Periferias: como evitar tragédias como a do RS

Dicionário Marielle Franco aborda os desafios para a prevenção de desastres socioambientais nas periferias. Rever o modo de “fazer cidades” e a relação humano-não-humano são passos cruciais. Secretaria Nacional de Periferias apresenta alguns caminhos

por Vitor Martins e Sonia Fleury, em Outras Palavras

No último mês, pelo menos vinte cidades realizaram o lançamento de seus Planos Municipais de Redução de Risco (PMRR). Numa cooperação entre Fiocruz e Secretaria Nacional de Periferias (SNP) – alocada no Ministério das Cidades -, financiadora do projeto, os trabalhos se iniciaram ainda em outubro do ano passado, quando da seleção de pesquisadores pelo Ministério, e começaram a ser divulgados nas últimas semanas através de audiência pública para seu lançamento. Dentre as cidades escolhidas, estão: Angra dos Reis-RJ, Belém-PA, Candeias-BA, Colombo-PR, Contagem-MG, Florianópolis-SC, Ilhéus-BA, Manaus-AM, Itaquaquecetuba-SP, Jaboatão dos Guararapes-PE, João Monlevade-MG, Mauá-SP, Natal-RN, Niterói-RJ, Olinda-PE, Paranaguá-PR, Porto Alegre-RS, Santa Maria-RS, São José-SC e Serra-ES.

Prevendo a contratação de equipes técnicas de 17 universidades, contratadas pelo Ministério, o principal objetivo dos planos consiste em propor intervenções para a adaptação e prevenção de riscos para eventos extremos em periferias e favelas. A partir da produção e entrega de dados técnico-científicos e também comunitários – já que é propósito dos planos que os pesquisadores os produzam em conjunto com as populações locais -, a SNP busca construir relações com órgãos municipais e estaduais, eventualmente, no sentido de indicar políticas para a emergência climática com destaque para localidades e populações mais vulneráveis social e economicamente.

Por colocar as favelas e periferias no centro dos planos municipais, a iniciativa apresenta-se de maneira singular justamente por compreender a íntima relação entre desastres e a desigualdade social, fator marcante da realidade brasileira. No entanto, a análise dos risco em favelas e periferias já tem sido abordada em outros estudos e planos municipais, tendo em conta que os riscos são construções socioculturais que não podem ser naturalizados. Contudo, a sua singularidade decorre do fato de ser a proposta atual de estudos de caráter nacional, ainda sob o impacto do desastre no Rio Grande do Sul e com maior mobilização da sociedade para a questão ambiental. Os resultados previstos pelos planos irão apontar para ações estruturais e não estruturais que precisam ser colocadas nas agendas dos governos locais e federal para que possam ser implementadas. É nesse sentido que discutimos brevemente as agendas e o projeto de desenvolvimento que tem se constituído Brasil afora, com o intuito de indicar os limites de uma política ambiental que não se alinha com os objetivos econômicos até então colocados.

Tomando como exemplo o desastre gaúcho, as inundações de maio no Rio Grande do Sul alertaram, mais uma vez, para a emergência climática e humanitária pela qual passamos e torna evidente que a relação humano-natureza – mais que uma categoria de análise acadêmica – é tema fulcral para a discussão de um projeto de desenvolvimento menos predatório, com inclusão social e em harmonia com o meio ambiente.

A tragédia gaúcha expôs ao Brasil e ao mundo o grau destrutivo que eventos extremos devem ocasionar daqui para frente, inaugurando um momento desafiador no que diz respeito às mudanças climáticas e às políticas de redução de riscos. As chuvas torrenciais, que superaram os mil milímetros em cerca de duas semanas – volume esperado para pelo menos seis meses -, atingiram mais de 90% do total de municípios do RS, afetando pelo menos 2 milhões de pessoas e deixando mais de 500 mil desabrigados. Além disso, mais de 180 pessoas morreram durante a tragédia e cidades inteiras ficaram submersas, atingindo inclusive bairros populosos de Porto Alegre e da região metropolitana.

