O grande roubo de enfermeiros pelo Norte Global

Dezenas de milhares de profissionais dos países mais pobres estão sendo atraídos por EUA e Europa todos os anos, denuncia Conselho Internacional da Enfermagem. Esvaziamento dos sistemas de saúde dessas nações vulneráveis pode gerar catástrofe sanitária

por Guilherme Arruda, em Outra Saúde

O Conselho Internacional de Enfermeiros (ICN, sigla em inglês) convocou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a considerar a possibilidade de uma “moratória por tempo limitado no recrutamento ativo de enfermeiros” oriundos de países na Lista de Salvaguarda e Apoio à Força de Trabalho da Saúde.

A ação decorre de um “aumento dramático” no recrutamento de trabalhadores da enfermagem de países de renda média e baixa pelas nações mais ricas, de acordo com o ICN.

A Lista de Salvaguarda identifica os 55 países que enfrentam os maiores desafios relativos à mão de obra necessária para alcançar a cobertura universal de saúde. A escassez de profissionais de saúde é uma das principais causas da dificuldade de muitos países em alcançar a cobertura universal.

A proposta foi feita pelo ICN em um recente relatório à OMS sobre a implementação do Código Global de Práticas de Recrutamento Internacional de Pessoal na Saúde.

O relatório atribui a “alta na migração internacional de enfermeiros” em grande parte às “tentativas de alguns países de renda alta de responder a sua vasta falta de trabalhadores da enfermagem por meio do recrutamento ativo em países mais pobres, através da facilitação da entrada e do reconhecimento profissionais de enfermeiros formados no exterior”.

A proporção de enfermeiros empregados nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) – composta por 38 nações desenvolvidas – que se formaram no exterior saltou de 5% em 2011 para quase 9% em 2021.

O Reino Unido, os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália, a Alemanha e as monarquias do Golfo são os principais estimuladores desse movimento.

Reino Unido toma enfermeiros de países da “lista vermelha”

No Reino Unido, por exemplo, mais de 24 mil enfermeiras estrangeiras se registraram para trabalhar no país entre setembro de 2021 e setembro de 2022, o maior número da história.

Mais de 19% das enfermeiras que chegaram em solo britânico entre 2021 e 2023 vieram de países como “déficits severos de mão de obra na saúde”, de acordo com a já citada Lista da OMS.

Ao longo de um período de seis meses em 2022, mais de 20% das novas enfermeiras estrangeiras (algo em torno de 2,2 mil trabalhadoras) vieram de apenas dois países dessa “lista vermelha”: Nigéria e Gana.

“Ainda que o recrutamento direto para o National Health Service [N. T.: NHS, o sistema de saúde pública inglês] seja ilegal, essas enfermeiras podem primeiro ser contratadas por empresas com fins lucrativos, para trabalhar no setor privado, e depois se inscreverem para o ‘recrutamento passivo’ ao NHS”, diz o ICN.

Contratantes internacionais também estão fazendo publicidade ostensiva para cooptar mão de obra da saúde de países pobres na África, na Ásia e no Caribe, em violação flagrante do Código.

Os Estados Unidos anunciaram que mais de 17 mil enfermeiros pediram vistos para entrada no país em 2022, um aumento de 44% em relação ao ano anterior.

“Países que anteriormente não praticavam o recrutamento internacional de enfermeiros também estão ampliando sua demanda por trabalhadores estrangeiros, como a Finlândia e a Escócia. Nesta última, o governo anunciou uma verba de 4,5 milhões de libras para a contratação de enfermeiros do exterior e a recuperação da força de trabalho após a pandemia”, ressalta o ICN.

Países pobres enfrentam grande escassez de enfermeiros

Na Assembleia Mundial da Saúde de 2024, Tonga e Fiji revelaram que já perderam de 20% a 30% de seus enfermeiros, principalmente para a Austrália e a Nova Zelândia.

