PL do Estupro: Por que a ameaça continua

Mobilização popular barrou a votação do projeto, mas ele segue vivo no Congresso, em GT que irá discuti-lo. Correlação de forças tende a beneficiar a bancada evangélica. Em paralelo, outras três tentativas de retrocesso de direitos das mulheres são apresentadas

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Nas últimas semanas, a plataforma digital Criança Não é Mãe foi reativada para chamar atenção do Ministério Público e defender o direito de uma menina de 13 anos de Goiás. Após ser estuprada, ela procurou o serviço de aborto legal, mas foi inicialmente impedida de acessar seu direito pela justiça, com apoio da igreja e do próprio pai, que também é amigo do estuprador. O caso é o mais significativo depois da aprovação da urgência do chamado PL do Estupro (Projeto de Lei 1904/2024) na Câmara Federal. O projeto ganhou a opinião pública por propor a equiparação do aborto acima de 22 semanas ao crime de homicídio. Crianças e adolescentes são as principais vítimas dessa proposta, uma vez que normalmente descobrem a gravidez após esse período gestacional. As dificuldades encontradas pela menina de Goiás foram denunciadas por movimentos de mulheres e feministas, que saíram em defesa do direito dessa criança, seguindo a mobilização que conseguiu enfraquecer o PL do Estupro. Felizmente, no último dia 25 de julho, o Supremo Tribunal de Justiça autorizou o procedimento. Esse é o contexto no qual o segundo semestre parlamentar se inicia. O que esperar em termos da negociação dos nossos direitos diante das eleições municipais e das presidências na Câmara e no Senado?

Memória que não deve ser jamais esquecida

A ideia de criminalizar uma menina vítima de estupro que optasse por um aborto legal, que foi a base do PL 1904/24, despertou repulsa na população, em jornalistas, profissionais da saúde, da segurança pública e assistência social, religiosas/os, militantes na defesa dos direitos das crianças e adolescentes, entre outros. Os movimentos e organizações feministas tiveram papel primordial para evitar a violação de direitos e o retrocesso na legislação ao denunciar e promover articulações de forma capilarizada nos territórios e em diferentes segmentos da sociedade. Diante do constrangimento gerado a partir da mobilização nas redes e das ruas, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP/AL), um dos principais alvos da revolta, anunciou em coletiva de imprensa junto ao colégio de líderes, no último dia 18 de junho, que criará uma comissão representativa para discutir sobre o projeto. E a quem interessa um grupo de trabalho para discutir um projeto que não tem salvação? Podemos dizer que esse anúncio faz parte da prestação de contas de Lira à bancada evangélica em seu final de mandato como presidente da Casa.

O fato de o projeto ter ido direto a Plenário, em menos de um mês após sua apresentação, sem ter passado por nenhuma comissão para que fosse debatido, com base na sua infundada justificativa de urgência, foi alvo de críticas que denunciaram a ameaça democrática dentro dos trâmites do legislativo. Isso sem falar do fato de o presidente da Câmara não ter anunciado nem ter colocado no painel a votação do requerimento de urgência no dia de sua aprovação. Portanto, a necessidade de debate sobre o projeto a partir do marco democrático passou a ser a narrativa que Lira, sentindo-se pressionado, trouxe para sinalizar um suposto freio ao avanço do projeto neste primeiro semestre. No entanto, a comissão anunciada não tira a ameaça ao direito das mulheres, das meninas e das pessoas que gestam, já que o projeto pode ser votado a qualquer momento em Plenário, tendo em vista que a urgência foi aprovada.

A quem interessa o grupo de trabalho para discussão do PL do Estupro?

Durante coletiva de imprensa que tratou de estancar o forte repúdio da opinião pública contra o PL 1904, Lira anunciou: “Quero reafirmar que nada nesse projeto retroagirá nos direitos já garantidos e nada irá avançar para trazer qualquer dano às mulheres”. Entretanto, não há possibilidade do projeto ser atenuado, pois o seu teor em si é uma ameaça aos direitos de meninas, mulheres e pessoas que gestam. Ao contrário do que afirma o presidente da Câmara, o risco da comissão é inclusive que o projeto piore dadas as sugestões “bem-intencionadas” da extrema direita. É esse o palco que será montado na comissão, caso realmente seja criada. As únicas alternativas para que esse projeto não prejudique os direitos sexuais e reprodutivos seriam sua devolução ao seu autor ou o seu arquivamento. Para isso, há alguns requerimentos tramitando na Câmara, um deles (REQ 63/24) está na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, assinado por vinte parlamentares mulheres do PSOL, PT, PDT, PCdoB, PSB e SOLIDARIEDADE, mas que ainda não foi votado. O texto fundamenta muito bem as inconstitucionalidades do projeto, apontando para os artigos da Constituição que tratam do direito à vida, igualdade e não discriminação; violação da vedação de tortura, tratamento desumano e degradante; direito à saúde e direito ao acesso universal e igualitário aos serviços de saúde.

