Faz sentido falar em luta de classes hoje? Por Douglas Barros*

Nosso esforço deve ser reconduzido a entender a luta de classes não como uma escolha narrativa, mas como algo dado numa realidade material organizada a partir da exploração necessária à manutenção do capital.

Blog da Boitempo

No princípio era o chip

Em 1946, Mauchly e Eckert, cientistas da Universidade da Pensilvânia, na frente de uma plateia composta por colegas, curiosos e militares do exército norte-americano deixaram as luzes de toda Filadélfia piscando quando ligaram o ENIAC (calculadora e integrador numérico eletrônico). Esse foi considerado o primeiro computador. Tratava-se de um trambolho de 30 toneladas, 2,75m de altura, 70 mil resistores e 18 mil válvulas a vácuo, uma herança da Segunda Guerra. É muito provável que embora soubessem da importância do empreendimento, eles ignorassem que o piscar das luzes da cidade selaria o início de uma profunda e decisiva transformação tecnológica.1

Com efeito, o chip Intel, inventado por Ted Hoff, vinte e cinco anos depois – 1971 – daria o pontapé inicial à corrida da inovação tecnológica na área da computação. O nascimento do microprocessador tornou-se estopim de uma transformação geral no mundo da eletrônica. Já em 1976, os pós-hippies, Steve Woznick e Steve Jobs, usando a garagem de casa, lançavam a Apple após o sucesso com o Apple II; o primeiro microcomputador comercial. Uma década na qual o Vale do Silício se tornou o quartel general de onde sairiam os maiores nomes da era da informação advindos da “contracultura” da qual o pobre Marcuse, que nada tinha a ver, sofreu com as consequências.

Na corrida, a IBM, diante do sucesso da Apple, criou sua própria versão do microcomputador batizando-o de Personal Computer, o nosso popular PC. Disparos de inventividade que, após diversas experimentações no que concernia ao tráfego de dados, culminaram no desenvolvimento de softwares – adaptados primeiramente por Bill Gates e Paul Allen. Com a consolidação dos softwares, como ferramenta capaz de organizar o tráfego, houve então uma efetiva popularização da Internet que aos poucos romperia as fronteiras da Califórnia. Curiosamente, e não por acaso, tudo isso ocorreu na, assim chamada, última década vermelha quando Cassandras diziam mundo afora que a luta de classes estava arrefecendo.

Consolidada a aliança norte-americana entre a academia e o exército, algo central para o desenvolvimento da tecnologia informacional, a relação com o espaço e o tempo se alterou profundamente ao se tornar homóloga à transnacionalização dos processos de produção e reprodução do capital. Processos guiados por fluxos de produção de mercadoria que passam a ser abalizados por demandas interconectadas em redes globais que ditam just in time a demanda orientada pelos investimentos.

Nos anais dessa história, a agência de projetos de pesquisa avançada (ARPA), do Departamento de defesa dos EUA, criou um sistema de comunicação invulnerável com base numa rede independente de centro de controle. Cada ponto da rede funcionava como toda a rede de modo que não era possível localizar de onde provinha ou para onde ia a informação. Em meio à “gloriosa” Guerra Fria, a estratégia adotada visava a assegurar informações se acaso ocorresse um ataque nuclear. O excedente dessa medida foi tornar a tecnologia digital descentralizada; as mensagens encontravam suas próprias rotas ao longo da rede gerando condições tecnológicas “para a comunicação global horizontal”.2

No rastro dessa revolução informacional – sem lastro na história humana –, e que acompanhava as transformações na reprodução social, foi preciso encontrar um léxico adequado correspondente às formas administrativas que se organizavam nos porões do capitalismo: a ruína do Welfare (Warfare) State. E assim uma nova gramática que substituísse a ideia de luta de classes tornou-se um dos objetivos da reengenharia social que teria na logística sua característica central. Nascia o nosso mundo.

Há algo de podre no reino do capitalismo

A necessidade de interligar mercados passa a ter como uma das metas colher informações para estabelecer algum grau de segurança aos investimentos em sintonia com uma racionalidade cujos teóricos neoliberais, desde o Colóquio Walter Lipmann, aguardavam ansiosos para pôr em prática. A informação, central para reduzir os custos e dispersar a produção geograficamente, tem como resultado a consolidação da concorrência entre regiões do globo e Estados que precisaram vender a ideia de que eram seguros aos negócios. Ou seja, a revolução comunicacional foi paralela à transformação na morfologia do capital que passava por uma reestruturação produtiva e seria acompanhada por uma engenharia da gestão social totalmente nova impactando o Estado.

