Professora analisa a entrada dos Lanceiros Negros no panteão dos heróis nacionais, mas reforça que o episódio que matou estes soldados se atualiza na violência do racismo em nossa sociedade
Por: João Vitor Santos, em IHU
A lei n. 14.795/2024 inscreveu os Lanceiros Negros no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Para muitos, a homenagem aos negros escravizados que aderiram à Guerra dos Farrapos (1835-1845) em busca de liberdade e igualdade é um reconhecimento e uma reparação histórica. A professora Daniela Vallandro de Carvalho também vai neste mesmo sentido, mas também não se furta de lembrar: “essa lógica de uma maior mortalidade de negros e negras pobres no país tem sido, infelizmente, um retrato constante da reprodução da estrutura hierárquica racializada que se ergueu no Brasil e do qual temos colhido esses podres frutos diariamente”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Daniela reforça que é preciso reconhecer a entrada dos soldados no panteão nacional. No entanto, não se pode perder de vista que “o massacre de Porongos de 14-11-1844 tem se reatualizado cotidianamente no Brasil. Mas se o massacre se reatualiza em diversas formas contemporâneas de violência, a luta e resistência também se reatualiza”.
A professora pontua também que “a história e o direito à memória são um campo de luta, e não se pode perder a oportunidade de trazer à luz da história aqueles que nos representam”. É por isso que a história dos Lanceiros precisa não só ser entronizada no livro de heróis, mas também recontada e atualizada no cotidiano. “Nós, pesquisadores da história do Rio Grande do Sul somos, via de regra, professores – em todos os níveis de ensino – e precisamos ensinar a história do Rio Grande do Sul a partir de novas pesquisas, inseri-las nos debates escolares e isso tem sido feito com grande esforço e competência”, sintetiza.
Daniela Vallandro de Carvalho possui graduação em História pelo Centro Universitário Franciscano – UNIFRA e mestrado em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. É doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e atua como professora da Universidade do Centro-Oeste do Paraná – Unicentro, campus Guarapuava. Sua pesquisa de doutorado originou a tese intitulada Nas fronteiras da Liberdade: experiências negras de recrutamento, guerra e escravidão.
Confira a entrevista.
IHU – O que representa a entrada dos Lanceiros Negros no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria?
Daniela Vallandro de Carvalho – A entrada dos lanceiros para o Livro de Heróis e Heroínas da Pátria é, antes de tudo, uma conquista dos grupos afrodescendentes do presente. Há muito que estes grupos têm lutado para serem reconhecidos como parte da história do Rio Grande do Sul, como sujeitos importantes para suas comunidades e para que a memória de seus antepassados se torne visível, seja contada e permaneça enquanto memória.
É claro que temos aí muitas camadas de luta. E a primeira delas talvez seja romper a invisibilidade. O que fazemos nas universidades, ao conduzirmos pesquisas históricas, é se somar a esse processo, reforçá-lo, conferir legitimidade a um grito que vem de longe. Todavia, é importante destacar que a entrada de sujeitos e/ou grupos antes invisibilizados no panteão “oficial” de heróis da Pátria tem vieses de atuações políticas das mais diversas – no sentido amplo do termo – e que na atual conjuntura encontra-se favorecida nacionalmente.
A história e o direito à memória são um campo de luta, e não se pode perder a oportunidade de trazer à luz da história aqueles que nos representam. Mas é preciso se manter vigilante e, sobretudo, dar continuidade a esse trabalho de divulgação, de ensino, de memória. Uma decorrência relevante talvez seja que, agora, esses heróis negros habitem os livros didáticos e suas histórias de luta sejam mais difundidas (isso evidentemente que já vem sendo feito à revelia de estarem eles ou não no Panteão de heróis nacionais). Mas, sem dúvida, é um ganho gigantesco.
IHU – Pode recuperar quem foram os Lanceiros Negros e o trágico episódio de Porongos? Como a historiografia tem lido este massacre?
