O retorno à mãe terra pelos Guarani e Kaiowá e a urgente recuperação da humanidade perdida no Capital

Seja na agricultura de produção de commodities ou na extração de minérios e combustíveis fosseis, o modo de produção capitalista não respeita os ciclos da natureza e coloca em risco a sobrevivência da humanidade

Os Guarani Kaiowá sempre dizem que a terra é nossa mãe e que a colonização a retirou de nós. Como nos ensina Anastácio Peralta, Kaiowá, morador da terra indígena Panambizinho, Dourados, Mato Grosso do Sul, eles foram expulsos da casa deles:

“Espiritualmente, a terra para nós é mãe. Com a chegada da colonização, foi retirada a nossa mãe da gente. Fomos expulsos da casa da mãe, que é a nossa terra. O que é diferente de nós sermos os donos da terra. A terra não pertence a nós, nós é que pertencemos à terra. E isso tem sido uma luta nesses mais de 500 anos, quando enfrentamos as retomadas. Então, quando a gente faz uma retomada, os mais velhos dizem que a mãe terra está convidando a gente de volta. Ela está muito triste porque ela está distante do filho, principalmente esses tekoha ancestrais, que tem uma ligação entre a terra, a espiritualidade e a gente. Então a gente acaba voltando pra ela. Voltamos para esse espaço, onde a gente era feliz. A mãe convida seu filho de volta para pertencer a ela. Quando retomamos a mãe terra e vamos para o colo dela, estamos retomando a nossa cultura, a nossa tradição, a nossa língua, a nossa reza, o nosso canto, a nossa agricultura, estamos retomando a nossa ancestralidade com a terra. Por isso voltamos para o colo da mãe terra. Tem toda uma cosmologia espiritual do porquê voltamos para a terra. Hoje, a nossa mãe terra está no mesmo sofrimento que as pessoas, que nós indígenas Guarani Kaiowá. Ela é judiada, tiram o nutriente dela, que na nossa língua, tiram a sombra dela com o desmatamento. A terra também fica nua, nos solos. Com o veneno, o desmatamento, vão tirando do que ela pode também ajudar a nos fortalecer, o nutriente da terra. A terra também tem sentimento, tem alma e está sofrendo junto com a gente. Então, a retomada é para tentar recuperar a nossa mãe terra e ir em busca da sua cura. Curar a terra não é só colocar adubo. Tem todo um ritual, uma espiritualidade que pode também ajudar na recuperação da vida e só quem vai dar a vida para nós é a mãe terra, a natureza, ninguém mais. Se nós perdermos essa vida da natureza, nós também não existiremos”.

A terra não pertence a nós. Nós é que pertencemos à terra.  Por isso rezam, cantam com seus instrumentos sagrados, pedem licença quando vão entrar na mata ou num rio. Para elas e eles o corpo e alma não estão separados, como foi separado na cultura eurocêntrica capitalista, que fragmentou tudo: corpo/alma, sociedade/natureza, tempo/espaço.

As sábias palavras de Anastácio nos lembram a do grande pensador yanomami Davi Kopenawa, que já prenunciava: o céu vai cair. Em sua belíssima obra, A queda do céu, aprendemos através das “peles de papel” o profundo conhecimento e a compreensão holística que os povos originários têm da natureza, sabendo que dela fazem parte, mais um ser vivo entre toda as espécies do universo. Também ensinam que, se maltratarmos a natureza com monocultivos e queimadas, a terra e o céu entrarão no colapso e que morreremos junto com ela.  Os Guarani Kaiowá, os Yanomami, assim como os diversos povos originários, sempre souberam o que agora a ciência e os organismos governamentais vêm demonstrando para nós com dados em vastos relatórios.

