Brasil: O preço emocional do trabalho

A precarização molda subjetividades. E o Brasil tem indicadores laborais de tristeza e raiva altíssimos. “Reforma” trabalhista, que minou a solidariedade de classe, é o principal fator. É preciso propor outra visão de trabalho – não como força econômica, mas forma digna de viver

por Erik Chiconelli Gomes, em Outras Palavras

No cenário laboral contemporâneo brasileiro, a experiência emocional dos trabalhadores emerge como um fenômeno complexo, fruto de um processo histórico e cultural de formação da classe trabalhadora. Um recente relatório da Gallup, intitulado “State Of The Global Workplace“, revela uma realidade alarmante que não pode ser compreendida isoladamente, mas como parte de uma narrativa mais ampla da construção da identidade do(a) trabalhador(a) brasileiro(a): 46% dos trabalhadores e trabalhadoras relataram sentir estresse, 25% tristeza e 18% raiva com o trabalho no dia anterior à pesquisa (Folha de S.Paulo, 2024).

Estes números, longe de serem meros dados estatísticos, representam a manifestação concreta da experiência vivida pelos trabalhadores brasileiros. Eles nos contam uma história de lutas, adaptações e resistências frente às mudanças nas relações de trabalho ao longo do tempo. O quarto lugar do Brasil em sentimentos de raiva e tristeza e o sétimo em estresse na América Latina não são apenas posições em um ranking, mas indicadores de um processo histórico de formação da classe trabalhadora brasileira.

Para compreender verdadeiramente esse fenômeno, é crucial examinar a trajetória histórica das relações de trabalho no Brasil. A experiência da classe trabalhadora brasileira foi moldada por séculos de escravidão, seguidos por um processo de industrialização tardio e uma modernização conservadora que frequentemente priorizou o crescimento econômico em detrimento do bem-estar dos trabalhadores. As recentes instabilidades econômicas, altas taxas de desemprego e mudanças nas leis trabalhistas são apenas os capítulos mais recentes dessa longa narrativa.

O DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) tem documentado como as recentes reformas trabalhistas representam uma nova fase nessa história, alterando significativamente a experiência do trabalhador brasileiro. Essas mudanças não são apenas legais ou econômicas, mas transformam profundamente a forma como os trabalhadores se percebem e se relacionam com seu trabalho e entre si (DIEESE, 2023).

A pejotização, por exemplo, não é apenas uma mudança na forma de contratação, mas uma reconfiguração da própria identidade do trabalhador. Ao se tornar “pessoa jurídica”, o trabalhador vive uma experiência de atomização e individualização que contrasta com a tradicional solidariedade de classe. O IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) descreve a resultante “trajetória ioiô” [fenômeno típico de trabalhadores precarizados que, sem acesso a direitos trabalhistas, acabam circulando pelo mercado de forma instável, fazendo serviços temporários, com alternância entre emprego e desemprego] no mercado de trabalho não apenas como um fenômeno econômico, mas como uma nova forma de viver e experimentar o trabalho, carregada de incertezas e ansiedades (IPEA, 2022).

O Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT) da Unicamp tem argumentado que a flexibilização das relações de trabalho representa uma ruptura com formas anteriores de organização e resistência da classe trabalhadora. A constante pressão por performance e a alta competitividade não são apenas demandas do mercado, mas elementos que moldam ativamente a consciência e a experiência cotidiana dos trabalhadores (CESIT, 2023).

É fundamental entender que as emoções de estresse, tristeza e raiva reportadas pelos trabalhadores não são respostas individuais isoladas, mas parte de uma experiência coletiva compartilhada. Elas refletem uma consciência de classe em formação, que responde às mudanças nas condições materiais e culturais do trabalho no Brasil contemporâneo. Como observa o professor Nilton Ota da USP, “O trabalho molda aspectos importantes da subjetividade, que não ficam restritos ao ambiente profissional, mas se estendem à vida privada e familiar” (Folha de S.Paulo, 2024). Esta observação ressoa com a ideia de que a formação da classe trabalhadora é um processo que permeia todos os aspectos da vida social.

A pandemia de covid-19, longe de ser um evento isolado, se insere nessa narrativa histórica como um momento de ruptura e reconfiguração das relações de trabalho. Como aponta Lucia Barros, “Mesmo após dois anos, o trauma coletivo permanece” (Folha de S.Paulo, 2024). Este trauma coletivo não é apenas uma consequência da pandemia, mas se soma a uma longa história de experiências compartilhadas que formam a consciência da classe trabalhadora brasileira.

Do ponto de vista da saúde pública, os altos níveis de estresse, tristeza e raiva entre os trabalhadores brasileiros não podem ser reduzidos a problemas individuais de saúde mental. Eles são manifestações físicas e emocionais de uma experiência de classe, moldada por condições históricas específicas. O psiquiatra Arthur Danila, ao explicar como o estresse prolongado pode levar a um estado de alerta constante (Folha de S.Paulo, 2024), está descrevendo não apenas um processo fisiológico, mas uma condição existencial da classe trabalhadora contemporânea.

