Casa de taipa abandonada foi cadastrada como escola em funcionamento; ex-secretária de Educação nega irregularidades
Por Diógenes de Luna | Edição: Bruno Fonseca, Agência Pública
“Só sei que na Juçara, povoado aqui, não tem escola não. Se tiver, é só no papel.” A fala assertiva é de uma moradora do povoado Juçara, localizado em uma área remota da zona rural de Conceição do Lago-Açu, a cerca de 300 km de São Luís, Maranhão. Segundo ela, em 2023, uma sala de aula improvisada funcionou em uma casa de taipa do povoado, mas teria sido desativada após a denúncia sobre a situação improvisada.
Apesar da denúncia de que a escola não funcionaria de forma regular, a gestão municipal inseriu, na plataforma EducaCenso, dados de uma escola municipal em funcionamento no local, com 12 estudantes matriculados. As informações entraram na conta dos mais de R$ 51 milhões em recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) previstos para o município em 2024.
Por meio de mensagem no WhatsApp, a secretária de Educação à época, Elcilene Pinheiro Pereira dos Santos, conhecida na cidade como professora Cici, questiona a acusação. “Temos salas alugadas de alvenaria para atender sete alunos nesse povoado específico que fica isolado por ser região ribeirinha, que chamamos de ponto de apoio”, refutou.
Janes Ribeiro, presidente da Associação de Produtores Rurais do Povoado Juçara, confirma que a casa de taipa teria sido o local escolhido, pela gestão pública, para funcionar como sala de aula. “2023 iniciou na ‘escola de barro’. Visto que a localidade Juçara é uma ilha, de difícil acesso, tanto no verão como no inverno, foi pedido que o município contratasse um educador para a localidade. O impasse foi arranjar um local para o devido funcionamento. Foi então que o próprio professor disponibilizou provisoriamente uma sala de sua casa”, atestou o representante comunitário.
Durante todo o primeiro semestre de 2024, os estudantes do povoado não assistiram às aulas. Por ser distante da sede do município, em uma região carente, muitos moradores de Juçara não têm condições de custear o transporte diário delas até lá, para os que vão à escola. Em julho deste ano, uma sala foi alugada na casa de Janes Ribeiro e as aulas iniciaram.
Além da escola de Juçara, outras duas no município também teriam dados imprecisos. Segundo o Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Educação (SIOPE), a escola de Alto da Paz e a de Mosquito realizaram pagamentos a servidores lotados nelas, mesmo não havendo dados sobre eles no Censo da Educação Básica. De acordo com o Censo, as escolas nem sequer funcionariam. Entretanto, nas folhas de pagamento dos servidores municipais disponibilizadas pelo Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Educação (Siope), de janeiro a abril de 2024 foram pagos R$ 164 mil às equipes das duas escolas.
Por que isso importa?
- Denúncias de desvios de recursos no orçamento da Educação são frequentes devido à complexidade dos repasses e dificuldade de fiscalização.
- Fraudes ou má gestão desses recursos têm impacto direto no acesso à educação de milhões de brasileiros.
Mesmo após diversas tentativas de contato com os gestores de Conceição do Lago-Açu, inclusive acionando o Ministério Público do Maranhão para tentar garantir o cumprimento da Lei de Acesso à Informação (LAI), nenhuma informação solicitada sobre as escolas e os recursos do Fundeb destinados à educação no município foi prestada.
Matrículas de Juçara entraram na conta do Fundeb
De acordo com o Censo da Educação Básica, Conceição do Lago-Açu possui 55 escolas. Para o cálculo do Fundeb de 2024, foram consideradas 35 escolas e o total de 5.245 matrículas. As outras 20 escolas não tiveram os dados cadastrados – entre elas, estão as de Mosquito e Alto da Paz.
Para o cálculo do valor total do Fundeb repassado a Conceição do Lago-Açu em 2024, o dado de 12 matrículas na escola de Juçara foi considerado. A informação está na planilha com a descrição das matrículas consideradas para o Fundeb 2024, disponibilizada pela assessoria de comunicação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). No total, R$ 51 milhões em recursos do Fundeb estão previstos para o município.
O cálculo desse valor é feito em relação ao número de matrículas, mas é uma equação bem mais complexa do que apenas multiplicá-las pelo Valor Anual por Aluno do Fundeb (VAAF). “No âmbito de cada estado, o Valor Anual por Aluno do Fundeb representa a razão das receitas aportadas ao Fundo e as matrículas ponderadas dos entes federados do Estado”, explica Nayanne Santana, assessora de comunicação do FNDE.
