Ameaça das queimadas à saúde só cresce

Estudo indica: fumaça de incêndios de mata causou 52 mil mortes prematuras na Califórnia em uma década, além de alastrar doenças crônicas. Poderiam os dados inspirar uma política para enfrentar os efeitos da crise do fogo no Pantanal e na Amazônia sobre a saúde?

por Guilherme Arruda, em Outra Saúde

O novo recrudescimento dos incêndios no Pantanal, desde a semana passada, voltou a pôr as consequências das mudanças climáticas sobre o Brasil em primeiro plano. A proporção da destruição é inaudita: se em uma semana 400 mil hectares do bioma já foram consumidos, a área afetada desde o início de 2024 chega a 1,3 milhão de hectares, ou 8,3% do bioma, indicam observações do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa-UFRJ).

Assim como em outros anos em que a tragédia do fogo no Pantanal se tornou particularmente aguda, como em 2020, as primeiras perdas que se destacam pelas imagens que vêm do Mato Grosso do Sul são as de caráter ambiental – afinal, as sequelas para a biodiversidade são imensas, e possivelmente irreparáveis. Contudo, esses eventos também representam um importante risco à saúde.

Já são bastante conhecidos da ciência os efeitos imediatos de queimadas como as que atingem o Pantanal sobre a saúde humana – em especial, elas se associam a um grande crescimento dos problemas respiratórios. Porém, uma nova pesquisa realizada no estado norte-americano da Califórnia, também particularmente afetado pelos incêndios florestais, traz novas informações sobre os efeitos de longo-prazo desse tipo de catástrofe sobre nosso bem-estar.

Publicado no periódico acadêmico Science Advances (ligado à revista estadunidense  Science), o estudo aponta que a fumaça dos incêndios está diretamente ligada a mais de 52 mil mortes prematuras na Califórnia entre 2008 e 2018, além de um número ainda maior de casos de condições crônicas como diabetes e aterosclerose na população local – uma associação que ainda não havia sido feita por nenhuma outra pesquisa de caráter epidemiológico naquele país. Seus autores destacam que, com o aumento das temperaturas e da aridez em todo o mundo, “a importância de políticas para gestão dos incêndios só crescerá”.

Os riscos descobertos na Califórnia

No centro da investigação liderada por Rachel Connolly e Michael Jerrett, pesquisadores da Escola de Saúde Pública da University of California, Los Angeles (UCLA), está a grande profusão de componentes químicos presentes na fumaça dos incêndios, oriunda do material que o fogo consumiu.

As chamadas partículas finas (no jargão científico, PM2.5), que se fazem presentes no ar em grande concentração nas queimadas, reúnem uma série de substâncias tóxicas – sua inalação pelas pessoas, além de rapidamente causar crises respiratórias, é que estaria associada às mortes prematuras e ao desenvolvimento de problemas crônicos, para os estudiosos. “Análises epidemiológicas baseadas em admissões a hospitais no sul da Califórnia sustentam as evidências toxicológicas, pois trazem conclusões que indicam que a fumaça das queimadas é até 10 vezes mais danosa à saúde humana do que partículas finas de outras origens”, eles dizem, além de ter maior impacto sobre a mortalidade.

Os pesquisadores propõem que metodologias de observação dos efeitos dos incêndios sobre a saúde mais concentradas em seus efeitos imediatos dificultaram a identificação de sua associação a doenças crônicas. Acompanhar por vários anos moradores de regiões da Califórnia afetadas diretamente e indiretamente pelo fogo ajudou a “capturar tanto a contribuição de longo-prazo da poluição do ar para a formação de doenças quanto a mortalidade aguda que ocorre quando indivíduos mais suscetíveis são expostos a concentrações mais altas de PM2.5 ao longo de dias”, como no caso das queimadas.

Por isso, outros modelos acabariam “subestimando os efeitos [da fumaça], porque deixam de considerar a contribuição acumulada da PM2.5 para doenças crônicas como aterosclerose, asma, perdas na função pulmonar e diabetes”. Essa contribuição estaria ligada principalmente às inflamações causadas pelas partículas finas no corpo, que estimulariam o desenvolvimento dessas condições.

Apesar disso, eles apontam que não são só aqueles que moram nas regiões de incêndios que são afetados por eles. Como podem lembrar os que viram a fumaça da Amazônia cobrir o céu de São Paulo quando das queimadas de 2019, a distância geográfica do fogo não basta para estar a salvo de seus efeitos. O estudo californiano frisa que os componentes químicos da fumaça podem viajar centenas ou mesmo milhares de quilômetros e mesmo assim afetar a saúde daqueles que os aspirarem.

“Ainda que o fogo esteja em áreas mais rurais, os impactos na mortalidade são mais profundos em centros populosos, como o condado de Los Angeles e a área da Baía de San Francisco […], já que a fumaça pode se deslocar para esses locais”, diz o artigo. Por isso, eles apontam, uma política clara para enfrentar a multiplicação dos incêndios na Califórnia nas últimas quatro décadas é urgente.

Enfrentaremos o problema no Brasil?

No Brasil, a escala do problema das queimadas também só cresceu nos últimos anos. A atual crise no Pantanal dá sinais de que uma resposta institucional pode estar surgindo, após anos de negligência. Na quarta-feira da semana passada (31/7), em visita à região do Mato Grosso do Sul mais afetada pela atual onda de incêndios, o presidente Lula sancionou a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo.

À Folha, representantes de duas organizações da sociedade civil que atuam na defesa da biodiversidade pantaneira elogiaram a estratégia contra as queimadas do Governo Federal, apontando que ela está “mais robusta” do que as ações da administração Jair Bolsonaro em 2020. Segundo o presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), um aspecto decisivo da nova Política Nacional é que ela incorpora os saberes tradicionais e as práticas acumuladas pela experiência dos trabalhadores desse órgão e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) no combate ao fogo.

Assim, o avanço vem em boa hora – mas não se pode perder de vista a magnitude realmente gigantesca do problema que deverá ser enfrentado por essa (e outras) políticas. Também cabe lembrar que a alta das queimadas não é um crime sem culpados: as mudanças climáticas provocadas pela ação humana intensificaram em 40% os incêndios florestais no Pantanal, diz recente estudo. Ainda vale dizer que a recente conduta do Governo Federal frente aos grevistas do Ibama e do ICMBio foi, para dizer o mínimo, descompassada com a importância desses servidores para o país.

O alerta do estudo californiano sobre os efeitos de longo prazo da fumaça dos incêndios florestais sobre a saúde das pessoas pode ser um bom mote para a intensificação das ações que enfrentam o alastramento dessas catástrofes climáticas, como sugerem os pesquisadores – ou, quem sabe, até mesmo o início da formulação de uma política de saúde especificamente voltada para as populações afetados pelas queimadas, um contingente que só cresce.

Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

um × cinco =