Estudos já tem indicado que o uso e a exploração econômica intensiva e predatória da natureza pode trazer mudanças climáticas profundas a ponto de tornar o planeta inabitável. Tomando como base o período de 1850-1900, o rápido e intenso aquecimento global, e a ultrapassagem de 1,5 graus poderia nos levar a pontos de não retorno, produzindo eventos climáticos cada vez mais extremos com o aumento de temperatura (incluindo dos oceanos), secas em algumas regiões, furacões, dentre outros fenômenos. Nunca, na história da humanidade, os níveis de emissão de CO2, de desmatamento, de extinção de espécies, de aumento da temperatura, foram tão intensos como nos últimos 50 anos. As estimativas para o Brasil não são nada animadoras, com indicadores de seca e elevadas temperaturas na maior parte do país, além de excesso de chuvas no Sul, conforme a recente tragédia ocorrida.

O mais grave de tudo isso é que atravessamos um longo período pandêmico da Covid-19, provocado pelo vírus da SARS-CoV-2, cujas origens podem estar ligadas à destruição ambiental provocada pela industrialização chinesa, somada à criação em larga escala de animais para consumo humano.  Trata-se da fórmula perfeita para o surgimento de patógenos com uma evolução acelerada da sua virulência e transmissão. As cadeias produtivas capitalistas se organizam de tal forma a potencializar esses efeitos, que fazem uma rápida passagem das florestas destruídas para as cidades. O modo de organização da produção que criou as condições para o aparecimento do SARS-Cov-2 é o mesmo que está fazendo com que vivenciemos o início da mudança climática e seus extremos.

Seja na agricultura de produção de commodities, na produção de alimentos em grande escala ou na extração de minérios e combustíveis fosseis, o modo de produção capitalista não respeita os ciclos da natureza e coloca em risco a sobrevivência da humanidade. As disputas da geopolítica mundial, como a atual guerra na Ucrânia e o massacre do povo Palestino, apontam para um cenário de escalada dos conflitos e são a ponta do iceberg que encobre a necessidade que o Capital em crise atualmente tem de controle de territórios férteis e jazidas de minérios. Os conflitos bélicos nos dão conta de para onde vamos caminhando. Será que o céu vai cair?

Produzida historicamente a partir da mudança nas relações sociais de produção (ou seja, a partir da mudança no modo de produção da existência humana) com a transição do feudalismo para o capitalismo, as mudanças no modo de pensar também não vieram delas descoladas. Dado a partir da ideia do mundo como máquina e da natureza como um “recurso natural”, que pode ser explorado indefinidamente, a formação desse novo modelo societal que se fundamenta na produção desenfreada de mercadorias para obtenção de lucro, trouxe, também, a consolidação dessa ideia de natureza.

O que estamos vivenciando não se descola, nesse sentido, das relações sociais concretas e de poder que produzem os danos ambientais, mostrando agora as suas contradições no seu nível quase extremo. Como já dizia o geógrafo Carlos Walter Porto Gonçalves, o tempo do capital não é o mesmo do tempo da natureza. Esta, tem suas próprias temporalidades, e essas distintas temporalidades se tensionam. O planeta simplesmente não aguenta. A natureza não aguenta e, como dizem os Guarani Kaiowá, nós também somos natureza e não aguentamos mais tanta tragédia. Os negacionistas podem espernear, mas todos/as nós, sentiremos o peso doloroso do devir.

Os cientistas têm sido categóricos ao dizer que é urgente reduzir a emissão de gases do efeito estufa. Esse sistema econômico precisa mudar. As previsões indicam que, se não tomarmos atitudes drásticas para os próximos anos, os eventos extremos se tornarão mais frequentes. Os perigos sobre os rumos da humanidade estão dados a partir desse uso predatório da natureza. Dados que estudiosos e movimentos ambientalistas vem nos alertando desde pelo menos os anos 60 do século passado e que os povos indígenas sempre souberam e denunciaram ao mundo. Esse modelo que trata a natureza como negócio, com sua exploração desenfreada está no seu limite.

É esse mesmo modelo predatório, que explora indistinta e indefinidamente a natureza para o lucro, que nega aos povos indígenas seu direito à existência conforme seus próprios modos de ser. Num modo de produção da existência baseada na acumulação, não cabe a existência a partir da ideia da natureza como mãe. Como é sabido, os primeiros habitantes dessa Abya Yala, a população originária, sequer têm tido o direito constitucional do acesso à demarcação de pequena fração de suas terras ancestrais, com vastos estudos antropológicos comprovando o direito.

