Plataforma de territórios tradicionais, ferramenta para demarcação! Por frei Gilvander Moreira

Enquanto uma gigantesca nuvem de fumaça tinha se formado e se mantinha na maior parte do Brasil[1], adoecendo milhões de pessoas e com incêndios que incineram vivos milhões de seres vivos, em uma realidade brutal que mostra o exaurimento do modelo de sociedade capitalista, máquina brutal de moer vidas, barbárie que nos empurra para o colapso final das condições de vida no planeta Terra, neste contexto, com mais de 300 participantes, presencialmente e on-line, entre membros e servidores do Ministério Público Federal (MPF), representantes do Poder Público Federal e da sociedade civil, Movimentos Sociais, organizações não-governamentais e professores/as de Universidades, dias 17, 18 e 19 de setembro de 2024, participamos em Brasília, na Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), de um Curso/Encontro de aperfeiçoamento com o tema “Territórios tradicionais não demarcados: o que fazer?”, promovido pelo MPF, ESMPU e pelo Projeto Territórios Vivos, do MPF, coordenado pelo combativo procurador Dr. Wilson Rocha Fernandes Assis. Foi muito bom e inspirador o Curso/encontro para qualificar as lutas justas e necessárias para garantir que os Territórios dos Povos e Comunidades Tradicionais sejam demarcados, o que só acontecerá com autodemarcação. “Não dá mais para esperar que o Estado cumpra sua missão constitucional”, alertam muitas lideranças de Movimentos Sociais. Sem pressão, o Estado não atua a favor dos Povos Tradicionais e do povo injustiçado em geral.

Discutimos estratégias para consolidar e ampliar uso da Plataforma de Territórios Tradicionais[2], que é um portal na internet criado para acolher a autodeclaração de Povos e Comunidades Tradicionais apresentando seus Territórios Tradicionais, inclusive. Já que o Estado está sendo mais do que omisso e moroso, mas cúmplice de quem não quer a demarcação dos Territórios Tradicionais, as Comunidades Tradicionais podem e devem apresentar ao Estado, via autodeclaração seus Territórios Tradicionais.

A Plataforma de Territórios Tradicionais é fruto de parceria entre o MPF, a Agência de Cooperação Técnica Alemã (GIZ) e o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), criado pelo presidente Lula. Elaborada e alimentada pelos Povos e Comunidades Tradicionais, a Plataforma utiliza o georreferenciamento para que as Comunidades registrem seus modos de vida, histórias, demandas, ameaças territoriais e contribuições à conservação da sociobiodiversidade. Ela também fornece um panorama da situação fundiária desses Povos no Brasil, a fim de respaldar políticas e mecanismos efetivos para a proteção dos territórios tradicionais. Atualmente, a Plataforma conta com 357 territórios cadastrados, dos quais 208 já aprovados pelo Conselho Gestor.

Se há o Cadastro Ambiental Rural (CAR), que é feito por autodeclaração pelos proprietários de terra, por que não há um autocadastro de Povos e Comunidades Tradicionais? Lançada em 2020, a Plataforma de Territórios Tradicionais busca preencher esta lacuna no Estado brasileiro. Além de usarem o Protocolo de Consulta, as Comunidades Tradicionais agora podem e devem se autocadastrar na Plataforma de Territórios Tradicionais para dizerem que existem e dar um passo importante na luta pela autodemarcação de seus Territórios.

Dr. Wilson Rocha, do MPF, enfatizou: “O objetivo de nosso trabalho é que o Poder Público se aproprie da Plataforma para conhecer e levar em conta os Territórios não demarcados na condução de suas políticas públicas. Precisamos observar o Enunciado 47, da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, que reconhece a autodeclaração territorial, e trabalhar para aprimorar a governança fundiária em nosso país no sentido de reconhecer a posse tradicional como um direito fundamental.”

No MPF, 6ª Câmara tem a missão de defender os Povos Tradicionais. E 4ª Câmara do MPF tem a tarefa de cuidar e defender as Unidades de Conservação. Os Povos e as Comunidades Tradicionais não podem ser expulsos das Unidades de Conservação, primeiro porque estavam lá muito antes da criação das Unidades de Conservação, segundo, porque não podemos aceitar um ambientalismo que exclua o direito ancestral de posse que famílias tradicionais exercem. Terceiro, a experiência demonstra que os Povos Tradicionais são guardiões das florestas, do cerrado… e não podem ser arrancados de seus espaços de vida históricos.

A Constituição Federal de 1988 prescreve a demarcação de terras indígenas e o reconhecimento de terras quilombolas.[3] Na velocidade atual, em passo de tartaruga, o Estado precisará de mais de 2.000 anos para demarcar (se demarcar!) os Territórios dos Povos e Comunidades Tradicionais. Lideranças de Povos e Comunidades Tradicionais denunciam: “Não temos direito a Escola Indígena, Quilombola, e a muitas outras políticas públicas, porque nossos Territórios não foram ainda demarcados. Demarcar os Territórios é a reivindicação mãe que viabiliza a conquista de muitos outros direitos.” Com um ano e nove meses de governo Lula, somente dez Territórios Tradicionais foram demarcados.

