Nota pública da Justiça Global sobre acordo firmado entre comunidades quilombolas de Alcântara e Governo Federal

Justiça Global

Foi assinado, nesta quinta-feira (19), o Acordo entre o Estado brasileiro e os representantes das Comunidades Quilombolas de Alcântara. Diferentemente do que vem sendo divulgado amplamente pela imprensa, o Acordo assinado foi produzido a partir de diálogos estabelecidos entre o Governo Federal e representantes das Comunidades Quilombolas de Alcântara, após o insucesso das negociações no âmbito do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), e pode representar o esvaziamento de uma sentença condenatória internacional.

Vale lembrar que as entidades representativas das comunidades quilombolas de Alcântara participaram do referido GTI, instituído pelo Decreto n. 11.502, em abril de 2023, durante seis meses, ocupando as vagas destinadas à representação quilombola. Conforme o Decreto 11.502/2023, a composição do GTI contou com 13 representações governamentais e apenas quatro representações quilombolas, o que revelou um drástico desequilíbrio de poder na representatividade. Ressalte-se que nenhuma representação quilombola de Alcântara ou de suas instituições de assessoria técnica e jurídica, incluindo as peticionárias perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, foi consultada sobre a criação do GTI, recebido com surpresa quando anunciado na audiência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em abril de 2023.

Durante o período em que atuou o referido GTI, ficou evidenciado que seu propósito seria buscar formas de conciliação entre os interesses dos militares da Força Aérea Brasileira e os direitos ancestrais ao território tradicional, aos recursos naturais e à propriedade coletiva das comunidades quilombolas. O governo brasileiro não ofereceu condições justas e equilibradas para o debate e não disponibilizou estudos técnicos e científicos para subsidiar a tomada de decisão, bem como não foi apresentado o planejamento das ações pretendidas. O GTI não buscou solucionar a dívida histórica do Estado brasileiro de titular as terras quilombolas. Ao invés disso, o Governo Federal buscou “alternativas para a titulação territorial” com o intuito de reiniciar processos de conciliação incumpridos ao longo de mais de 40 anos. Diante deste contexto, as entidades representativas das Comunidades Quilombolas de Alcântara decidiram por se retirar do Grupo de Trabalho Interministerial.

Em julho deste ano, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) recomendou que o Brasil titule os territórios quilombolas do município de Alcântara e siga em relação ao caso o que está previsto na Convenção 169 da Organização OIT, que prevê a consulta prévia, livre e informada sobre projetos e medidas que afetem povos indígenas e comunidades tradicionais. Foi a primeira vez na história que a OIT emitiu recomendações sobre comunidades quilombolas no Brasil. As recomendações são resultado de uma Reclamação apresentada, em 2019, contra as violações de direitos dessas populações e o descumprimento da Convenção 169 por parte do governo brasileiro na implantação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), na década de 1980. A denúncia foi apresentada pelo Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar de Alcântara, em nome das comunidades quilombolas, do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe) e da Associação do Território Quilombola de Alcântara (Atequila).

Além disso, o Estado brasileiro é réu perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. A denúncia foi apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2001 por representantes de comunidades quilombolas do Maranhão, o Movimento dos Atingidos pela Base de Alcântara (Mabe), a Justiça Global, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão (Fetaema), o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e a Defensoria Pública da União (DPU). As violações denunciadas também são decorrentes dos deslocamentos forçados realizados para a instalação do CLA da Força Aérea Brasileira, bem como pela omissão do Estado brasileiro em titular o território quilombola. Além das desapropriações e remoções compulsórias, a perda do território impactou o direito à cultura, alimentação adequada, livre circulação, educação, saúde, saneamento básico e transporte de quase duzentas comunidades quilombolas.

A denúncia foi admitida pela CIDH em 2006. No relatório de mérito emitido em 2020, após duas audiências (em 2008 e em 2019), a CIDH recomendou que fosse feita a titulação do território, a consulta prévia em relação ao acordo firmado junto aos Estados Unidos, a reparação financeira dos removidos compulsoriamente e um pedido de desculpas público. Diante do incumprimento das recomendações da CIDH, em janeiro de 2022, o caso foi levado à Corte. A audiência pública do caso ocorreu em abril de 2023, durante o 156º Período Ordinário de Sessões da Corte Interamericana. E os peticionários ainda aguardam a emissão da sentença.

Na ocasião o Estado brasileiro reconheceu as violações ao direito de propriedade das comunidades quilombolas de Alcântara pela omissão em titular o território, e ao direito à proteção judicial, em decorrência da demora processual e da ineficiência das instâncias judiciais e administrativas, emitindo uma declaração oficial com pedido de desculpas em relação a essas violações – questionado pelas comunidades e organizações peticionárias. Quanto às medidas de reparação, o Brasil se comprometeu com a titulação progressiva do território quilombola de Alcântara – ao menos das terras não demandadas para expansão do CLA – e também a viabilizar a destinação de recursos financeiros a título de compensações.

Apesar de reconhecer parte das violações, em uma tentativa de evitar condenação no mérito, o Estado brasileiro alegou que a Corte Interamericana não teria competência para julgar os deslocamentos forçados, visto que na época da instalação do CLA o país ainda não fazia parte do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, e a Convenção 169 da OIT ainda não havia sido estabelecida. A postura do Brasil na audiência foi considerada incoerente por alguns grupos, que observaram a dificuldade do governo Lula em conciliar as posições contraditórias entre os setores progressistas e conservadores que integram a atual gestão.

O caso “Comunidades Quilombolas de Alcântara vs Brasil” é um caso emblemático e histórico, não somente pela confrontação de atos realizados pelas Forças Armadas em um Tribunal Internacional, mas também porque é o primeiro caso em análise pela Corte Interamericana a tratar de direitos de comunidades quilombolas brasileiras relacionados à propriedade territorial ancestral e coletiva.

Os documentos assinados nesta quinta-feira (19) ainda não resolvem o conflito histórico em Alcântara. Embora sejam passos importantes, o Decreto de Interesse Social e a Portaria de Reconhecimento não enfrentam diretamente a questão central – a titulação. De acordo com o Termo firmado, o Governo Federal tem o prazo de um ano para iniciar as ações voltadas à regularização fundiária do território. O Termo de Conciliação, mediante o qual o Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação e o Comando da Aeronáutica renunciam à reivindicação de expandir o CLA sobre o território quilombola, oferece uma solução precária, pois a renúncia não dependia da conciliação, pois é ato unilateral. E o destravamento do processo de titulação, mediante a edição da Portaria de Reconhecimento e do Decreto de Interesse Social, já haviam sido determinados por decisões judiciais de cortes nacionais e internacionais. A omissão em fazê-lo também já foi reconhecida pelo Estado.

A assinatura do Acordo, neste momento, é temerária, pois pode representar o enfraquecimento de uma possível condenação internacional do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, bem como pode fragilizar o processo em curso de deliberação da Corte, colocando a obrigação internacional do Estado brasileiro de realizar a titulação em compasso de espera.

Após mais de quarenta anos de conflito, o governo brasileiro teve inúmeras oportunidades de titular e garantir os direitos tradicionais das Comunidades Quilombolas de Alcântara, mas não o fez. Que o tempo e a violência que atravessaram historicamente as Comunidades Quilombolas de Alcântara sejam reparados integralmente e que não se repitam com outras comunidades quilombolas e tradicionais no Brasil.

Rio de Janeiro–RJ, 20 de setembro de 2024.

Imagem: Comunidade quilombola no município de Alcântara (MA) – Foto: Ana Mendes

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