Desigualdades: Interpenetração racismo-machismo-pobreza. Novidade!? Por Nilma Bentes(1)

Há possibilidade de alguma pessoa brasileira ser absolutamente equilibrada, harmonizada consigo mesma? Qual percentual de equilíbrio emocional de pessoas negras [2] e brancas diante do racismo que está entranhado desde a invasão europeia – escravismo-colonial continuando pelo império e república atual? Pessoas brancas que se consideram NATURALMENTE superiores às negras e indígenas podem ser consideradas equilibradas? Penso que certamente NÃO. Ocorre que mesmo nas camadas de baixa renda, as pessoas/famílias brancas se beneficiam desse “privilégio branco”, criado à força[3].

Pessoas brancas de famílias baixa renda são priorizados socioeconômica-cultural-ambientalmente, o que inclui vagas no mercado de trabalho e/ou na geração de renda autônoma, somente por serem brancas[4]. Mas, se o racismo prejudica percentualmente mais a população negra no Brasil, cuja maioria internalizou uma inventada inferioridade natural de pessoas negras (sendo que mulheres negras, provavelmente, ‘naturalizam’ mais porque são mais resilientes a tratamentos subalternizadores mais acentuados).

Cabe insistir que apesar do racismo ser um só, procura-se ‘adjetivá-lo’ só questões “didáticas” em: racismo institucional/institucionalizado; racismo ambiental; religioso; educacional (escolas não adequadas, poucos negros cursam kumon, inglês, etc.);  cultural (valorização de música ‘clássica’/’operas’, apropriação de ritmos afro-negros, etc); racismo alimentar-nutricional (margarina é uma ´bomba´ mas é mais barata, biscoitos mata-fome, charque está cara,  até tomar cachaças, cervejas ou vinhos  mais ruins, mais baratos pode ser incluído nessa ‘categoria’); racismo esportivo  (maioria não pode mais  assistir ‘a jogos de futebol ao vivo, pois os campos não têm a mais a  ‘geral’ e os ingressos são caríssimos/ praticar natação, vôlei de quadra, tênis de quadra, esgrima, golfe são modalidades mais difíceis de pessoas negras praticarem).

Como tentar neutralizar tudo isso, se o sistema econômico está umbilicalmente ligado ao político? Se as terapias psíquicas-sociais usadas no Brasil (que são Euro-USA-branca-cêntricas) não podem atingir a maioria população negra, estimada em mais de 112 milhões de pessoas [5] ?

A maioria dos ativistas do movimento negro/mulheres negras (e pessoas negras acadêmicas) sabem que existem mecanismos psíquicos e fisiológicos que atingem a população negra que forjam uma baixa autoestima coletiva, o que faz a luta pela equidade racial seguir como se fosse um carro rodando com freio de mão puxado:  a) o racismo faz a maioria não gostar de ser pessoa negra; b) muitas pessoas negras não quererem andar com  pessoas negras; c) culpam os pais por a terem colocado no mundo sabendo que iriam sofrer; d) homens negros buscam se ligar  mais mulheres brancas, fazendo com que negras sintam mais ‘solidão’; e) faz pessoas negras acreditarem ser discriminadas apenas por estarem na pobreza; f) estarem mais sujeitas a males fisiológicos, muito ligados à insatisfação social/estresse cotidiano (hipertensão, diabetes, depressão-banzo, alcoolismo e outros males).

Observa-se que os autoproclamados patriotas brasileiros são, na maioria, nazifascistas[6], então, como construir uma equalização num  “…gigante pela própria natureza...”? Revolução marxista[7] em tempos de “antropocentrismo individualista/ capitaloceno”; “pejotização de trabalhadores e trabalhadoras”; da ascensão dos ‘influencers’ (inclusive mirins)?