Daniela Vallandro de Carvalho – Os Lanceiros Negros foram homens escravizados, alçados à condição de soldados farroupilhas. A necessidade de homens nas tropas, bem como a experiência e conhecimento que possuíam, tanto do território sulino como das lides do homem do campo, necessários naquele contexto de guerra volante, foram fundamentais para a criação de regimentos que os incorporassem ao exército farroupilha. De forma geral, esses homens que se tornaram lanceiros foram recrutados entre escravarias distribuídas pelo sul, sudeste e sudoeste da província. É importante lembrar que durante os dez anos de guerra nunca toda a província foi farroupilha, isto é, havia regiões de maior domínio dos farrapos, e outras que jamais tiveram a penetração necessária para ser considerada dominada.
Nesse sentido, os escravos da “causa” farroupilha foram, de forma geral, recrutados entre os inimigos do movimento farroupilha. Muitos soldados negros farroupilhas foram prisioneiros de guerra que passaram a engrossar as fileiras farrapas, situação que aconteceu corriqueiramente, inclusive como tática de remonta de tropas, visto que a deserção era uma realidade bastante evidente. Em alguns momentos mais em outros menos, a deserção sempre existiu e sempre foi um problema a ser sanado pelas elites farroupilhas. Inclusive, os documentos apontam que os primeiros escravos recrutados tenham sido retirados de escravarias de charqueadores de Pelotas que fugiam para Rio Grande e que eram inimigos da causa farrapa.
Massacre de Porongos
O “evento” Porongos se refere ao acorrido na madrugada de 14-11-1844, nos anos finais da Guerra Civil Farroupilha, no Cerro de Porongos (hoje município de Pinheiro Machado-RS), onde batalhões de soldados negros, entre eles lanceiros, e parte da infantaria foram mortos em um combate com as tropas imperiais, sob o comando do Coronel Francisco Pedro de Abreu, Comandante da 8ª Brigada do Exército.
Esse episódio vem sendo discutido há pelo menos 150 anos e tem suscitado interpretações diversas. Na minha tese e em pesquisas de muitos outros historiadores que têm olhado com cuidado para essa questão, foi de fato uma traição e um massacre. Há anos historiadores já vêm se posicionando e demonstrando que a traição não só é um fato consolidado como também esse debate tem se espalhado de forma positiva nas discussões acerca da história do Rio Grande do Sul e da Guerra Civil Farroupilha.
Parece que nosso trabalho tem surtido efeito nessa disputa de narrativas, ainda que acredite que muito mais ainda precisa ser feito. E esse caminho é longo e de todos. Nós, pesquisadores da história do Rio Grande do Sul somos, via de regra, professores – em todos os níveis de ensino – e precisamos ensinar a história do Rio Grande do Sul a partir de novas pesquisas, inseri-las nos debates escolares e isso tem sido feito com grande esforço e competência. Além dos não menos importantes coletivos e movimentos negros organizados em torno dessa questão. Só assim passaremos a consolidar novas interpretações – devidamente embasadas, evidentemente, em uma história do Rio Grande do Sul menos heroica, idealizada, mas sem dúvida mais plural, com personagens reais, onde a resistência e a luta dos grupos negros e escravizados recebam o devido protagonismo de suas lutas, tensões e resistências.
Narrativas historiográficas
Sobre como a historiografia tem tratado essa questão, temos muitas interpretações e que não começaram ontem. O debate remonta ao imediato pós-Guerra Civil Farroupilha, nos idos de 1850, levantada por Domingos José de Almeida. Do que temos conhecimento, ele parece ser o primeiro a questionar se Canabarro teria ou não traído os Lanceiros. A partir de então, o fato gerou uma acalorada controvérsia entre os estudiosos.
Tal evento passa a receber diversas denominações – batalha, surpresa, traição ou massacre –, cada uma delas carregando em si os significados e os entendimentos atribuídos ao evento, conforme a interpretação efetuada. Através da Carta de Porongos, um primeiro grupo de estudiosos defende a tese de que o general farroupilha David Canabarro teria, propositadamente, desarmado e separado os lanceiros do restante das tropas acampadas nas imediações do Cerro de Porongos para que fossem aniquilados pelo exército imperial sem oferecer resistência.
