O Estado, o Agro e a desconfiguração dos direitos indígenas: notas sobre a atual conjuntura da política indigenista no Brasil

Em artigo, o secretário executivo do Cimi, Luis Ventura, analisa a nova fase da ofensiva contra os direitos constitucionais indígenas e alerta para os riscos de uma cilada política e jurídica

Por Luis Ventura, secretário executivo do Cimi

O Brasil está vivendo uma nova fase, muito bem orquestrada e articulada, de desconfiguração dos direitos dos povos indígenas da forma como foram reconhecidos na Constituição Federal de 1988. Trata-se de um artifício, político e jurídico, com o objetivo de modular direitos humanos fundamentais e indisponíveis, que precisa ser compreendido e desvendado.

A Constituição Federal de 1988 reconheceu os direitos originários dos povos indígenas a seus territórios, bem como suas formas próprias de organização social, costumes, línguas e tradições, superando a lógica de tutela do Estado que vigorava até aquele momento. Este reconhecimento foi fruto de uma árdua e permanente mobilização dos povos indígenas e de debates políticos e jurídicos de importante nível.

Durante estes 36 anos, as elites políticas e econômicas do país nunca descansaram e tentaram, das mais diversas formas e utilizando-se dos seus privilégios e das instituições, reduzir, anular, modular e restringir os direitos dos povos indígenas. O último desses grandes embates se deu durante o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) do Tema 1031, do marco temporal, com caráter de repercussão geral.

Após intensa mobilização dos povos indígenas e da sociedade e de debates qualificados, a tese do marco temporal foi declarada inconstitucional e a legitimidade do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas foi confirmada. Apesar disso, hoje estamos em um novo momento de desconstitucionalização dos direitos; desta vez mais complexo, com a participação de mais atores estatais e particulares e marcado pela precarização e a desqualificação dos debates.

A promulgação da lei 14.701/2023 por parte do Congresso Nacional, que contradiz frontalmente o que foi decidido pelo STF em 2023, era algo esperado de um Congresso anti-indígena e pouco democrático. Também era esperado que o STF agisse com veemência e rapidez declarando a inconstitucionalidade da lei, mas não foi o que ocorreu.

A lei 14.701 acabou sendo, de fato, uma oportunidade para aqueles setores do governo e do Judiciário que, acanhados pelo Congresso e/ou aliados ao poder econômico do agronegócio e do lobby da mineração, estavam incomodados ou descrentes com a decisão do STF sobre o marco temporal. Compra de terras, criação de reservas, desapropriação, permutas ou indenização por terra nua: todas estas medidas, não previstas na Constituição nem na decisão do STF quando se fala de terras indígenas, começaram a ser vocabulário comum em falas de autoridades do governo e do Judiciário.

Em acordo de bastidores, acabou se desenhando um outro caminho político e um outro itinerário jurídico para alterar o procedimento da demarcação, ampliar as possibilidades de indenização a ocupantes ilegais e abrir os territórios indígenas a atividades de terceiros. A primeira consequência direta desse acordo de bastidores é a inaceitável manutenção da vigência da lei 14.701/2023, que cria entraves para a conclusão das demarcações, contribuindo assim para o aumento da violência contra os povos indígenas nos territórios.

Diante da lei 14.701 e de sua flagrante inconstitucionalidade, havia receio, inclusive entre ministros da Suprema Corte, de que fosse construída uma espécie de “cipoal” jurídico, um emaranhado que impedisse o STF de tomar as decisões necessárias. Pois bem, esse cipoal foi efetivamente armado, tendo como cerne neste momento a chamada Câmara ou Mesa de Conciliação, convocada pelo ministro Gilmar Mendes, relator das ações de controle de constitucionalidade que tratam da lei 14.701/2023.

Desde o início, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) tem manifestado, nos autos e em público, que a Câmara de Conciliação é um instrumento inadequado para decidir sobre direitos fundamentais, como são os direitos dos povos indígenas. Se a conciliação pode ser válida para resolver outras matérias, não é competente nem eficiente para tratar de direitos humanos fundamentais, porque qualquer modulação destes direitos já é um retrocesso e qualquer mesa que reúna vítimas e algozes é uma forma de negociação forçada. Não cabe conciliação em matéria de direitos humanos.

Quem acompanhou minimamente as seis reuniões da Câmara de Conciliação pôde constatar que ela não tem objeto nem metodologia clara. Sobre o objeto, já ouvimos coisas totalmente opostas entre si. Parece imprevisível, e improvisado, o que será discutido de uma reunião para outra, e inclusive dentro de uma mesma reunião as falas circulam de um tema a outro sem nenhuma ordem. Ora, este “caos aparente” é absolutamente intencional e as consequências são gravíssimas: a manutenção da lei 14.701, flagrantemente inconstitucional, o que é injustificável; e a constituição de um espaço de absoluta insegurança jurídica para os povos indígenas onde antes havia marco normativo certo.

A Câmara precarizou, como nunca, a qualidade dos debates sobre matéria indígena, com participação de juízes auxiliares, parlamentares e representantes do agronegócio que não têm o menor domínio sobre a matéria. A luta pelos direitos dos povos indígenas custou e continua custando a vida de muitas lideranças. A violência nos territórios permanece todos os dias, diante de um Estado ineficiente na prevenção e na perseguição aos criminosos, enquanto se pretende, enganosamente, dar aparência de avanços para uma solução dialogada. Por isso entendemos que a Câmara é uma verdadeira cilada política e jurídica que desvia o Estado brasileiro do cumprimento de suas atribuições constitucionais e de suas obrigações internacionais.

