José Graziano: ‘Combate à fome tem surpreendido até os mais otimistas, inclusive eu’

No Dia Mundial da Alimentação, ex-ministro defende atuação do governo, mas exige regulação rígida para ultraprocessados

por Lucas Weber, no Brasil de Fato

Há 10 anos, o Brasil atingia uma das maiores conquistas da história ao receber o reconhecimento das Nações Unidas (ONU) de sair do Mapa da Fome. Durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL), o país voltou a amargar dados inaceitáveis de insegurança alimentar, perdendo o título. No entanto, para o ex-ministro José Graziano, o primeiro ano do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi o bastante para afirmar que o Brasil está, mais uma vez, no rumo certo.

“O desempenho do primeiro ano do governo Lula 3, em 2023, foi extraordinário, um número que surpreendeu até mesmo os mais otimistas, entre eles eu. Nós tínhamos estimado no Instituto Fome Zero uma redução de cerca de 20 milhões de pessoas, e a redução chegou a 24 milhões de pessoas na situação de insegurança alimentar grave, 40 milhões no total”, observa Graziano em entrevista ao programa Bem Viver desta quarta-feira (16), Dia Mundial da Alimentação.

José Graziano esteve no primeiro mandato de Lula, como ministro extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome, sendo o responsável pela implementação do Programa Fome Zero. Foram apenas dois anos da pasta em vigor. Após isso, em 2011, Graziano foi eleito diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), permanecendo no cargo até 2019.

“Se nós continuarmos mantendo essas políticas que foram revividas, do primeiro governo Lula, certamente o Brasil caminha para sair do Mapa da Fome até 2026. Difícil que seja no próximo ano, 2025, porque estamos carregando não só uma desarticulação das políticas sociais, mas também uma pandemia”.

O ex-ministro credita o sucesso a retomada de política públicas iniciadas no primeiro mandato de Lula, mas descontinuadas recentemente, entre elas, o aumento real do salário mínimo.

No entanto, Graziano destaca que “o combate a fome é muito diferente de 20 anos atrás”.

“Quando nós começamos em 2003, naquela época, a fome era rural. Era das pequenas cidades do interior, cidades de até 50 mil habitantes.Tanto que o Programa Fome Zero começa nas cidades de até 50 mil habitantes e vai gradativamente expandindo para as cidades maiores até chegar nas regiões metropolitanas. Hoje a fome está concentrada, segundo dados do IBGE, nas grandes cidades, nas regiões metropolitanas, porque houve uma certa urbanização da miséria no Brasil nos últimos 20 anos”.

Graziano também destaca o aumento do consumo dos ultraprocessados como um dos principais desafios que o governo precisa encarar.

Na entrevista, o ex-ministro comenta sobre a necessidade de retomar a política de estoque de grãos e a importância da reforma agrária no combate à fome.

Confira a entrevista na íntegra:

O senhor acredita que o Brasil voltou ao caminho para sair do Mapa da fome?

Sem dúvida. O desempenho do primeiro ano do governo Lula 3, em 2023, foi extraordinário, um número que surpreendeu até mesmo os mais otimistas, entre eles eu.

Nós tínhamos estimado no Instituto Fome Zero uma redução de em torno de 20 milhões de pessoas, e a redução chegou a 24 milhões de pessoas na situação de insegurança alimentar grave, 40 milhões no total.

Ou seja, para um país que estava convivendo no segundo ano da pandemia com cerca de 70 milhões de pessoas passando fome, essa é uma redução mais que extraordinária, excepcional.

Se nós continuarmos mantendo essas políticas que foram revividas, do primeiro governo Lula, certamente o Brasil caminha para sair do Mapa da Fome até 2026.

Difícil que seja no próximo ano, 2025, porque estamos carregando não só uma desarticulação das políticas sociais, mas também uma pandemia.

O governo já anunciou no ano que vem um aumento real, novamente, no salário mínimo. E essa é a política fundamental. Mantida essa política de reajuste dos salários acima da inflação, eu não tenho dúvida que o Brasil o sairá do Mapa da Fome.

O senhor acredita que o presidente Lula deveria ter retomado um ministério específico de combate à fome, como foi na primeira gestão?

Não, acho que não. O Mesa, Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate a Fome (Mesa), já levava essa marca, era um Ministério Extraordinário.

Ele tinha um timing, ele tinha um tempo para nascer e ser extinto. O objetivo do Mesa foi implantar essas políticas, implantar esse arcabouço institucional. que era o programa Fome Zero.

O combate a fome é multifacetado, não é uma coisa específica de um ministério apenas, ele é um conjunto de ações, então tem a merenda escolar que está na Educação, tem toda a assistência social, tem toda a política previdenciária que está no Ministério da Previdência.

Em paralelo a esses avanços no combate à fome, tem crescido no Brasil o consumo de ultraprocessados. Isto preocupa o senhor?

Olha, me preocupa muito, porque hoje o combate a fome é muito diferente de 20 anos atrás.

Quando nós começamos em 2003, naquela época, a fome era rural. Era das pequenas cidades do interior, cidades de até 50 mil habitantes.