Canabarro desejaria, assim, livrar-se dos Lanceiros para facilitar a assinatura do tratado de paz que vinha sendo negociado, já que o Império do Brasil se mostrava contrário à ideia de premiar com liberdade os escravos rebeldes. Dar-lhes a liberdade era algo não cogitado pelas elites, pois se temia que um grande contingente de negros livres pudesse não só pôr em risco a estrutura social no qual estava assentada a sociedade escravocrata, como também possibilitar que estes homens com larga experiência militar e politizados pudessem incitar outros escravos, insatisfeitos com sua condição a lutarem pela liberdade.
Por outro lado, não lhes dar a liberdade também poderia levar os escravos a incitarem insurreições, bem como promoverem fugas em massa para o Uruguai, onde a escravidão havia sido recentemente abolida. Relatos de pessoas que estiveram presentes na batalha informam ainda que o general farroupilha teria sido avisado da aproximação das tropas inimigas e não tomou providências.
Intrigas políticas e jogos de versões
Por este enfoque interpretativo, o episódio foi considerado uma traição de Canabarro aos soldados negros a ele subordinados. Outra corrente afirma que a Carta de Porongos foi forjada pelos imperiais com o objetivo de desmoralizar Canabarro, único chefe farroupilha que ainda teria condições de aglutinar as desgastadas forças rebeldes. Felix de Azambuja Rangel, contemporâneo do conflito, deixou um relato afirmando ter tomado conhecimento do momento em que Moringue mostrou a citada correspondência a Caxias e este assinou e mandou tirar as cópias posteriormente divulgadas entre os farroupilhas.
Manuel Patrício de Azambuja, outro contemporâneo da guerra, teria escutado do próprio Francisco Pedro de Abreu uma confissão desta trama, bem como sua afirmação de que teria produzido bom efeito a “bomba” lançada entre os farrapos. Nesta perspectiva, a Carta seria falsa e o ataque aos lanceiros uma “surpresa”, já que eles teriam sido pegos desprevenidos e não teria havido a intenção de seus líderes em facilitar o seu extermínio.
Seja como for, hoje parece haver consenso entre os pesquisadores de que estes guerreiros negros foram atacados em uma situação extremamente desfavorável. Eles estavam extenuados pela longa duração do conflito, em inferioridade de armamentos e de pessoal e encontravam-se desavisados do perigo iminente, sendo eliminados em quantidade considerável. Nesse sentido, a adoção do termo “massacre” não implica necessariamente em adesão à tese da traição ou da surpresa, mas sim o reconhecimento das condições severamente desiguais do conflito.
IHU – O que a luta dos Lanceiros Negros nos diz sobre o republicanismo, liberdade e igualdade?
Daniela Vallandro de Carvalho – Entendo que, se pensarmos o republicanismo ligado ao seu sentido moderno, de participação popular nas tomadas de decisões e voto igualitário a todos sem distinção, a luta dos lanceiros é uma luta por, primeiramente, reconhecimento e, depois, por igualdade de trato, de acesso a condições que lhes permitam exercerem uma cidadania plena. É algo que no Brasil, historicamente, sempre foi negado, negligenciado, esquecido quando se trata de populações negras.
Não podemos esquecer o clássico trabalho do historiador/cientista político José Murilo de Carvalho sobre as diversas classes de cidadãos no Brasil. No passado e no presente, a luta dos lanceiros é uma luta por políticas publicadas de identidade e cidadania, algo que, através do reconhecimento e inserção, pelo Ministério da Igualdade Racial, dos lanceiros Negros no livro dos Heróis e heroínas da Pátria, está sendo posto em prática.
IHU – Como o gauchismo vem tratando esta memória de Porongos? Como este mesmo gauchismo deve ser impactado por este reconhecimento nacional aos Lanceiros?
Daniela Vallandro de Carvalho – Há alguns anos, eu disse em uma entrevista que os cultuadores do gauchismo possuem uma relação problemática com a memória de Porongos, visto que, ao falarmos do massacre de Porongos sob uma perspectiva histórica, devidamente problematizada e embasada em evidências, passa-se a questionar alguns heróis consolidados pela tradição. Nesse sentido, o gauchismo sente-se ofendido na memória que construíram, que inventaram sobre si e sobre o Rio Grande do Sul. Ainda penso que isso permanece, pois o gauchismo parte de uma tradição inventada (todas elas são) e que conforma um modelo de gaúcho.