Criar uma comissão para discutir o projeto significa convocar parlamentares, que irão dedicar tempo de seus mandatos, e consequentemente direcionando recursos, estrutura e dinheiro público para se tratar de uma matéria que não pode ser melhorada sob a perspectiva da defesa de direitos, pelo contrário, tem perspectiva de piorar. Isso porque as comissões na Câmara são representativas, o que significa que, considerando a quantidade de deputados federais que cada partido possui, os partidos maiores ficariam com mais cadeiras e os menores com menos cadeiras. Em outras palavras, no Congresso mais conservador da história, o projeto seria debatido majoritariamente pela extrema direita e pela direita conservadora. Ou, caso a comissão seja composta por um parlamentar de cada partido, a representação seguiria essa mesma lógica. O campo que se posicionou contrário (PSOL, PT e PCdoB) ficaria em minoria dado que o projeto foi assinado por parlamentares filiados aos partidos PL, PP, REPUBLICANOS, MDB, UNIÃO, PRD, AVANTE, PSDB, PSD e PODEMOS. Além disso, por mais que a primeira fase da campanha Criança Não é Mãe tenha alcançado mais de 345 mil adesões em menos de um mês através da plataforma digital de pressão, o que se somou à grande mobilização da opinião pública evidente na pesquisa Datafolha, que mostrou que 66% da sociedade se colocou contrária ao projeto, a Bancada Evangélica que assina o projeto não se constrangeu. Ao contrário, se articulou para somar forças dentro da Câmara. Um exemplo é o fato de o autor Sóstenes ter convocado mais 27 parlamentares como coautores, a maioria deles homens e do Partido Liberal.

Ignorando mobilização pública, três novos projetos de retrocesso são apresentados

Outro exemplo foi a apresentação, mesmo depois de toda a comoção pública e das manifestações de mulheres pelo Brasil, de três projetos que visam restringir o direito ao aborto legal e ao atendimento às vítimas de violência sexual nos serviços de saúde. Um deles é o Projeto de Lei n° 2524, de 2024, apresentado no Senado, que além de criminalizar o aborto acima da 22ª semana de gestação em caso de estupro, propõe a equiparação a homicídio também nos demais precedentes legais (em caso de risco de vida para a gestante e em caso de feto anencéfalo). O outro projeto (2499/2024) foi apresentado na Câmara em coautoria coletiva que reúne vários congressistas que também assinaram o PL 1904/2024, e versa sobre a obrigatoriedade da notificação à autoridade policial, pelos hospitais, clínicas e unidades básicas de saúde, da interrupção de gestação decorrente de estupro. Trata-se de uma proposta com viés policialesco, que mais prejudica e afasta as vítimas dos serviços de saúde, do que as protege. Além disso, o referido projeto prevê que “as unidades de saúde ficam obrigadas a preservar fragmento contendo material genético embrionário ou fetal, a serem colocados à disposição da autoridade policial e judiciária, para possibilitar a perícia genética ou prova de paternidade”, o que pode ser usado para contrapor a palavra da mulher e até mesmo submetê-la a se relacionar ou manter proximidade com o agressor, o que é uma revitimização. Em vez de punir estupradores, as propostas buscam punir as vítimas de estupro.