As receitas captadas para o Fundeb provêm de impostos, do Fundo de Participação dos Municípios, do Fundo de Participação dos Estados, dos royalties do petróleo e gás, dos repasses do estado e dos programas educacionais do governo federal. Todos estão definidos na Lei do Fundeb.
Para cada município, é calculado um VAAT de acordo com as matrículas ponderadas. Para tanto, são levadas em consideração as características de ensino de cada escola, como as etapas (creche, pré-escola, primeiros anos do fundamental, últimos anos do fundamental, ensino médio), as modalidades (educação de jovens e adultos, educação especial, educação quilombola, educação indígena, educação profissional), a duração da jornada (tempo integral ou parcial) e o tipo (urbano, rural, território quilombola, território indígena), além do nível socioeconômico. Esses dados são retirados do Censo da Educação Básica.
Cadastro de dados é de competência da Secretaria de Educação do município
A competência para inserir os dados sobre as escolas municipais na plataforma EducaCenso é da Secretaria de Educação de cada município. Informações como a quantidade de matrículas, de professores e de funcionários, bem como a modalidade, etapa e tipo de ensino, devem ser inseridos pelos gestores. Elas comporão o Censo da Educação Básica, divulgado anualmente pelo Instituto Anísio Teixeira (Inep), órgão do Ministério da Educação. É com esses dados que o valor do Fundeb, para cada município, é calculado.
Os valores do VAAT de 2024 estão definidos na Portaria MEC/MF nº 5, de 8 de maio de 2024, assim como o valor mínimo nacional (VAAT-MIN) de R$ 8.426,10 e os valores de complementação. Para Conceição do Lago-Açu, o VAAT é de R$ 6.443,48. Por estar abaixo do mínimo nacional, a União envia o valor da complementação.
Mesmo assim, não é possível precisar o montante destinado especificamente à escola de Juçara, porque os repasses de recursos não são enviados diretamente a cada escola. A estimativa, sem as complementações da União, é que a escola consumiria R$ 127 mil em recursos do Fundeb aos cofres do município. Quando questionada, por meio de mensagem no WhatsApp, sobre a aplicação de recursos do fundo na educação dos alunos do povoado de Juçara, a ex-secretária de educação do município silenciou. Por lei, o Fundeb destina-se à manutenção e ao desenvolvimento da educação básica pública.
Salários fora do padrão e matrículas suspeitas
A análise dos vencimentos declarados pela Secretaria de Educação de Conceição do Lago-Açu nas folhas de pagamento do Fundeb, acessíveis via Siope, revela que 40 servidores recebem proventos que variam de R$ 9 mil a R$ 19 mil, enquanto o salários da maioria está na faixa de R$ 1,4 mil a R$ 1,9 mil. Os nomes dos servidores aparecem duplicados, em cada mês, nos documentos. Estão lotados no mesmo cargo e escola, com carga horária de trabalho idêntica, mas os vencimentos são diferentes. A distribuição dos vencimentos mostra a desproporcionalidade nos salários pagos.
Um dos salários é da ex-secretária de Educação, a professora Cici. Mesmo estando alocada em apenas uma instituição de ensino, a Escola Municipal Manoel de Nazareth dos Santos, ela receberia dois salários, segundo os dados da prefeitura: um salário-base de R$ 3.069,20 que, com o complemento do Fundeb, atinge o montante de R$ 7.739,42; e outro de R$ 2.783,86, que vai a R$ 5.066,63 após a complementação do fundo. No total, excetuando o mês de março, quando a servidora recebeu, como docente, expressivos R$ 27.827,30, o salário mensal dela é de R$ 12.806,05.
Além disso, na folha do Fundeb de fevereiro de 2024, são listados outros 34 pagamentos de R$ 60 mil, que totalizam R$ 2 milhões. Nenhum dos pagamentos foi destinado a um servidor efetivo, e os nomes dessas pessoas não se repetem nas folhas de pagamento dos outros meses. Muitos estão registrados com números de matrícula genéricos, como 99999999.
A reportagem questionou a prefeitura sobre os pagamentos à ex-secretária e aos servidores com matrícula genérica, que não respondeu até a publicação.
Os valores estão bem acima da faixa salarial dos servidores da educação informada na tabela com o padrão remuneratório dos cargos do município, disponível no Portal da Transparência da prefeitura de Conceição do Lago-Açu. Os salários dos professores, de acordo com a tabela, variam de R$ 1.097,82 a R$ 2.081,17. As folhas de pagamento de 2024, com os vencimentos dos servidores municipais, não estão disponíveis no site da prefeitura.
Por lei, o Fundeb destina-se à valorização dos profissionais da educação, incluindo uma condigna remuneração.