Esse modelo é fechado, dogmático no sentido de não permitir uma reatualização nem da cultura gaúcha e da história do Rio Grande do Sul, e nem do ser gaúcho. E esse modelo ainda é branco, descende de europeus (no máximo descende de portugueses e/ou luso-brasileiro). Evidente que existem variações nesse gauchismo, mas, via de regra, ele não se coaduna com perspectivas históricas que oferecem outras interpretações, outras evidências e, por conseguinte, um outro Rio Grande do Sul mais plural, mas colorido, mais democrático.
Penso que o reconhecimento nacional dos Lanceiros Negros como heróis da Pátria possa não causar efeito algum sobre esse gauchismo ao qual me refiro acima, uma vez que os heróis negros de Porongos sempre serão irrelevantes perante o panteão dos heróis que o gauchismo ergueu. Todavia, penso também que não é sobre esse gauchismo mais duro que esse reconhecimento deva impactar, mas sobre a própria população afrodescendente no estado, que agora vê os “seus” também alçados à condição de heróis.
Heróis para se reconhecer
Os negros e negras do Rio Grande do Sul agora possuem oficialmente – visto que na prática isso já acontecia de longa data – heróis em que possam se reconhecer. Trata-se de um patamar a mais nas resistências e no direito à memória dessas populações. O campo de luta continua aberto e em disputa, e cada vez mais espaços e degraus têm sido alcançados pelos afrodescendentes no Sul em específico e no Brasil como um todo.
A luta das comunidades, aliadas a um conjunto grande e diverso de políticas públicas pela igualdade racial, somado à divulgação da história desses grupos e à renovação do ensino de história pensado para uma educação das relações étnico-raciais, é o caminho para, na prática, experienciarmos viver em sociedades um pouco menos racialmente desiguais.
IHU – O reconhecimento dos Lanceiros Negros como heróis nacionais não deve sanar todas as polêmicas em torno do Massacre de Porongos?
Daniela Vallandro de Carvalho – Não acho que as polêmicas irão cessar, pelas razões que expus acima, sobretudo por tratar-se de concepções já consolidadas sobre um modelo de gaúcho. Mas esses modelos só se perpetuam porque há socialmente uma aceitação e reiteração. Quanto mais se alarguem os horizontes de representatividade, quanto mais políticas públicas de inserção voltadas aos afrodescendentes, onde a pluralidade se veja e se reconheça, junto com políticas públicas que redundem em melhorias práticas na vida (melhoria de renda, moradia, saneamento básico, educação pública de qualidade em todos os níveis), talvez possamos provocar fissuras nesse racismo estrutural que se ergueu em nosso país.
Proporcionar igualdade de condições a quem nunca as teve e sempre correu atrás é uma das tarefas mais árduas de nosso processo civilizatório a ser realizada cotidianamente, com um conjunto amplo de medidas.
IHU – Quem são os outros heróis e heroínas pretos no Brasil? Reconhecer estes sujeitos da história representa um avanço, mas como isso se coaduna com a luta diária contra o racismo e as desigualdades?
Daniela Vallandro de Carvalho – Os heróis negros estão por aí, todo dia, labutando para sobreviver. Entendo que eles precisam é de visibilidade para que suas histórias possam aflorar. Os historiadores têm feito seus trabalhos com pesquisas de qualidade, os professores também, ao inseri-los em suas aulas. Coletivos, sites, redes sociais, podcasts e meios variados precisam chegar às pessoas para que essas histórias se multipliquem e sejam conhecidas. Gente trabalhando para isso não falta.
Veja que no Carnaval e muitas escolas de samba trouxeram histórias negras nunca contadas, desconhecidas e a projetam para o mundo. Isso é fantástico. A cultura popular brasileira é riquíssima, a história da população negra é riquíssima (ainda que permeada de dor e luta).