O MPF abrigou o Projeto Territórios Vivos que levou à construção da Plataforma para reforçar a luta dos Povos Tradicionais com Territórios não demarcados. O Enunciado 47 da 6ª Câmara do MPF estimula os procuradores do MPF a defender os direitos dos Povos Tradicionais. A ex-Procuradora Geral da República Dra. Raquel Dodge, presente na abertura do Curso/Encontro, diagnosticou: “Usando instrumentos tradicionais não temos conseguido o Reconhecimento e a Demarcação de Territórios dos Povos Tradicionais. Temos que arrumar novos instrumentos. A criação da Plataforma de Territórios não demarcados inova nesta luta justa.”

Os Povos estão cansados e perigosamente correndo o risco de perderem seus Territórios não demarcados. Enquanto não emanciparmos todas as pessoas e os Povos e Comunidades Tradicionais, que passa necessariamente pela superação do aprisionamento da terra, pelo fim do cativeiro da terra[4], ou seja, acesso à terra a começar pelo campesinato e Povos e Comunidades Tradicionais, a abolição de relações sociais escravocratas estará inconclusa.

A FUNAI nos últimos anos tem devolvido dinheiro do seu orçamento, porque não consegue implementar várias políticas públicas indígenas. Em 2016, os golpistas fizeram reformas estruturantes, entre as quais a aprovação da Emenda Constitucional 95, que reduziu drasticamente o orçamento para políticas públicas, acabou com a possibilidade de o Estado realizar políticas públicas que beneficiem o povo. De 2019 a 2022, com a extrema direita no Poder Executivo Federal, houve assédio institucional que desmontou a estrutura do Estado. Há um imenso passivo a ser superado. Ledo engano esperar que o governo federal vai conseguir reconstruir o que foi desmontado, pois está manietado por um Congresso Nacional com ampla maioria de direita e de extrema direita, ou seja, inimigos dos Povos.

A história da luta dos Povos Tradicionais mostra o Estado violando os Territórios dos Povos com a implantação de Parques nacionais e estaduais e outras grandes obras de interesse do capital. A Constituição Federal (CF/88) determinou a criação de Unidades de Conservação ambiental. A ideia de espaços vazios é um mito, viabiliza colonização do cerrado e da Amazônia. A CF/88 precisa ser lida integralmente. Desde Luzia encontrada por arqueólogos na Região Metropolitana de Belo Horizonte, com idade estimada de 11 mil anos, o bioma Cerrado tem sido ocupado por muitos Povos Tradicionais: Sertanejos, Geraizeiros, Veredeiros, Groteiros, Pescadores, Vazanteiros, Apanhadores de flores sempre-viva etc. A Amazônia sempre foi ocupada por Povos Amazônidas Tradicionais. Nos Pampas, entre os Pampeiros estão há muitos séculos pescadores artesanais, Povos Indígenas como os Guarani, Kaingang e Charrua etc. No Pantanal vivem há séculos os Pantaneiros em uma grande diversidade cultural. Na Caatinga estão os catingueiros. Enfim, todos os Territórios sempre foram muito ocupados por muitos povos Tradicionais.

Dia 7 de fevereiro de 2007, o presidente Lula, pelo Decreto 6.040, instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais que incorpora a Convenção 169 da OIT[5]. A Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais surge para viabilizar o que prescreve o Decreto 6.040 e a Convenção 169. No Livro Comunidades imaginadas, de 1983, o pensador Benedict Richard O’Gorman Anderson discute as diferenças entre Comunidades imaginadas, idealizadas, e comunidades reais, onde as pessoas se conhecem mutuamente.

Os Povos e Comunidades Tradicionais continuam padecendo de grande invisibilidade. Só os Quilombolas entraram no censo do IBGE de 2022. A Plataforma de Territórios Tradicionais busca ampliar a visibilidade e potencializar as lutas concretas pela demarcação de seus territórios e os outros direitos. No Censo do IBGE, de 2022, em Belo Horizonte e Região Metropolitana, 6.476 pessoas se autodeclararam INDÍGENAS, em contexto urbano, desterritorializados.[6]

No Brasil, há um passado colonial capitalista que insiste em se reproduzir. Grande problema do Brasil é que somos um país sem memória. Deixar as pessoas invisíveis é ótimo para matá-las aos poucos. Faz bem assistir ao filme História de amor e fúria, do diretor Luiz Bolognesi, de 2013, com enredo que, mesclando ficção e realidade, conta a história de um homem que está vivo há 600 anos no Brasil. O protagonista passa por momentos marcantes da história do país, desde os conflitos indígenas na época da invasão dos portugueses, passando pela Balaiada, no Maranhão, pela ditadura militar de 1964 a 1985 e a guerra pela água em um futuro não tão distante em 2096, podendo ser bem antes com o avanço da Emergência Climática e dos Eventos Extremos.