A preocupação com o agressor em detrimento das vítimas tem sido historicamente o olhar equivocado que a extrema direita punitivista tece sobre a violência sexual. Como exemplo disso, Michelle Bolsonaro, presidente do Partido Liberal Mulher, em vídeo gravado em suas redes sociais, oferece sugestões a Sóstenes para mudar o projeto após toda revolta pública. Mesmo propondo a retirada da punição das mulheres que precisam de um aborto acima das 22 semanas, em suposta sensibilização, Michelle não defende o aborto legal nesse período e, pelo contrário, sugere uma pena severa aos médicos e profissionais de saúde envolvidos. No entanto, sem a equipe médica, as mulheres e meninas seriam impelidas ao aborto clandestino, o que seria um atentado contra as suas vidas e um grande retrocesso para os direitos sexuais e reprodutivos já conquistados. Ela também considera a penalização severa aos estupradores, inclusive a castração química. Este procedimento está em desacordo com a perspectiva de direitos humanos por ser extremamente violenta e ferir a integridade e gerar danos à saúde, além de não impedir que a pessoa estupre novamente. A punição aos agressores é de importância para muitas das vítimas, mas não deveria ser o foco de políticas de combate à violência sexual.

Além disso, Michelle sugere que as vítimas de violência sexual apresentem Boletim de Ocorrência para acessarem os serviços de aborto legal. Sabemos que esse documento serviria apenas como barreira institucional para acesso ao procedimento já que afasta as vítimas dos serviços de saúde. Na maioria dos casos de estupro, o violador é alguém do próprio círculo familiar, e a denúncia não é algo simples. De todo modo, a urgência é sempre que a vítima possa ser acolhida e amparada dentro dos serviços de saúde, sem que desconfiem de sua palavra.

Após serem acusados de defensores de estupradores por terem sugerido o dobro da pena para as vítimas de estupro em comparação as penas para os estupradores, parlamentares da extrema direita voltam seus olhares para o punitivismo como reparador da imagem e do compromisso com a própria agenda baseada no alto encarceramento e em severas punições.

Não satisfeitos, ao final do semestre legislativo, foi apresentado o terceiro projeto que nada mais é do que  a velha estratégia de PEC (29/2024) para incluir na Constituição que a vida deve ser protegida desde a concepção, definida como “junção entre o gameta masculino e o feminino”. A proposta é de autoria de mais de 180 deputados e deputadas de direita e de sua parte mais extrema, e tem como consequência a criminalização do aborto em qualquer circunstância.

Enquanto a Comissão proposta por Lira para avaliar o PL do Estupro não é confirmada e nem se forma, desmobilizando também as estratégias relativas ao tempo do debate, a extrema direita ultraconservadora ganha tempo para adensar seus frágeis argumentos em defesa da vida abstrata. Quando será que os olhares no Congresso Nacional estarão, de fato, voltados para a garantia de direitos e o acesso à saúde, educação e segurança das vítimas de estupro e das demais mulheres que necessitam interromper uma gestação, em especial as decorrentes de violência sexual?

Para além do PL 1904/24, há outras ameaças tramitando na Câmara

O contexto de eleições para a presidência da Câmara e do Senado em 2025, bem como as eleições municipais deste ano, apontam para o alto risco dos direitos das mulheres, meninas, pessoas que gestam e demais minorias representativas. A aprovação do requerimento de urgência em plenário nada mais foi do que o cumprimento de uma das promessas que Arthur Lira fez às suas alianças evangélicas e católicas mais conservadoras, com destaque para a Frente Parlamentar Evangélica, no final de seu mandato enquanto presidente da Câmara. Barrar o PL 1904/24 foi importante, mas ainda não nos aliviou completamente, já que há outras ameaças. Ao final do primeiro semestre, foram identificados mais de 100 proposições legislativas que ameaçam o direito ao aborto no Brasil, por exemplo.

Vale destacar que a PEC 9, que trata da anistia aos partidos políticos que descumpriram as cotas de sexo e de raça, entrou na pauta do Plenário em poucas semanas após a aprovação do requerimento do PL do Estupro, mas foi retirada antes de sua discussão. Entretanto, como peça de chantagem, voltou à pauta do Plenário e foi aprovada no dia 11 de julho, com uma diferença gritante: em primeiro turno, foram 344 votos a favor e 89 contra; no segundo turno a desproporção foi similar, 338 votos a favor e 83 contrários. Esse exemplo mostra como a ameaça aos direitos sexuais e reprodutivos e os direitos políticos das mulheres, principalmente negras, é constante. Além disso, outra moeda de troca de Lira neste segundo semestre também pode ser a PEC 45, que trata da criminalização da posse e do porte de entorpecentes e drogas, já aprovada no Senado, tão ameaçadora principalmente para população negra e pobre no país. Quantos mais dos nossos direitos serão negociados por Lira no final de seu mandato?

Foto: Mídia Ninja/ Junior Lima

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