A perspectiva de Lucia Barros de ver essas emoções como “desafiadoras” ou “desconfortáveis” ao invés de simplesmente “negativas” (Folha de S.Paulo, 2024) abre espaço para entender como os trabalhadores ativamente interpretam e dão significado à sua experiência. Esta abordagem ressoa com a ideia de que a classe trabalhadora não é um objeto passivo das forças econômicas, mas um agente ativo na construção de sua própria história.

As implicações desses dados vão além do bem-estar individual dos trabalhadores. Eles refletem um momento específico na formação da classe trabalhadora brasileira, com potenciais consequências para a organização do trabalho, a produtividade e a competitividade das empresas. Os estudos do IPEA sobre a correlação entre o bem-estar dos trabalhadores e o desempenho econômico das organizações (IPEA, 2021) podem ser lidos como uma manifestação das tensões inerentes ao sistema capitalista, onde as necessidades dos trabalhadores frequentemente entram em conflito com as demandas do capital.

Para enfrentar esse desafio histórico, é necessária uma abordagem que reconheça a agência dos trabalhadores na construção de sua própria realidade. No nível governamental, a revisão e fortalecimento das leis trabalhistas não deve ser vista apenas como uma questão técnica, mas como um campo de disputa onde diferentes visões sobre o trabalho e a sociedade se confrontam. O DIEESE, ao defender políticas que promovam o trabalho decente (DIEESE, 2024), está essencialmente propondo uma reconfiguração das relações de poder no mundo do trabalho.

No âmbito corporativo, programas de bem-estar e políticas de equilíbrio entre vida profissional e pessoal não são apenas benefícios, mas respostas às demandas históricas da classe trabalhadora por melhores condições de vida e trabalho. Eles representam uma negociação contínua entre capital e trabalho, moldada pela experiência e resistência dos trabalhadores ao longo do tempo.

A nível individual, práticas como mindfulness e meditação, sugeridas por Lucia Barros, podem ser entendidas não apenas como técnicas de autoajuda, mas como formas de resistência e adaptação desenvolvidas pelos trabalhadores para lidar com as pressões do trabalho contemporâneo. O cultivo de relacionamentos saudáveis e a busca por um propósito no trabalho são expressões de uma consciência de classe em formação, que busca dar sentido à experiência do trabalho além da mera sobrevivência econômica.

É crucial ressaltar que a experiência emocional dos trabalhadores brasileiros não pode ser compreendida ou abordada isoladamente. Ela é parte de um processo histórico mais amplo de formação da classe trabalhadora, que envolve lutas, negociações e adaptações constantes. O CESIT, ao argumentar por um novo pacto social (CESIT, 2024), está essencialmente propondo uma reconfiguração das relações de classe no Brasil.

Em conclusão, os dados apresentados pela pesquisa da Gallup devem ser entendidos não apenas como indicadores de problemas individuais, mas como manifestações de um processo histórico de formação da classe trabalhadora brasileira. Os altos níveis de estresse, tristeza e raiva são expressões de uma experiência coletiva, moldada por condições materiais e culturais específicas.

À medida que o Brasil enfrenta os desafios do século XXI, incluindo as rápidas mudanças tecnológicas e as pressões econômicas globais, a experiência emocional dos trabalhadores continuará a se transformar. O futuro do trabalho no Brasil será determinado não apenas por forças econômicas impessoais, mas pela forma como os trabalhadores, coletivamente, interpretarão, resistirão e darão forma a essas mudanças.

A criação de ambientes de trabalho que não apenas gerem valor econômico, mas também nutram a saúde mental e emocional dos trabalhadores, não é apenas uma questão de política corporativa ou governamental. É um processo histórico de negociação e luta, no qual a classe trabalhadora brasileira desempenha um papel ativo. Somente através desse processo contínuo de formação e reformação da experiência de classe poderemos construir uma economia verdadeiramente resiliente e uma sociedade mais justa e satisfeita.


Referências

CESIT – Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho. Flexibilização do trabalho e seus impactos na experiência dos trabalhadores. Campinas: Unicamp, 2023.

CESIT – Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho. Por um novo pacto social: a reconfiguração das relações de classe no Brasil. Campinas: Unicamp, 2024.

DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Impactos das reformas trabalhistas na formação da classe trabalhadora brasileira. São Paulo: DIEESE, 2023.

DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Políticas para promoção do trabalho decente: uma perspectiva histórica. São Paulo: DIEESE, 2024.

FOLHA DE S.PAULO. 46% dos trabalhadores brasileiros estão estressados, 25% tristes e 18% com raiva, indica estudo. São Paulo, 30 set. 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/09/46-dos-trabalhadores-brasileiros-estao-estressados-25-tristes-e-18-com-raiva-indica-estudo.shtml. Acesso em: 30 set. 2024.

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. A pejotização e a transformação da experiência do trabalhador brasileiro. Brasília: IPEA, 2022.

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Bem-estar dos trabalhadores e desempenho econômico: uma análise histórica. Brasília: IPEA, 2021.

Imagem: Aarón Blanco Tejedor/Unsplash

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