Foi assim que também um grande sistema de vigilância e colhimento de dados individuais passou a se organizar. As forças de produção high-tech tornaram as relações de produção radicalmente fantasmagóricas; reguladas por formas jurídicas e tratados transnacionais que englobam diversos países. E, portanto, a propriedade da informação se tornou, para acompanhar o argumento de Mackenzie Wark, uma nova propriedade privada que redefiniu as relações de classe.3

Com isso, uma nova gramatica administrativa viria consolidar um imaginário em concordância com as formas de gestão; uma língua administrativa que forjou uma comunidade imaginada global. Nada muito animador aí, pois, quanto mais flexíveis, e em tempo real, se tornaram as transações financeiras tanto mais rígidas e inflexíveis se constituíram as fronteiras entre indivíduos cada vez mais apegados às suas identidades.

No esteio dessas radicais transformações, porém, estavam as crises. Não há dúvida de que nos anos 1970 a crise econômica causada por uma estagflação – a mortífera combinação entre inflação e recessão; preços elevados e baixo poder de compra, endividamento maciço e desemprego – abriu alas para uma radical transformação no sistema de reprodução social. Essa crise foi fundamental ao impulso à nova figura do espírito do capitalismo. No fundo tratava-se de uma crise na absorção da mão-de-obra que impactava a valorização do valor deixando evidente o que Marx prenunciou no século XIX.

Paul Volcker, presidente à época do Federal Reserve, tendo em mente as lições tiradas de 1930, diante de graves sintomas de recessão, decidiu elevar a taxa de juros para combater a inflação. No começo dos anos 1980, o índice inflacionário é revertido,4 mas, a recuperação da economia norte-americana tem um impacto decisivo na América Latina selando qualquer esperança de integração das economias dependentes ao sonhado butim do desenvolvimento e ampliação da concorrência externa. Devemos relembrar que nos anos 1970 muitos governos latino-americanos, sob o chumbo grosso das ditaduras, optaram por projetos neodesenvolvimentistas financiados por capitais estrangeiros mediados por bancos norte-americanos e europeus.

Se a elevação da taxa de juros, por um lado, enxugou o dinheiro no esteio da circulação, por outro, fez com que as dívidas contraídas pelos países da região sul, feitas em moedas estrangeiras, disparassem. Com dólares em menor circulação, uma subida abrupta do valor da moeda dilapidou os valores das moedas locais e tornou impossível aos países honrarem suas dívidas. Foi esse processo que, em 1982, levou o México à moratória causando seu colapso econômico.

No Brasil, vimos um lastro de inflação que depreciou radicalmente os valores da antiga moeda e aprofundou de maneira radical as desigualdades de renda. Esse é um dos possíveis caminhos para explicar a queda abrupta do crescimento econômico e da taxa de produtividade nos países subdesenvolvidos. A fuga de capitais impôs o aprofundamento do subdesenvolvimento às economias latino-americanas que, sob regimes ditatoriais, ainda apostavam no desenvolvimentismo. Isso foi fundamental para a desestabilização das ditaduras. No Brasil isso foi acompanhado por um radical crescimento do movimento operário que, em termos mundiais, fechava as cortinas da luta de classes no século XX.

Com a revolução técnico-cientifica-informacional, como dirá Kurz, os potenciais de racionalização dos processos de produção superam os de consolidação e abertura de novos mercados.5 Se do acaso se faz necessidade e da necessidade leis, esses processos estão reciprocamente imbricados. A capacidade do capitalismo fagocitar todos os espaços da vida social para os tornar rentáveis promovendo uma subjetividade consumidora atada ao trabalho improdutivo se coloca como central.

E, assim, o novo tempo do capitalismo torna-se um tempo acelerado que promove uma financeirização na qual a busca por retornos rápidos aos investimentos dirige as relações econômicas. Os impactos dessa aceleração serão vividos também de maneira subjetiva. Com a alta aceleração “não há mais aqui a suposição de uma ‘vida mais elevada’ nos esperando depois da morte” diz Hartmut, “mas sim a busca por realizar tantas opções quanto possível dentro das vastas possibilidades que o mundo tem a oferecer”.6

Conjugada à dinâmica do consumo, como novo modelo de vida, o desejo individual é capturado pela demanda do mercado e orientado à satisfação. As opções sempre serão maiores do que nossa capacidade de experimentá-las e, por isso, a frustração se torna regra geral da vida coletiva que destrói a subjetividade promovendo patologias psíquicas como identidades e reservas de mercado.