Entre deslizamentos de terra, enxurradas e enchentes, grande parte da infraestrutura do estado foi danificada, comprometendo a economia do estado. Contudo, e talvez o mais importante a se destacar, é a crise social instaurada durante o episódio: o risco de desabastecimento de mercados, a paralisação das estações de bombeamento de água, a interrupção do fornecimento de energia e o avanço dos níveis dos rios provocaram um verdadeiro caos entre a população. Somam-se a isso os saques e invasões a domicílios e estabelecimentos em bairros evacuados, os assédios e estupros denunciados em abrigos temporários, a dificuldade de promover o reencontro entre famílias e a identificação de crianças e idosos atingidos pelas inundações, além da disseminação de doenças contagiosas, como a leptospirose.

Importa dizer que, apesar de afetar a população de modo geral, os desdobramentos desses eventos fortaleceram a desigualdade e aumentaram a distância social entre os impactados. Quem pôde, fez reservas de alimentos e de produtos para escapar ao desabastecimento – acelerando este quadro. Os mais abastados refugiaram-se em cidades litorâneas num esforço financeiro que a maior parte das famílias não teve condições de arcar. Outros, não partilhando dessas mesmas oportunidades, ainda puderam contar com uma rede formada por familiares, amigos e colegas de trabalho, que lhes possibilitaram uma estadia mais tranquila frente à crise. Somente aqueles sem condições de mobilizar tais recursos, cuja rede de apoio encontrava-se fragilizada pela tragédia ou foi inexistente, estiveram sujeitos ao socorro público e à solidariedade de voluntários.

Em meio ao caos, uma ‘maré’ de solidariedade se manifestou formada por multidões Brasil afora que, sensibilizadas por imagens e histórias que estavam sendo televisionadas, prontificaram-se em organizar pontos de coleta para doações, vaquinhas online, oferecer serviços à distância e até mesmo se deslocar ao estado gaúcho para integrar equipes nos abrigos temporários e de resgate. Contudo, nem mesmo a boa vontade e a caridade escaparam às disputas ideológicas para promoção de valores liberais, que buscou apropriar-se de sentimentos autênticos da população para ocultar e transferir a responsabilidade que cabia ao Estado assumir. E, com isso, não se quer diminuir a potência e efetividade dos solidários e empáticos com a tragédia, a qual sem eles tornaria o desastre ainda mais crítico e turbulento. Apenas almeja-se atentar para o fato de que, mesmo as ações mais humanas que puderam ser capturadas pelo cenário de crise, foram incorporadas no rol de projeto neoliberal que deve ser questionado.

Assim, é preciso deixar claro que os gaúchos não estavam “todos no mesmo barco” e nem sairiam da tragédia sem ação pública. Num quadro semelhante ao que se viu durante a pandemia de coronavírus, os efeitos do desastre foram sentidos de formas desiguais. Enquanto uns compartilhavam das mesmas vulnerabilidades e incertezas, outros apenas utilizavam suas possíveis reservas de emergência. Houve, ainda, aqueles que, não sendo afetados em absolutamente nada, seguiram suas vidas como se a cidade em que vivessem não passasse por uma profunda tragédia. Ignoraram a crise assim como ignoraram os pedidos de racionamento de água, ao aproveitarem os poucos dias de sol em suas piscinas particulares ou dos clubes nos quais são sócios.

Mais do que efeitos da descontrolada liberação de carbono na atmosfera, fruto do uso desequilibrado de energias não renováveis, as causas da tragédia parecem se relacionar com o próprio modelo de desenvolvimento adotado mundo afora e reproduzido de maneira singular nos países do sul global. O crescimento de cidades sem um planejamento urbano que considere as características geológicas e ambientais para o uso do solo, a destruição da vegetação e de matas locais e o despreparo para lidar com eventos extremos se apresentam como problemas estruturais que acentuam os impactos dos desastres na população. A ausência de políticas de habitação e urbanização empurram a população mais pobre para a ocupação de áreas com menos investimento público e que as coloca em situação de maior vulnerabilidade, enquanto a desregulação favorece a ocupação predatória do meio ambiente pelos interesses empresariais, em detrimento de um projeto comum.