Há espaço para “descolonizar” o pensamento, pensando e falando a língua de colonizadores?  “Descolonizar” a rebeldia[8], diante da gula, do poderio das nacio-multi-transnacionais do agronegócio, das mineradoras, dos avanços da IAs?  Sim, tem de haver espaço para um buscar de formas mais autônomas-sustentáveis de sobrevivência; consumo responsável, hábitos que forcem magnatas do petróleo e de outros produtos e serviços a repensarem e encontrarem um nível de bom senso, que contribuam no processo de eliminação de desigualdades (inclusive entre países; a América Latina não deve continuar a ser América Latrina, inclusive dos USA e Europa).

Uma outra ‘ordem mundial’ já está sendo demandada há séculos[9]. No Brasil não podem acusar a população negra de procurar morar em encostas e outras áreas perigosas, se o racismo força a isso desde o escravismo e a gentrificação é continuidade disso. Todos devemos contribuir para amenizar, frear os extremos climáticos, a crise humanitária. Certamente os caminhos deverão ser através de iniciativas que apostem em ações coletivas, até por estar em conformidade com os princípios ligados à sabedoria de povos originários de todos os continentes, inclusive da África-Ubuntu, “Sozinho ninguém é nada” – acrescento: ‘nem corno'[10]. Sim, insisto, uma outra ONU ou outra organização mundial similar, mas diferente, tem de ser possível. Segundo alguns, Bertolt Brecht disse mais ou menos isso: “Lutando a gente pode vencer ou perder, não lutando já perdemos”. É isso, seguiremos lutando.

[1] Ativista do movimento negro, engenheira agrônoma, uma das fundadoras do CEDENPA-Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará. Texto escrito em fim de 29 de setembro de 2024.

[2] É possível incluir indígenas, mas poderia ser considerado inadequado, porque apesar de semelhantes, as bases são diferentes – africanos escravizados, oprimidos na África correspondem a povos originários no Brasil. Aqui a ênfase é ‘diáspora africana negra para américas’; sim porque existem africanos brancos e descendentes deles – colonizadores e europeus negros, estes oprimidos pelo racismo, obviamente.

[3] Não esquecer que além de invadirem as Américas no sec. XV, brancos também colonizaram parte da Ásia e em 1884-1885 dividiram a África entre eles – Conferência de Berlim.

[4] Ver também “Pacto narcísico da branquitude” (Profa. Cida Bento)

[5] Em 2022, cerca de 92,1 milhões de pessoas se declararam pardas, o equivalente a 45,3% da população do país. Desde 1991, esse contingente não superava a população branca, que chegou a 88,2 milhões (ou 43,5% da população do país). Outras 20,6 milhões se declaram pretas (10,2%), enquanto 1,7 milhões se declararam indígenas (0,8%) e 850,1 mil se declaram amarelas (0,4%). Portanto, o número de pessoas que se autodeclararam negros (partos + pretos) no Brasil é de 55,5%, maioria absoluta. Os dados são do Censo Demográfico 2022: Identificação étnico-racial da população, por sexo e idade: Resultados do universo, divulgados hoje pelo IBGE. Cf. https://www. otempo.com.br/brasil/com-55-5-populacao-negra-e-predominante-no-brasil-diz-censo-2022-do-ibge-1.3298880

[6] É só observar a cor da maioria dos ‘golpistas do 8 de janeiro 2023’.

[7] Sobre o racismo também nas ‘esquerdas’, cabe lembrar a emblemática frase da Profa. Sueli Carneiro: “Entre a esquerda e a direita eu continuo negra” ou, vale parafrasear o Prof. Paulo Nogueira (creio), sobre Democratas e Republicanos nos USA: “na questão racial, a diferença entre a esquerda e a direita no Brasil é a mesma da Coca-Cola para a Pepsi-cola”

[8] Ver sinalizações do Bem Viver (Alberto Acosta e outros)

[9] Outra ONU é possível!

[10] Cito mais para ‘homenagear’, um ativista do movimento negro, que já demandou publicamente esse meu´ acréscimo´ ao Ubuntu.

Ilustração: Mihai Cauli , na Terapia Política.

 

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