Em Fiji, 800 profissionais do ramo se demitiram em 2022, isto é um quinto da força de trabalho da enfermagem do país. No momento, a ilha ainda conta com 2 mil enfermeiras e cerca de 1,6 mil postos de trabalho vagos no setor. Muitos hospitais estão operando com menos de 40% das enfermeiros necessários.

Já no Zimbábue, ais de 1,7 mil enfermeiros formados se demitiram em 2021, e algo em torno de 900 saíram do país em 2022, com a maioria se mudando para o Reino Unido.

A Associação de Enfermeiras e Parteiras de Gana recentemente divulgou que 500 trabalhadoras da enfermagem deixam o país todos os meses, com destaque para as profissionais experientes e especializadas.

As Filipinas enfrentam uma falta de 190 mil trabalhadores da saúde, e essa escassez de mão de obra deve crescer para 250 mil até 2030.

O direito de emigração dos enfermeiros

“O ICN reconhece e apoia o direito individual dos enfermeiros de migrar, buscar o reconhecimento profissional por meio da mobilidade de carreira e melhorar as circunstâncias em que vivem e trabalham”, diz o relatório.

Por outro lado, há uma “grave preocupação” com a “migração em larga escala de enfermeiras dos países mais vulneráveis do mundo, motivada principalmente pelo recrutamento ativo de trabalhadores por um pequeno número de nações de alta renda, como o Reino Unido, os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália, a Alemanha e as Monarquias do Golfo”.

O ICN “condena o recrutamento direcionado de enfermeiros de países que enfrentam uma escassez crônica de trabalhadores da enfermagem e/ou vivem crises de saúde em que esses profissionais são necessários”.

“Esse processo está esvaziando sistemas de saúde que já são frágeis, impedindo países de renda média e baixa de reconstruir seus sistemas de saúde e enfrentar os desafios do pós-pandemia e ampliando o gap no acesso à saúde entre países ricos e pobres”, continua o relatório.

“Essa situação sabota a possibilidade de se alcançar a nível global os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, incluindo a cobertura universal de saúde, até 2030”, conclui o documento.

Suavizando a emigração

Alguns desses países ricos estão ampliando a formação nacional de enfermeiros. No Reino Unido, por exemplo, o Plano de Mão de Obra a Longo Prazo do NHS pretende formar 60 mil enfermeiras na Inglaterra até 2029, o que representaria um aumento de 54% em relação a 2022-2023.

Já a Austrália está desenvolvendo sua Estratégia Nacional de Força de Trabalho na Enfermagem para “ampliar sua sustentabilidade e autossuficiência”, enquanto a Lei de Fortalecimento dos Estudos em Enfermagem aprovada em 2024 na Alemanha busca atrair estudantes com bolsas mensais, reduzindo a escassez de mão de obra.

O Ministério da Saúde das Filipinas destinou verbas para a garantia de seguros de saúde, moradia e outros benefícios para os enfermeiros, buscando conter a maré da emigração.

Contudo, a maioria dos outros países de renda média e baixa também enfrentam essa escassez e, por falta de recursos e outros fatores estruturais, não conseguem oferecer bons empregos e outras ações para reter seus trabalhadores da enfermagem.

Em Lesoto, na África Meridional, quase um terço das enfermeiras e parteiras profissionais estão desempregadas, devido à falta de orçamento da Saúde.

Além do desemprego, os enfermeiros das nações mais pobres frequentemente enfrentam desafios como más condições de trabalho, baixos salários e insegurança laboral.

“Vimos um aumento nas greves e na insatisfação laboral [entre os trabalhadores da saúde] em vários países em desenvolvimento nos últimos 3 anos, como em Uganda, Gana, Fiji e Tonga. Esse cenário deve ser reconhecido como um sintoma dos problemas mais profundos que alimentam a emigração de enfermeiros, além de claramente demonstrar a necessidade de fortalecer os sistemas de saúde, em vez de esvaziá-los de sua força de trabalho”, conclui o relatório.

Foto: Ground Pictures

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