No caso do Rio Grande do Sul, a ocupação por parte de indústrias e grupos locais das chamadas “planícies de inundação” demonstram esse quadro. Além disso, o avanço das políticas neoliberais, ilustradas pela alteração de mais de 400 normas do Código Ambiental por parte do governo Leite em nome da economia, dos negócios e do mercado, revelam o íntimo relacionamento entre a concepção de um desenvolvimento predatório e o desastre. Além de desfigurar o Código Estadual do Meio Ambiente e sancionar a construção de barragens em áreas de preservação, o governador do Rio Grande do Sul ignorou os alertas feitos pela Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). Depois da tragédia, o governador procurou desculpar-se dizendo que não tomou medidas preventivas porque sua prioridade era a questão fiscal. Assim, ficou patente a falácia da ideologia da austeridade, que ilude a população ao comparar o orçamento público a um orçamento doméstico, para justificar a falta de investimentos porque a prioridade é pagar dívidas. A austeridade é a irmã siamesa do neoliberalismo que retira o Estado da sua função de regulação em prol do interesse público. A tragédia do Rio Grande do Sul mostra que austeridade e desregulação matam! Porém, a visão antropocêntrica que fundamenta o modelo de desenvolvimento da modernidade, não está isenta.

Tido como um conjunto de crenças mais ou menos agrupadas que busca dominar a natureza e manipulá-la com vistas a situar seus recursos dentro de termos mercadológicos, o projeto de desenvolvimento apresentado se caracteriza pelos fundamentos da própria modernidade – que distingue natureza e cultura de modo a estabilizar a realidade do mundo – e que é fortalecida e reinventada na contemporaneidade. Amparada em um ‘aparato de desenvolvimento’, isto é, um “conjuntos de instituições, agências e ideologias que estruturam o pensamento e a prática do desenvolvimento” (DE VRIES, 2007, p. 33, tradução livre), que embora seja objetivado como uma organização legal e/ou burocrática, racional e hierárquica, funciona como “uma máquina louca e expansiva, impulsionada pela sua capacidade de incorporar, refigurar e reinventar todos os tipos de desejos de desenvolvimento” (idem, p. 37).

Dessa forma, lidar com desastres passa inevitavelmente por compreender o modo como construir e fazer cidades, produzir e ‘fortalecer’ a economia se relacionam com esse projeto de desenvolvimento. Defendendo as alterações que tornaram mais permissivas a legislação sobre o meio ambiente, o governador do estado do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, em sabatina realizada pelo Roda Viva, alegou que as decisões tomadas não buscaram fragilizar a proteção ambiental, mas sim ajustá-las a dispositivos federais. Contudo, sabe-se que as alterações promovidas visam acelerar processos de licenciamento ambiental e reduzir a burocracia, e a proteção, no que diz respeito ao uso da terra para fins comerciais.

De encontro a essas políticas, a austeridade fiscal também tem se apresentado como um fator importante de fragilização do enfrentamento a desastres e gestão de crises. Em defesa do controle de gastos e na busca pela atração de investimentos privados, governos têm cortado orçamentos para pastas vinculadas à proteção ambiental e contingenciado verbas para conservação de equipamentos públicos que atuam no combate a eventos extremos. Em Porto Alegre, regiões supostamente protegidas pelo sistema anti enchente foram atingidas ou evacuadas em razão de falhas em comportas e em estações de bombeamento de água pluvial.

Além disso, houve grande dificuldade em operar planos de contingência. A ausência de fundos para executá-los, a falta de balanços prévios quanto aos gastos diários para instalação e manutenção de abrigos temporários, a fragilidade em construir rotas de fuga e de trânsito de insumos essenciais, como alimentos, água e medicamentos, aumentou a sensação de risco entre os atingidos. Na capital gaúcha, pavilhões e ginásios precisaram ser evacuados mesmo após o manejo de desabrigados para esses locais em virtude da falta de informações quanto a onde a água poderia chegar e quais regiões ainda havia cobertura do sistema de proteção da capital. Em Canoas, terceira maior cidade do estado, o lema “nós por nós” foi entoado por moradores que assumiram a responsabilidade de grande parte dos resgates e do abrigamento de vizinhos e familiares.

