Buscou-se legitimar a ideia de que só os pobres ou incultos desrespeitam mulheres
Em Geledés
Como uma mulher crítica às plataformas de redes sociais e seus usos, penso ser fundamental termos compromisso e responsabilidade ao falarmos de certos casos. Não instrumentalizar a vida das pessoas para ganhar likes é exemplo básico de civilidade. Por esse motivo, fiz a escolha de analisar com calma as notícias recentes envolvendo as denúncias de assédio e importunação sexual contra Silvio Almeida, agora ex-ministro de Direitos Humanos. Obviamente que a notícia foi chocante para a grande maioria de nós, mas aqui quero trazer olhares objetivos para a questão.
Uma enorme quantidade de pessoas foi a público dizer que não se podia ter pressa em acusar, e eu concordo plenamente: devemos aguardar as investigações. Porém essas mesmas pessoas fizeram aquilo que apontavam: saíram às pressas para defender.
Por mais que admiremos uma pessoa, nutramos carinho e afeto, é importante nos atermos aos fatos, por mais doloroso que seja. E os fatos são denúncias de dezenas de mulheres, entre elas Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial. Independentemente do que achemos ou não, é preciso reconhecer as gravidades das denúncias e não, a priori, descredibilizar as denunciantes, tampouco suas advogadas.
Outro ponto levantado, violento na minha visão, foi a cobrança para que a ministra Anielle se manifestasse em público. A lei brasileira garante o sigilo para mulheres nesse tipo de denúncia. Exigir que denunciantes venham a público falar das violências que acusam é mais uma forma de revitimizá-las.
Então me soou muito preocupante ver pessoas demandarem a quebra do silêncio de Anielle, com o argumento de que isso estaria manchando a reputação de Silvio Almeida. Culpabilizar a ministra por isso é mais um exemplo de como a sociedade brasileira, à direita e à esquerda, precisa avançar na proteção às mulheres e refletir o quanto reputações são colocadas acima de denúncias de violência.
Obviamente que homens negros são discriminados no nosso país e nos posicionamos ao lado deles. Porém, homens de grupos discriminados também cometem opressões. Como diz Angela Davis, não existe unidade negra construída em cima do silêncio da mulher negra. Ora, o que enfraquece a nossa comunidade não são mulheres que denunciam violências, e sim os homens que não rompem com a lógica machista. Muitas vezes as pessoas estão mais preocupadas com o que a direita ou os brancos acríticos vão dizer em vez de demandar mudanças de comportamento dos homens.
Outro argumento falho é dizer que “homens brancos não são tratados da mesma forma”. Mais óbvio, impossível. Numa sociedade racista, os dados mostram isso em todas as instâncias. Porém, em vez de lutarem para que homens brancos respondam pelos crimes contra mulheres, me parece que muitos querem que os homens negros também saiam ilesos.
Já disse Audre Lorde: “as ferramentas do mestre não vão desmantelar a casa-grande”. Não se podem utilizar as ferramentas do mestre, mas sim romper com o pacto de masculinidade que silencia e violenta mulheres.
Houve por parte de muitas pessoas um grave preconceito de classe ao afirmarem que as denúncias seriam falsas, por Silvio Almeida ser culto e ter um ótimo currículo. Essas pessoas legitimaram a ideia de que homens pobres ou incultos seriam os únicos a desrespeitar mulheres, o que é absurdamente problemático.
Dito tudo isso, compreendo que seja doloroso lidar com a desilusão, mas penso ser importante disputar sentidos. A luta antirracista não perdeu, como vi muitas pessoas dizerem, pois é uma luta coletiva e está acima de qualquer indivíduo.
Quando um indivíduo branco é acusado de um crime, o indivíduo é responsabilizado, não a coletividade branca. Mas, quando se trata de uma pessoa negra, querem imputar à comunidade o peso disso. Por isso não entendo que perdemos como comunidade negra; dizer isso seria sucumbir a uma lógica racista de homogeneidade e cair no argumento tolo de que estamos em uma crise de representatividade.
A falta de um olhar interseccional corrobora esse sentimento de derrota. Será que não avançamos quando mulheres têm coragem de denunciar violências independentemente da posição do acusado?
Escrevo este texto do lugar de uma mulher que já foi próxima de Almeida e publicou seu livro, o que para muitos me colocaria entre a cruz e a espada. Como mulher de axé, melhor analogia seria estar entre a flecha de Oxóssi e o machado de Xangô; entre a espada de Ogum e a de Iansã; o pilão de Oxaguiã e o porrete de Exu. E todos Eles demandam de nós coragem e verdade, independentemente da situação que se apresente.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Zelik Trajber
Foto: Ricardo Matsukawa