Ministério da Justiça não quis auditar o uso do Córtex pelo governo Bolsonaro

Revelamos que sistema de vigilância é uma poderosa plataforma capaz de monitorar pessoas sem autorização judicial

Por Caio de Freitas, Rubens Valente | Edição: Thiago Domenici, Agência Pública

Documentos obtidos pela Agência Pública mostram que a primeira tentativa de auditar o uso do Córtex só ocorreu durante o governo Lula, em agosto de 2023, após mais de cinco anos de utilização sem controle efetivo do programa.

A Pública revelou que o Córtex é uma poderosa plataforma espiã capaz de monitorar pessoas e veículos em tempo real, sem autorização judicial nem motivação para a vigilância, entre outros recursos que envolvem dados sensíveis da população.

Por que isso importa?

  • Sem precisar registrar a motivação da consulta, pessoas podem ser monitoradas nas ruas sem prévia análise do Judiciário e fora de inquéritos policiais.
  • Com 55 mil usuários civis e militares, sistema de inteligência explodiu desde o governo Bolsonaro e será expandido no governo Lula.
  • O MJSP detectou casos de venda de senhas e presença de contas automatizadas no sistema Córtex, que extraíam grandes volumes de dados sigilosos de milhões de brasileiros.

O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) abriu um grupo de trabalho formado por cinco servidores “para criação de fluxo de auditoria do sistema Córtex”. A própria listagem dos objetivos do grupo já revela inconsistências, dúvidas e brechas no uso do sistema.

Entre outros pontos, o grupo buscava “realizar auditoria nos usuários, independentemente da intermediação do auditor institucional”; “criar um termo de compromisso para que os usuários que requerem bloqueio sejam obrigados a assinar”; “saber onde é gerada e quem mantém atualizada a lista de Pessoas Expostas Politicamente”.

Tornado oficial no dia 29 de agosto de 2023 pela coordenação de Inteligência da Secretaria Nacional de Segurança Pública do ministério, o grupo de trabalho tinha 60 dias “para estudar e documentar” a tentativa de auditoria do Córtex.

Os servidores tinham de “levantar e avaliar os riscos relativos aos controles de acesso” ao sistema e “apresentar propostas de melhorias”, produzindo relatórios com “medidas urgentes para eliminação ou mitigação de riscos críticos identificados”.

Logo no começo, em setembro de 2023, houve um recuo em um dos objetivos iniciais, que seria o de “realizar auditoria do passado” – referindo-se ao uso do Córtex antes do atual governo.

Em vez de passar a limpo o uso da plataforma durante as gestões de Dilma, Temer e Bolsonaro, o foco mudou “para [a] criação de um fluxograma para definir a auditoria de hoje e para [o] futuro”.

Em 2023, o ministério mencionou, em ofício, “ações de aprimoramento de governança do sistema” Córtex. Foi sugerida a “eliminação imediata” de todos os usuários do Córtex com os perfis “Administração” e “Inteligência”. Eles seriam, em seguida, recadastrados “somente o representante indicado pelo chefe da respectiva agência central”.

A ideia era fornecer o recurso apenas para os órgãos do sistema de inteligência brasileiro (Sisbin) e do sistema de inteligência de segurança pública (SISP). Indagado pela Pública, o MJSP se recusou a enviar uma cópia dos resultados do grupo de trabalho.

O ministério afirmou que, diante das conclusões do grupo, implementou mecanismos de auditoria automática, “com realização de auditorias diárias, de forma automatizada, visando o bloqueio de acessos indevidos, tendo diversos critérios de suspeição, como por exemplo os casos de usuários que realizam consultas elevadas em curto período de tempo, e, após o bloqueio, o órgão de origem do usuário é notificado, solicitando-se assim apuração pelo respectivo órgão de corregedoria quanto a consulta do agente”.

Magno Borges/Agência Pública

O nebuloso acesso militar ao Córtex

O Córtex pode ser usado também pelos comandos militares, que têm centros de inteligência próprios cujas atividades restam praticamente sem fiscalização independente pelo poder civil.

Durante a apuração da Pública, surgiram inconsistências entre materiais relativos ao Córtex e a posição oficial das Forças Armadas sobre o tema.

Em documentos obtidos pela reportagem, é citada a existência de usuários ligados aos centros de inteligência da Aeronáutica, do Exército e da Marinha. Em resposta a um pedido de Lei de Acesso à Informação (LAI) enviado pela Pública, a Aeronáutica confirmou o acesso, afirmando ter seis oficiais com autorização de uso do sistema de vigilância. A Marinha, porém, negou ter acesso ao sistema, alegando que “não consta, nos registros de sistemas homologados para uso na Rede de Comunicações Integrada da Marinha (RECIM), a autorização de hospedagem e uso da plataforma Córtex”.

Procurada pela reportagem, a Marinha não esclareceu a controvérsia sobre seu acesso ao Córtex até o fechamento deste texto.

Os documentos obtidos pela reportagem indicam que o Centro de Inteligência do Exército (CIE) tem acesso privilegiado ao sistema, sendo capaz de criar modificações no funcionamento do Córtex por acessar contas do tipo API.

Com isso, o Exército poderia estabelecer seus próprios parâmetros para análises personalizadas, munido de dados sensíveis de milhões de pessoas, da localização em tempo real delas e de veículos em circulação por todo o país, todos disponibilizados pelo Córtex.

Por meio da LAI, o Comando do Exército se negou a divulgar informações básicas sobre o uso que faz do Córtex, como o número de oficiais, comandos e departamentos com acesso; quantidade de relatórios produzidos; e auditorias sobre o uso da plataforma. Confirmou apenas que utiliza o sistema de vigilância desde agosto de 2022, sem dar mais detalhes.

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