no combate ao crime e reconhece o tráfico para esse fim também não encaminha essas pessoas para nossa tutela. Isso faz com que as vítimas tenham seus direitos sonegados, tenham falta de autonomia financeira para viver e terminem aceitando esquemas predatórios. Um problema cíclico”, aponta.

4º Plano Nacional de Enfrentamento

O exemplo ilustra a importância da coordenação e integração dos esforços das várias instâncias que atuam na questão do tráfico de pessoas no país. Não à toa, esse é um dos eixos do 4º Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, divulgado também no dia 30 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. Além desse, o plano, com vigência até 2028, apresenta ainda outros quatro eixos, em torno dos quais se estruturam seus princípios, diretrizes e objetivos: estruturação da política de enfrentamento ao tráfico de pessoas; prevenção; proteção e assistência às vítimas; e repressão e responsabilização dos autores.

Destacando a construção colegiada do plano, com a participação de várias instituições do governo federal e Ministério Público em sua elaboração, Tatiana explica que um de seus objetivos centrais será a organização de setores especializados no tráfico de pessoas em cada órgão. “O MPT já tem ofícios especializados para o tema. Temos uma coordenadora nacional e coordenadorias regionais que atuam de forma conjunta. Mas essa ainda não é a realidade de outros órgãos. Então no plano tentamos implementar essa diretriz, para que houvesse varas especializadas dentro dos órgãos como o MPF e a DPU, da Justiça, seja da área criminal ou trabalhista. Isso ajuda os agentes que ocupam essas varas a entender melhor o fenômeno. A política avança muito nesse sentido”, explica Simonetti.

Segundo ela, o plano também buscará compreender e combater o que ela chama de criminalização das vítimas por parte de algumas decisões e ações de agentes que lidam com o tráfico de pessoas no Brasil. E exemplifica: “Essas vítimas quando estão numa situação de subjugação, de exploração sexual por exemplo, elas consomem drogas, traficam drogas, às vezes estão numa posição de fazer ‘aviãozinho’ mesmo. Elas sofrem violência, ameaças. O consumo de drogas para essas pessoas muitas é um instrumento para mantê-las nessa condição de servidão. É preciso que isso seja levado em conta pelo sistema de justiça”.

Segundo Simonetti, apesar dos avanços – políticos, institucionais, jurídicos – registrados nos últimos 20 anos na área do enfrentamento ao tráfico de pessoas, ainda há uma grande subnotificação do problema no Brasil. “Os dados não são uniformes, cada instituição colhe dados de forma diferente da outra. A gente tem subnotificação no próprio MPT, porque o número de investigações e de ações que a gente tem em relação a trabalho escravo não corresponde ao número sobre tráfico de pessoas. Estamos evoluindo em registrar que determinado caso de trabalho escravo também envolve recrutamento, violação de direitos, como está descrito na legislação sobre tráfico de pessoas. Precisamos ter uniformidade no registro dos casos, para compreender o fenômeno em números, como um todo”, diz a procuradora.

Foto: rawpixel.com/Freepik

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