Tanto que o Programa Fome Zero começa nas cidades de até 50 mil habitantes e vai gradativamente expandindo para as cidades maiores até chegar nas regiões metropolitanas.

Hoje a fome está concentrada, segundo dados do IBGE, nas grandes cidades, nas regiões metropolitanas, porque houve uma certa urbanização da miséria no Brasil nos últimos 20 anos.

E com a pandemia isso se agravou mais ainda, porque as pessoas vieram em busca de assistência de saúde, de assistência social no mundo geral.

Então, é difícil pensar que nós possamos reproduzir as mesmas, os mesmos remédios.

Uma atualização que falta é juntar o combate à fome ao combate da obesidade.

Hoje nós temos não apenas as pessoas que não comem, que passam fome literalmente, mas temos as pessoas que comem mal, muito mal. A insegurança alimentar grave é seguida da insegurança alimentar moderada e leve.

Principalmente essa última, insegurança alimentar leve, que é aquela pessoa que não consegue comer carne, [então] come salsicha, por exemplo. Troca por um produto ultraprocessado.

Você sai de casa de manhã sem comer, e almoça uma coxinha no bar da esquina. Essa substituição dos alimentos naturais por alimentos processados tem levado a uma epidemia de obesidade principalmente nas crianças e adolescentes.

O Brasil hoje é o campeão da América do Sul em obesidade infantil. E isso só vai ser corrigido se nós agregarmos componentes não apenas de dar de comer, mas também de dar uma alimentação que seja saudável.

Então, a falta de uma política específica contra os alimentos ultraprocessados me preocupa muito.

Frutas, verduras e legumes não só deveriam estar isentas de impostos, como, felizmente parece que vão estar, na reforma tributária, mas eu advoco um subsídio.

Nos últimos anos, o Brasil tem perdido os estoques que tinha de alimentos como feijão e arroz. Isso é um problema?

A ideia de estoques hoje não é mais a ideia que nós tínhamos há 20 anos atrás, de estoques reguladores de preços. Então os grandes estoques que nós tínhamos, entre os quais arroz, feijão, produtos básicos, não se justificam mais hoje, dada a facilidade que nós temos de ter um mercado internacional desses produtos.

Eles quase sempre estão disponíveis a preços competitivos, porque tem mercados internacionais consolidados, são commodities estabelecidas.

Mas o que nós precisamos é ter um estoque mínimo para atender situações de emergência e para atender aqueles produtos que não são commodities. Caso do nosso do feijão, nós temos tido problemas de importar feijão.

O feijão que o Brasil consome é produzido apenas no México e no Chile, em quantidades pequenas, não são suficientes para atender uma quebra de safra brasileira.

Então, às vezes, a gente vê a disparada no preço do feijão, como vimos a pouco disparada no preço do arroz, não é? O arroz é mais fácil de importar, uma commodity estabelecida, tem grandes excedentes de arroz produzidos na Ásia, então não há grandes problemas.

Mas produtos como o feijão, em geral, ou o grão de bico, lentilha… o Brasil precisava ter estoques mínimos para fazer frente às quebras de safra, principalmente agora que nós estamos implantando o problema das mudanças climáticas.

Em relação a isso, o senhor acredita que para o Brasil consolidar a saída do combate à fome é necessário avançar na reforma agrária?

A reforma agrária é necessária no Brasil, sem dúvida alguma, mas não para produzir alimentos.

O Brasil hoje produz alimentos demais até, está sobrando alimento. Não é por isso que nós vamos fazer reforma agrária, vamos fazer reforma agrária para obter uma distribuição mais igual no país.

Nós estamos apenas atrás da África do Sul em termos de desigualdade, e como a África do Sul nós também temos um problema muito forte da desigualdade na distribuição da terra.

É o país mais desigual do mundo hoje, o Brasil, em termos da distribuição do acesso à terra.

Eu digo sempre que a reforma agrária é necessária para fazer cidadão, para fazer gente, não é para apenas produzir matar a fome. Ajuda? Ajuda. Mas há outros caminhos.

Hoje, por exemplo, o agronegócio se vangloria, com razão, de dar conta do abastecimento alimentar e de ter barateado a produção de alimentos no Brasil. E tem razão nesse particular.

Nós não podemos reduzir a importância da agricultura familiar à produção de alimentos.

Vira e mexe eu vejo ser repetida uma frase que nós criamos em 2003, quando nós enfrentávamos, entre outras dificuldades, um grande apagão de números.

Então nós chegamos através de uma série de cálculos e projeções a um número que falava que 70 % do arroz, do feijão, do milho, da mandioca e outros produtos básicos vinham da agricultura familiar.

Então isso virou um chavão repetido à exaustão. Hoje não é mais assim. Hoje, quando muito, eu diria que 20% dos alimentos são produzidos em estruturas similares à agricultura familiar.

A reforma agrária é necessária no Brasil, sem dúvida alguma, mas não para combater a fome. Ela pode até ajudar a combater a fome e será bem-vinda se o fizer, mas ela tem uma razão distinta hoje.

Graziano esteve por sete anos como diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) – Sia Kambou/AFP

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