Onde foi parar a luta de classes?

Com o aumento exponencial da produtividade e a transformação tecnológica, porém, a crise se encontra com a ontologia do ser neoliberal. A partir disso uma nova cosmovisão – amparada pela forma de reprodução do capitalismo, agora globalizado graças, entre outras coisas, à consolidação das redes e fluxos de mercado mundo afora – se efetiva de maneira dramática. Do ponto de vista do mundo do trabalho, aqueles enormes parques industriais, que comandavam a dinâmica de cidades inteiras, cedem espaços à ruina.

Como legitimação dos valores da modernização, a Aufklärung, como aliás bem sabiam Adorno e Horkheimer, não se tornou popular; também aquele universalismo relacionado à garantia de reprodução do capitalismo não pôde mais ocultar o sistema de exclusão daquelas identidades não contempladas na forma de sua reprodução. Mesmo o direito e a ideia de democracia entraram em crise e abriu-se uma nova tentativa de contemplar “identidades” excluídas nos processos de modernização.

Na nova língua da administração, o trabalhador se torna um colaborador e os mecanismos de sua atuação e autonomia, enquanto corpo político, são esvaziados pela gestão à esquerda. Vazio logo preenchido pelo fetichismo da inclusão que articula identidades enformadas com base na herança cultural e religiosa. Sendo a identidade, tal como as tradições, uma criação não uma descoberta,7 na nova gestão, a desubstancialização das identidades excluídas no processo de modernização passará pela reconfiguração de sua história, substituindo o aspecto crítico e criterioso da história por narrativas e suas “lutas”. Com isso, a luta de classes desaparece enquanto léxico administrativo sendo substituído pelo sociologismo do conflito social com anuência da intelligentsia globalizada.

No início dos 1950, após a hecatombe da Segunda Guerra feita sob as insígnias da noção racial, fica evidente algo que o conservador Tocqueville previu: a democracia liberal era incapaz de resolver esse problema.8 O direito, base de sustentação da democracia-liberal, na sua imparcialidade, organizada a partir da abstração da realidade histórica, se via numa encruzilhada. Com os modelos aritméticos de abstração em nome da troca e dos contratos, o direito burguês pós-Segunda Guerra, ante contradições no terreno social, se deparou com o seu reflexo: sua universalidade estava restrita ao homem branco e proprietário.

O caráter excludente e abstrato do universalismo formal se torna obsoleto quando o processo de globalização se efetiva e a produtividade torna inabsorvíveis o grosso da população mundial. Uma fundamental crise de valorização do valor, alicerçada na crise do mundo do trabalho, causa um empecilho fundamental à absorção da mão de obra e é precisamente nesse momento que a identidade se assenhora de maneira contraditória do quadro sócio-político.

A centralidade da identidade, que será dada pela forma de gestão dos conflitos no capitalismo de crise, expressa um sintoma do ocaso das formas de absorção de grupos humanos pela modernização. Um abandono das apostas liberais clássicas guiado pelas ilusões perdidas ante a modernidade. É a crise resultante do fracasso de integração à economia global, portanto, que intensifica os pressupostos da identidade de grupos de pertencimento. Esses pressupostos, delimitados pela identificação estatal, serão ativados de maneira inédita para reconfigurar a organização social e integrar identidades à meritocracia e à competição necessárias ao novo modelo de gestão. A noção de pertencimento retoma à cena político-social décadas depois que a pertença Nazi sucumbiu ante o antifascismo.

Daí a entrada em ação dos dispositivos de governo que orientam as demandas de grupos específicos. Há uma via de mão dupla exercida por eles: por um lado, enfraquecem a autonomia dos grupos racializados e excluídos, por outro, servem à identificação estatal que possibilita a otimização das demandas orientando-as à gestão. Esse desdobramento, que tem seu prognóstico no maio de 68, tem sua confirmação com o fim da URSS. Com o campo estreito da política vertida em administração, com a violência radical da vigilância, com a militarização do espaço social, a gestão da identidade passa a ser o funil da sobrevivência que impõe adesão forçada à colaboração por parte dos militantes convertidos em ativistas.