Precisamos sair da bolha e olhar para os lados e assumir que esse trabalho não é exclusividade de pesquisas acadêmicas, ainda que elas sejam muito importantes, porque só assim teremos uma representatividade minimamente adequada que faça que a população negra brasileira – que é gigante – conheça suas histórias, se entenda e se reconheça. O reconhecimento é um primeiro passo para o enfrentamento ao racismo e às desigualdades. Todavia, é evidente que são caminhos e que precisam se coadunar com políticas públicas, como já disse em outra resposta. Mas é um trabalho coletivo, é um trabalho da sociedade brasileira como um todo.
IHU – Em termos historiográficos, o quanto ou no que ainda precisamos avançar no reconhecimento da história de pretos e pretas em nosso país?
Daniela Vallandro de Carvalho – Em termos historiográficos, os avanços são gigantes, temos uma produção pujante tanto nos cursos de graduação, com iniciações científicas, projetos educacionais como o Programa de Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID (que fazem a relação entre pesquisa e ensino traduzir-se na prática dos discentes e constroem aplicações pedagógicas dentro do espaço escolar) como também nos programas de pós-graduação em História (seja acadêmico, seja profissional) por todos os cantos do país.
A produção é grande, temos eventos acontecendo por todo país (presenciais e online, em várias frentes de pesquisa) que eu resumiria aqui em dois grandes campos: pesquisas que se centram em temas voltados à população negra, escrava, livre e liberta, até a abolição; e pesquisas que se centram no que se convencionou chamar de pós-abolição, vindo até tempo presente.
Em ambos os campos, as subtemáticas, as fontes e a variedade de análise são enormes e de grande qualidade. Penso que talvez ainda tenhamos muito a caminhar no processo de divulgação científica da história e no campo do ensino de História. Mas aos poucos essa enormidade de trabalhos científicos vem aparecendo, seja por meio da História Pública, seja através de atividades acadêmicas de extensão (onde a comunidade e a universidade dialogam), seja ainda via professores em sala de aula da educação básica que têm feito grandes esforços para ensinar, debater e inserir novas posturas historiográficas – mesmo diante de estruturas de ensino públicas engessadas – que deem relevo à história dos negros e negras no ensino de seus alunos.
Para isso, é evidente que um dos caminhos é a formação continuada dos professores de História, a fim de que possam estar sempre se atualizando com novas produções.
IHU – Hoje, homens negros e pobres são os que mais morrem nas periferias do país. Vivemos ainda as lógicas que levaram ao episódio de Porongos?
Daniela Vallandro de Carvalho – Essa lógica de uma maior mortalidade de negros e negras pobres no país tem sido, infelizmente, um retrato constante da reprodução da estrutura hierárquica racializada que se ergueu no Brasil e do qual temos colhido esses podres frutos diariamente. Vivemos ainda nessa lógica, sim. Há Porongos por todas as partes do Brasil.
Porongos está nas chacinas de jovens e crianças negras nas periferias. Porongos está nos trabalhos análogos a escravidão (entra ano e sai ano, e continuamos a descobrir pessoas em situação análoga à escravidão em diversos espaços; a mais recente que recordo foi em colheitas de safra de uva no Rio Grande do Sul). Porongos está na violência contra meninas negras que são violentadas, abusadas e engravidam de seus estupradores e, ainda assim, são convencidas por juízes e juízas brancas a levarem a gravidez adiante, pois são “a favor da vida”. Porongos está nos campos de futebol onde semanalmente presenciamos serem proferidos cânticos e xingamentos racistas.
Eu poderia ficar dando exemplos infinitamente. Nesse sentido, o massacre de Porongos de 14-11-1844 tem se reatualizado cotidianamente no Brasil. Mas se o massacre se reatualiza em diversas formas contemporâneas de violência, a luta e a resistência também se reatualizam.
Não sei se podemos falar em superação – seria até uma ofensa à memória de milhões de pessoas negras que já morreram vítimas dessa sociedade racista que somos –, pois há dores que são insuperáveis. Mas acho que podemos falar em ampliação de direitos, em reparações, em melhorias de condições básicas, em melhorias de acesso e uma educação antirracista como princípio humanitário. Não há saída fácil, há muito trabalho a ser feito para minimizar as desigualdades raciais no Brasil.
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Os Lanceiros Negros, soldados que lutaram na Guerra dos Farrapos, agora terão seus nomes oficialmente inscritos no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria – Ilustração: Juan Manuel Blanes