Nesta nova fase de desconfiguração dos direitos dos povos indígenas, a Câmara de Conciliação se propõe a discutir aspectos que já estão contidos nos embargos de declaração do julgamento do Recurso Extraordinário sobre o marco temporal, Tema 1031, e que ainda precisam ser julgados pelo Supremo. Desta forma, a Câmara atravessa o julgamento do próprio STF, caminhando assim para uma espécie de tocaia jurídica que pode rever, inclusive, a decisão tomada pelo Plenário da Corte por nove votos a dois em setembro de 2023.

O Tema 1031 é a instância adequada para a interpretação dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, não só pelo seu caráter de repercussão geral, mas também porque o caso mobilizou o empenho intenso da sociedade civil brasileira, dos povos originários e da própria Suprema Corte. Este assunto não pode ser relegado a uma mesa de negociações. A decisão do STF em setembro de 2023 é ferida pela pretensa conciliação e conduzida a uma discussão já não mais jurídica, sobre direitos humanos, mas política, para salvaguardar os interesses das elites econômicas.

Trata-se da erosão do Estado de Direito e da exposição do Brasil a uma comunidade internacional que olha, perplexa e atônita, para a decomposição dos direitos dos povos originários. O governo Lula III, que chegou ao Planalto com um compromisso com esses povos e criou o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), corre o risco de entrar para a história como o governo que permitiu e concordou com a desconfiguração dos direitos dos povos indígenas.

O movimento indígena soube compreender esta cilada e decidiu retirar-se da Câmara de Conciliação. Provavelmente, esta tenha sido uma das mais importantes decisões políticas do movimento indígena nos últimos anos. Para evitar a precarização e a insegurança do debate, os povos indígenas alertaram ao Estado brasileiro que ele deve cumprir com suas atribuições legais e com suas competências constitucionais, bem como com suas obrigações internacionais: declarar a inconstitucionalidade da lei 14.701/2023 e reafirmar a decisão do STF no Tema 1031.

A decisão do movimento indígena deve ser entendida como uma manifestação evidente de não-consentimento ao processo instaurado. Se a Câmara de Conciliação já não era legítima para discutir direitos indisponíveis, mais ilegítima se torna sem a presença dos povos indígenas. A imagem do Brasil ficaria comprometida internacionalmente, e o Estado sabe disso.

Para legitimar sua continuidade, a Câmara de Conciliação precisava de dois elementos. O primeiro, um caso emblemático que fosse apresentado como exemplo do pretendido sucesso, utilizando para isso o chamado acordo sobre a Terra Indígena (TI) Nhanderu Marangatu, no estado de Mato Grosso do Sul. Um acordo que ultrapassou parâmetros estabelecidos pela Constituição Federal e pela decisão do STF no Tema 1031 de repercussão geral e que, por isso, não pode ser utilizado como referência para a demarcação de terras indígenas. De forma imoral, acabou indenizando a grilagem e a violência. O Estado omisso – a decisão aguardava no STF há 19 anos – resolveu sua própria negligência beneficiando aos invasores e apresentando o processo como exemplar. É inaceitável, imoral e inadmissível.

O segundo elemento que a Câmara precisava para continuar em pé era a volta dos povos indígenas. E aí houve desde tentativas de convencimento ao movimento indígena para retornar à Câmara até, finalmente, a indicação de indígenas pelo MPI conforme decisão do ministro relator. Mesmo que os indígenas indicados só representem o governo e não o movimento, o MPI cometeu um erro político sensível, como já foi explicitado pelas maiores organizações indígenas do país. Houve um equívoco ao desconsiderar a decisão do movimento indígena com relação à Câmara. Mas houve também outro erro, de caráter estratégico-político, ao sustentar a legitimidade do acordo da TI Nhanderu Marangatu e da Câmara de Conciliação. Dessa forma, o governo se distancia da posição dos povos indígenas, alimenta a cilada política e jurídica e compõe o atual momento de desconfiguração dos direitos constitucionais dos povos indígenas.

O agronegócio é quem mais está lucrando em todo este cenário. O mesmo setor, que levou quase R$ 500 bilhões do Plano Safra do atual governo, é beneficiado também pela impunidade da violência contra os povos indígenas nos territórios , pela vigência da Lei 14.701/2023, pela desconfiguração da decisão do STF sobre o marco temporal. Esse mesmo agronegócio se vê premiado à medida em que a indenização por terra nua avança sem nenhuma discussão profunda. E, em todo caso, sempre tem ao seu lado o Congresso para ameaçar com propostas de emenda à Constituição, impondo seu poder econômico sobre as instituições de um Estado que se diz democrático e de direito.

É urgente mobilizar toda a sociedade diante de um processo desconstituinte evidente. O colapso ambiental que o Brasil e o mundo estão vivendo exige que o país avance na demarcação de terras indígenas como uma política segura e eficiente para a proteção ambiental e o enfrentamento às mudanças climáticas.  O caminho é o retorno do Estado à sua natureza garantista de direitos fundamentais. O STF precisa urgentemente concluir o julgamento dos embargos de declaração do Tema 1031, bem como declarar imediatamente a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023, e isso não pode depender da continuidade ou não da Câmara de Conciliação.

O governo federal precisa ouvir os povos indígenas e retomar com maior firmeza a demarcação dos territórios, enfrentando a violência e protegendo a vida dos povos indígenas. A unidade, a determinação e a mobilização política dos povos indígenas constituem mais uma vez o caminho fundamental para, em aliança com outros setores populares e com o conjunto da sociedade, devolver o sentido da política do bem comum, superar esta fase de desconfiguração de direitos e caminhar para uma sociedade do Bem Viver.

Imagem: Manifestação indígena no Acampamento Terra Livre (ATL) 2024, em Brasília. Foto: Hellen Loures/Cimi

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