A armadilha do identitarismo se coloca tendo em vista que para pensar uma política da identidade é necessário torná-la fechada e determinada por grupos de afinidades organizados por dados gerenciais através de especialização da demanda frente ao Estado. Nas palavras de Silvio Almeida: “a identidade se torna uma armadilha quando se converte em uma política, ou mais precisamente em política da identidade, ou ‘identitarismo’”.9 Essa redução da política, orientada pelo jogo da semelhança estereotipada, é baseada numa narrativa fragmentada e por subjetivismos atravessados pelo relato do eu posto no seu lugar de fala. O seu limite é a instauração de uma cosmovisão governada pelas fronteiras imaginadas que o próprio mundo objetivo, organizado pelo capitalismo, produziu.

Sob toda essa parafernália ideológica rumoreja a ruína social, cria-se e recria-se diuturnamente uma gramática da gestão e oblitera-se a possibilidade de qualquer conflito político substancial que leve à luta de classes. Assim, para organizar ideologicamente os grupos de pertencimento se recria a história – que se torna mera narrativa –  e se oblitera os traumas na raiz da sua construção imaginária. Talvez, o mais importante seja a percepção do esquema sútil: não é que o esquecimento é imposto senão que a memória é reorganizada mudando os significados do passado à sombra das necessidades presentes do sistema. A memória se torna monopólio de mercado organizada pelo entretenimento.

Assim, o desenvolvimento da tecnologia da comunicação possibilitou também uma ofensiva permanente contra a noção de luta de classes que “precisou” ser extirpada do imaginário social. Através do controle daquelas identidades historicamente excluídas transformou-se a desgraça em redenção. A violência, que uma identidade é, passa a ser objeto de celebração e não de superação. E, portanto, um permanente exército de gestores – sociólogos, antropólogos, filósofos, psicólogos etc – é mobilizado diuturnamente para consolidar uma analítica pré-kantiana que estabilize uma ordem hierárquica de demandas que consolide a ideia de classes como só mais uma delas.

O problema é que por mais operações que se façam, por mais policiais que sejam as medidas que evitam dizer luta de classes, a violência da exclusão se processa e se reproduz na opressão de trabalhos cada vez mais precários e executados justamente pelos portadores das “identidades” que os progressistas dizem defender. Aliás, a violência de classe contra essas “identidades” é a marca característica dos nossos dias. Nosso esforço então deve ser reconduzido a entender a luta de classes não como uma escolha narrativa, mas como algo dado numa realidade material organizada a partir da exploração necessária à manutenção do capital. De modo que, olhando bem, sequer faz sentido perguntar se faz sentido falar em luta de classes. Se não há pergunta burra, talvez, essa seja a exceção que confirma a regra!

Notas
1 Cf. WU, T. Impérios da comunicação: do telefone à internet, da AT&T ao Google. São Paulo: Zahar, 2012.
2 CASTELLS, M. A sociedade em rede. Tradução Roneide Venancio Majer. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.
3 Cf. WARK, M. O capital está morto. Traduzido por Dafne Melo. São Paulo: Editora Funilaria e sobinfluência edições, 2022.
4 ROUBINI, Nouriel; MIHM, Stephen. A economia das crises: um curso-relâmpago sobre o futuro do sistema financeiro internacional. Tradução Carlos Araújo. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010.
5 Cf. KURZ, R. Poder mundial e dinheiro mundial: crônicas do capitalismo em declínio. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2015.
6 HARTMUT, R. Alienação e aceleração: por uma teoria crítica da temporalidade tardo-moderna. Tradução de Fábio Roberto Lucas. Petrópolis, RJ: Vozes, p. 41.
7 Aqui concordam figuras dispares: Bauman e Cesairé, Benedict Anderson e Eric Hobsbawm.
8 MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra.
9 HAIDER, A. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. Tradução Léo Vinicius. São Paulo: Vendeta, 2019.

*psicanalista e doutor em ética e filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Professor filiado ao Laboratório de experiências coloniais comparadas, ligado ao Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor na pós-graduação em filosofia da Unifai. Investiga principalmente a filosofia alemã conjuntamente com o pensamento diaspórico de matriz africana e suas principais contribuições teóricas no campo da arte e da política.

Imagem: Adam Harangozó (Wikimedia Commons)

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