Rimini, na Itália, foi palco de dois eventos com debates sobre atenção primária e cuidado comunitário. Destacaram-se experiências de cooperação e construção de rede entre serviços. A colaboração internacional pode inspirar novas construções coletivas
por Túlio Batista Franco e Ardigò Martino, Outra Saúde
A Itália fez sua reforma sanitária em 1978 e foi uma das referências importantes para, dez anos depois, consolidarmos na constituição federal do Brasil a reforma brasileira. Nasceu o SUS. Após todos estes anos, a construção de um sistema de saúde com base em uma Atenção Básica, robusta, com alta resolutividade, e que faz um investimento em serviços de referência territorial para além da Atenção Primária, como por exemplo, a ideia dos cuidados intermediários territorializados, continua sendo um objetivo a ser alcançado. Por isto mesmo, é pauta constante nas discussões locais, e eventos internacionais, como os que ocorreram em Rimini, na Itália.
A cidade termina o mês de setembro de 2024 respirando a política de saúde. Um trabalho que mescla ensino, extensão universitária, trabalho profissional e ativismo político no campo da Atenção Primária e serviços territoriais na saúde. Muito do que se discutiu vem da continuidade da relação de cooperação entre Universidades brasileiras e italianas, e serviços de saúde mútuos, que tiveram início com a articulação entre o Centro de Saúde Internacional e Intercultural – CSI, da Universidade de Bolonha e a Rede Unida no Brasil.
Rimini sediou dois importantes eventos. O primeiro, dia 24 de setembro, um Workshop Internacional “Contrasto alle Disuguaglianze e Sviluppo dei Servizi: Il Progetto Nodi Territoriali per la Salute e la Collaborazione tra Servizi, Enti Locali e Università” (Luta Contra as Desigualdades e o Desenvolvimento dos Serviços: o Projeto Nós Territoriais para a Saúde e Colaboração entre Serviços, Entidades Locais e Universidade). Este projeto consiste em construir 11 serviços de saúde que funcionarão como um lugar de encontro das redes, operando fluxos assistenciais como um platô capaz de realizar conexões entre diferentes possibilidades de “linhas de cuidado”.
É similar ao SUS no que se refere à distribuição territorial, através de microáreas, renomeadas de microzonas, constituindo assim uma importante capilaridade nas comunidades locais. Há um particular objetivo em garantir o acesso, e proximidade das pessoas, favorecendo a uma resposta rápida às suas necessidades. Há uma equipe multiprofissional na gestão do cuidado, constituída principalmente de profissionais de enfermagem, psicólogo comunitário, assistentes sociais, educadores de bairros e trabalhadores sócio-sanitários.
Os serviços de assistência social compõem a política e estrutura organizacional da saúde, são um só sistema sócio-sanitário. O jornal local, Chiamamicitta.it, informa que: “A sinergia entre o âmbito social e de saúde é um ponto central do projeto, que tem a intenção de fornecer um suporte direcionado a quem se encontra em condições de particular fragilidade. Muitas vezes, de fato, as necessidades destas pessoas derivam de uma complexa combinação de fatores sociais, os quais os ‘Nós’ se propõem a dar uma resposta com uma abordagem multidisciplinar”.
A rede de Atenção Básica se complementa com as conexões que fazem através dos “Nós territoriais” com os Hospitais Comunitários e Casas da Comunidade, que são estruturas de cuidados intermediários, que potencializam um modelo de saúde fortemente pautado pelas questões sociais, de vocação territorial, e participação comunitária.
O segundo evento se realizou entre os dias 27 a 29 de setembro de 2024, o Workshop Strumenti per il lavoro intersettoriale e la partecipazione comunitaria (Ferramentas para o Trabalho Intersetorial e a Participação Comunitária). Foi organizado pela AUSL de Romagna (empresa pública de gestão dos serviços de saúde de Romagna), Centro de Saúde Internacional e Intercultural da Universidade de Bolonha – CSI, e o movimento social Campanha Italiana pela Atenção Primária em Saúde. Contou com mais de duas centenas de pessoas de várias cidades da região de Rimini, e convidados internacionais com uma delegação do Brasil, da UFF, UNIFESP e UFG; e da Alemanha, de Berlim, Leipzig e Hamburgo.
Foram três dias de excepcional troca de experiências de trabalho envolvendo diferentes e criativas estratégias de cuidado na Atenção Primária e outros serviços de referência territorial, fortalecendo os núcleos que estão conduzindo projetos nestes segmentos, e serviu para aumentar o intercâmbio entre uma rede regional, europeia, se conectando com a experiência do SUS no Brasil, que é uma das principais referências de serviço universal de saúde.
Há uma especial preocupação com a constituição de rede entre serviços, e a participação comunitária, que são fatores que elevam a eficácia no cuidado. Formas criativas para o engajamento comunitário foram apresentadas como a realização de festas temáticas, organização de logísticas que facilitam o encontro, como a disposição de sofás em frente a condomínios. Experiências de cuidado não farmacológico como esta é de grande sucesso como pode ser ver no programa “Banco da Amizade”, implantado em 2006 no Zimbábue e que se espalhou pelo mundo.
Pode ser visto aqui Um time de avós: a inovadora estratégia do Zimbábue para atender a pacientes com depressão – BBC News Brasil. Chamou atenção a experiência de Berlim, da clínica GEKO – stadtteil-gesundheitszentrum Neukölln (Centro Distrital de Saúde-Neukölln), um Programa que convida as pessoas para o Grupo de Discussão “O Stress Psicológico no Capitalismo”, uma chamada para discutir questões sociais e de vida, como problemas de aluguel alto, desemprego, condições adversas de trabalho, lembrando na chamada que as pessoas não estão sós, e convidam à discussão coletiva nos encontros do grupo.
Ao fluxo de informações das inúmeras experiências se fez fluir também os afetos entre as pessoas, coletivos, e tudo o que acumulam de conhecimento e práticas no cuidado. À vitalidade presente entre os e as participantes soma-se a vontade de continuidade do trabalho a favor da Atenção Primária e outras redes assistenciais, que têm como referência os territórios de vida, e sistemas universais de saúde. Há em todas as discussões, o sentido muito forte em pensar sobre as práticas de cotidiano, a microfísica das relações, tomando como principal referência o “chão de fábrica” da saúde, ou seja, os múltiplos lugares de encontro entre trabalhadores/as e usuários/as.
Com a alegria de quem termina um bom encontro, a energia renovada para a luta cotidiana pela saúde e o cuidado, firmou-se o compromisso mútuo de continuar cooperando, todos os núcleos, e pessoas, que participaram destas atividades neste início de outono em Rimini. Um novo encontro vai se realizar no primeiro semestre de 2025, em São Paulo, e na continuidade da cooperação internacional, a possibilidade de um programa de educação permanente está para ser planejado proximamente.
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Imagem: Desde 2006, no Zimbábue, um médico e sua equipe ensinaram a mais de 400 avós técnicas de terapia com evidências científicas para tratar a comunidade, no que ficou conhecido como “Banco da Amizade”. A experiência foi descrita em um dos eventos em Rimini (Crédito: Cynthia R Matonhodze)