A indiferença perante a tragédia que se abate sobre esses diferentes povos é um projeto político das classes dominantes que hegemonizam os meios de comunicação que se encarregam de espalhar o ódio e a ideologia de que se trata de povos inferiores e atrasados, convencendo amplos setores de trabalhadores da cidade de que indígena é obstáculo ao progresso econômico. Difundem uma ideia de sub-humanidade, tão inferior quanto a natureza, para justificar e legitimar a violência contra as comunidades e a destruição da mãe-terra. É a barbárie articulada aos interesses de classe produzindo um tipo de humanidade mediada pelo viés da mercadoria. À lógica da visão fragmentária da natureza como mercadoria, não interessa o significado da natureza como mãe.

Primeiros habitantes dessa terra, os povos originários ainda precisam lutar para provar que estavam aqui antes de nós, nesse longo processo histórico que os expropriou de suas terras, buscando incorporar o trabalho indígena na lógica da acumulação primitiva. Da Lei de Sesmarias, da Lei de Terras, à MP 759/2016 (convertida em Lei 13.465/2017), vemos a produção de leis evidenciando o papel do Estado na sociedade capitalista. Atualmente, conforme dados do IBGE, quase 50% das terras do país estão nas mãos de apenas 1% dos estabelecimentos agropecuários, setor que também se beneficia dos incentivos fiscais, como a Lei Kandir de 1996, e ainda abocanha a maior fatia dos recursos para a agricultura de mercadoria de exportação, como os mais de 400 bilhões de reais no plano safra (2024/2025). Enquanto isso, os povos indígenas mal conseguem água potável para beber. Não tem terra para plantar seus próprios alimentos e quando tem, muito do que plantam, morre, com o veneno agrícola que chega das fazendas de monocultivo de soja e milho transgênicos nas áreas por eles plantadas de alimentação humana. Tudo isso, sem falar dos inúmeros danos à saúde por eles relatados decorrente da contaminação por agrotóxicos.

Por isso, os povos indígenas retomam e lutam. Não é a brutal violência, como a cometida contra os Guarani Kaiowá na retomada em Douradina, Mato Grosso do Sul, que deixou vários indígenas gravemente feridos, que irá fazer com que recuem. Os Guarani Kaiowá são valentes nas suas lutas pela mãe terra. São mais de 500 anos de luta e resistência. Como diz Anastácio, eles não são criminosos e não querem o Brasil todo para eles. Querem apenas a demarcação de suas terras, que é o mínimo, diante da extrema concentração de terras e outras desigualdades existentes no país. Quem criou esse problema foi o próprio Estado e os governos federais de turno, em benefício do grande capital. Não foram os indígenas que criaram esse problema da concentração de terra e só através da sua mobilização e de suas as lutas será possível superar o atual estado de coisas.

Os povos originários têm muito a nos ensinar, incluindo, a como sobrevivermos e como enfrentarmos as mudanças climáticas. A como recuperarmos e mantermos a mãe terra sadia e produtora de alimentos de verdade. Temos a obrigação de lutar e defender a vida, a diversidade sociocultural e ambiental.

Um bom começo seria resgatarmos essa compreensão de natureza como mãe. Compreensão essa que um dia também já pertenceu à sociedade não indígena. A terra como mãe. E mãe, nós tratamos com respeito. Contudo, não basta a compreensão: implica em mudança nas relações sociais concretas no modo como produzimos a nossa existência. Os povos indígenas precisam voltar para o colo da mãe terra urgentemente para ajudar a salvar a humanidade perdida no capital.

Anastácio Peralta é pesquisador, Guarani Kaiowá. Márcia Mizusaki é geógrafa e filiada à Associação dos Geógrafos Brasileiros. Gabriela Guillén é cientista social, educadora da Escola Nacional Florestan Fernandes do MST. Judite Stronzake é cientista social e da natureza e militante do MST.

Após ataque contra indígenas Guarani Kaiowá, foto de uma criança na retomada Ñhanderú Marangatú em município de Antonio João. Foto de Dionedison Terena

 

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