Em uma sociedade capitalista com lógica colonialista, a terra e o Território deixam de ser importantes. A idolatria da vida em cidades mercantilizadas desenraiza as pessoas e as arranca do campo. Passa a valer estudar e ser mão de obra para o mercado. Meu pai José Moreira de Souza, sempre dizia diante de convites para deixar o campo e ir morar na cidade: “Nasci na roça e na roça vou morrer.” Com esta determinação, terminou seus dias aqui na Terra, na beira do rio Claro, em Arinos, MG.

Plataforma de Territórios Tradicionais: que beleza! A terra é matriz do poder. No sistema capitalista quem manda são as grandes empresas transnacionais, tais como Nestlé, Bayer, Bradesco, Vale S A, entre outras. A comida envenenada servida ao povo brasileiro com exagero de agrotóxico e os enlatados estão gerando pessoas com ansiedade. Falta-nos a alimentação de verdade dos Territórios Tradicionais. Comida de verdade era a feita pela vovó a partir das hortas agroecológicas.

Precisamos de um novo mote de mobilização de lutas concretas por direitos. A educação no Brasil tem que ser diversa, com vários Ministérios da Educação e Cultura (MECs). A Corte Interamericana de Direitos humanos fala em muitos julgados de Direitos Territoriais e não de direito de propriedade. O poeta Olavo Bilac advertia: “Não se curve nem diante de seus pais“. Não se curve diante de quem ameaça seus direitos.

Sem Territórios, os Povos e Comunidades Tradicionais não serão solução para frear as brutais mudanças climáticas. Os custos socioambientais e os prejuízos dos grandes projetos do capital foram sempre jogados sobre os Povos e a Natureza. Emitir título de propriedade coletiva não é garantia jurídica. É preciso autodemarcação e soberania sobre o Território.

A Procuradoria Geral da República afirma no enunciado 47: “A autodeclaração é legítima e gera direitos que devem ser respeitados“. A posse tradicional é imprescindível, é direito que precisa ter primazia sobre o direito de propriedade.

Existem 45 milhões de terras públicas na Amazônia que ainda não foram destinadas. Serão destinadas para quem? Para Povos e Comunidades Tradicionais? O Governo Lula quer destinar 30 milhões de hectares de terras públicas para Comunidades Tradicionais, seguindo a Lei de Florestas Públicas, de 2006. Há terras públicas da União, estadual e privadas em Territórios Tradicionais. Que se abra a matrícula para as Comunidades Tradicionais!

Identificar sítios arqueológicos ajuda a proteger os Territórios Tradicionais. O IPHAN[7] precisa se dedicar a identificar os sítios históricos e arqueológicos.

A ausência de demarcação é uma brutal violência. A falta de reconhecimento e demarcação das terras dos Povos tradicionais têm provocado o aumento de violência contra os legítimos donos dos territórios. Existem de 500 lideranças populares em Programas de Proteção só no programa nacional.

O jurista e advogado Carlos Marés aponta: “A primeira consequência do direito de existir é o direito à territorialidade.” Os Povos Tradicionais lutam pelos territórios para garantir o direito à territorialidade. A autodefinição, autodeclaração é direito exclusivo dos Povos. Nenhum outro tem poder para dizer se o povo existe ou não. Ninguém pode exigir critérios para definir Povos. A autodeclaração dos Povos com seus Territórios é uma ótima forma de fortalecer a conservação e a preservação dos territórios. A autodeclaração é uma injunção e não uma alternativa. O Estado e a sociedade devem reconhecer e pronto. Uma idosa quilombola: “Eu vou morrer sem vocês reconhecerem nosso Território? Nós já o autorreconhecemos.”

Dra. Edelamare Melo, subprocuradora do Ministério Público do Trabalho, presente no Curso/Encontro: “Temos que repensar a noção de trabalho, pois trabalho escravo contemporâneo acontece não apenas em relação formal de contrato, mas a negação do direito aos Territórios gera uma escravização dos Povos e Comunidades Tradicionais.”

De Povos extintos há também Territórios Tradicionais não habitados que são sagrados, que devem ser preservados.

A cúpula do MPF precisa ser mais comprometida e dedicar um número maior de procuradores para defender os Povos e Comunidades Tradicionais. Não podem ser só 45 no Brasil, menos de dois por estado. Não pode continuar priorizando o criminal.

Notas:

[1] Imagens da NASA via satélites mostrou a maior parte do Brasil coberto por nuvem de fumaça, dia 16/09/24.

[2] Veja a Plataforma de Territórios Tradicionais no site: https://territoriostradicionais.mpf.mp.br/#/inicial

[3] Cf. art. 215, 231 e 232 da CF 88 e Art. 68 da ADCT.

[4] Se não leu ainda, sugiro a leitura do livro O Cativeiro da Terra, de José de Souza MARTINS. 9ª edição. São Paulo: Contexto, 2013.

[5] Organização Internacional do Trabalho da ONU, Organização das Nações Unidas.

[6] Leia http://gilvander.org.br/site/luta-e-resistencia-indigena-na-rmbh-cresce-e-fortalece-por-frei-gilvander-moreira/

[7] Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Imagem: Curso/Encontro em Brasília, na Escola Superior do Ministério Público da União. Foto: Reprodução do site do MPF

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

dezessete − 2 =