Diferentemente do que se pode imaginar, esse quadro não aponta para a falta de políticas públicas ou de ação governamental no que se refere ao meio ambiente e às questões climáticas. Ao contrário, revela a produção e o fortalecimento de políticas e de atitudes que entendem a natureza como inimiga do desenvolvimento, como um entrave para a economia – mesmo que os custos e as perdas econômicas com a gestão da tragédia tenham se mostrado mais caros que a prevenção a estes eventos, demonstrando uma racionalidade frágil e insensata.

Dessa forma, o que emerge é a necessidade de um projeto alternativo que faça frente às políticas adotadas. Um projeto que, ao invés de insistir na oposição cultura/natureza, fortaleça suas relações. Para além das contribuições teóricas da virada ontológica (LATOUR; CALON; HARAWAY; TSING), pensar a relação humano-não-humano apresenta-se como elemento central para a constituição de políticas públicas mais eficazes e resilientes no que diz respeito à emergência climática e humanitária.

Nesse sentido, os projetos elaborados pela Secretaria Nacional de Periferias parecem se apresentar como uma alternativa. Centrado nos impactos e na prevenção a eventos extremos em favelas e periferias, o lançamento dos Planos Municipais de Redução de Risco (PMRR) tem demonstrado uma possibilidade de superação dos desafios colocados pelas mudanças climáticas e pelas políticas neoliberais. Mas que precisa estar integrada à agenda econômica e de desenvolvimento para que seja efetivada.

Constituído por equipes técnicas que envolvem pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, os trabalhos se concentram na análise geológica e hidrográfica de regiões periféricas e suas relações com as populações locais. Não sendo orientados pela política de remoções de favelas, a proposta central dos planos é justamente compreender, em conjunto com os moradores, os riscos apresentados nas diferentes áreas e prepará-los para uma um convivência mais segura e resiliente com eventos extremos.

Preparação essa que se dá a partir de intervenções estruturais, com projetos de engenharia e de adequação das infraestruturas locais, mas também não estruturais, como o planejamento de cartilhas e de materiais que apontam para a educação ambiental e de adaptação climática. Em fase de execução, os PMRR já atuam para compreender a percepção de risco das populações locais com o intuito de propor intervenções que, após sua divulgação, precisam ser apreendidas por gestores públicos no sentido de buscar investimentos e fundos para sua implementação.

Um importante destaque é o fato dos PMRR serem uma iniciativa da Secretaria Nacional de Periferias, porém, colocar as favelas no centro do debate não indica que essas localidades sejam as únicas a necessitarem de planos e prevenção a desastres. Mas sim, implica o reconhecimento de que o risco é um fator que envolve aspectos naturais, mas também sociais e econômicos, aos quais as populações das favelas estão mais vulneráveis. Não há como afirmar que os produtos dos trabalhos realizados pelas equipes que constituem os planos serão efetivados, pois, é necessário vontade política para que as intervenções sejam colocadas em prática. Contudo, o olhar singular para as periferias urbanas parece ser um bom ponto de partida rumo a construção de um desenvolvimento seguro, mais igualitário e em harmonia com o meio ambiente.


Referências

CALLON, Michel, (1980), ‘Struggles and Negotiations to Define What is Problematic and What is Not: the Sociology of Translation’, in Knorr, Krohn and Whitley, (1980); 197-219.

DE VRIES, Pieter. Don’t compromise your desire for development! A Lacanian/Deleuzian rethinking of the anti-politics machine. Third World Quartely, v. 28, n. 1, p. 25-43, 2007.

HARAWAY, Donna; AZERÊDO, Sandra (2011). Companhias multiespécies nas naturezaculturas: uma conversa entre Donna Haraway e Sandra Azerêdo (pp. 389-417). In: MACIEL, M. E. (Org.) Pensar/escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica Florianópolis: Editora da UFSC.

LATOUR, Bruno. Reagregando o social. Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba, 2012.

TSING, Anna. Margens indomáveis: cogumelos como espécies companheiras. Ilha, v. 17, n.1, p. 177-201. Tradução: Pedro Castelo Branco Silveira, 2015.

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