Desafios, Buscas e Dúvidas Políticas: Para onde nos movemos? Por Cândido Grzybowski

Em Sentidos e Rumos

Não hesito em afirmar que, como esquerdas no Brasil, não estamos sabendo  nos reinventar para disputar hegemonia e incidir na política atual, onde tudo parece estar nos levando à uma perda de rumo. Para a minha geração, aquela insurreição cidadã de muitas frentes, dos anos 1980, de conquista da institucionalidade democrática, depois de 24 anos de ditadura militar violenta, gera um saudosismo e, talvez, uma distorção no ver o que está acontecendo. A continuidade da extrema desigualdade social interna, com racismo, machismo, intolerâncias, violências e exclusões de toda ordem, sem controle, ameaças políticas autoritárias, reprimarização da economia e dependência de commodities nos fazem duvidar sobre a capacidade da democracia dar conta de tantos desafios.

O capitalismo neoliberal globalizado, com seu “mantra do desenvolvimento” em busca de acumulação a qualquer custo, alimentam tudo isso e também o extrativismo destrutivo, a colonização em novo estilo e as disputas geopolíticas pelo controle de territórios e mercados. Estamos vivendo um processo de aprisionando e crise das democracias no mundo todo e alimentando a onda de extremas direitas, com seus monstros. E isto se conjuga com colonização e destruição de grandes territórios e contaminação da atmosfera pelas emissões, gerando a mudança climática, com efeitos devastadores já sentidos em toda parte, nesse momento histórico que nos cabe viver. Aliás, ameaças negadas ou proteladas e, sobretudo, ignoradas pelos que detêm o poder real, os tais 1% de super ricos, sem legitimidade, é claro, mas que subordinam tudo e a todos aos seus interesses mais imediatos de acumulação sem limites.

Sonhamos com democracia intensa e transformações, mas estamos encurralados 30 e tantos anos depois. No nosso Brasil, como quase em todo mundo, dominam os impasses ou rupturas violentas. Quase não existem virtudes políticas a celebrar. A sensação é que já estamos mergulhados em uma nova guerra mundial, provocadas pelas disputas geopolíticas e guerras larvais abertas, em curso, até no interior de países, com genocídios, apagamentos e intolerâncias de toda ordem.  E convivemos com incertezas sobre o amanhã. A sensação imediata é que estamos caminhando para uma catástrofe. O que fazer? É a pergunta que não sai do radar! Mas as propostas são raras e, num certo sentido, medíocres diante do desafio. A sina é buscar, buscar… e não desistir, pois viver é assim mesmo.[i]

Com as minhas dúvidas, estou me referindo particularmente à necessidade de sermos portadores de ideias e valores para uma democracia intensa e transformadora no Brasil e no mundo todo, no aqui e agora, em busca de direitos iguais para todas e todos, na maravilhosa diversidade que carregamos como humanidade, regendo-nos pelo cuidado, convivência e compartilhamento da vida e preservando a integridade do planeta Terra, o grande bem comum. Reconheço que isto, ao mesmo tempo, nos divide social e culturalmente, mais do que agrega, levando a exclusões, violências e discriminações, como a história da humanidade até aqui testemunha.

Estamos no mesmo mundo, mas sempre territorializados, porque neles construímos muitos mundos humanos diversos a partir do lugar que ocupamos no planeta e da história que nosso povo vem fazendo nele, com as nossas capacidades humanas de criar culturas e, também domínios, exclusões e mortes. Os desafios são comuns e, ao mesmo tempo, diferenciados. Como dar conta disto? O problema prioritário e intransferível é o que fazemos onde levamos nossas vidas, mas sabendo que tem impactos para além dos territórios onde estamos. Tudo está interconectado. Mas, nos dividimos em povos e nações e, dentro delas, em classes sociais opostas, em luta sem fim. Bota desafio nisto! De qualquer ponto de vista, a democracia liberal – melhor que qualquer ditadura – está se revelando um modo político de gestão coletiva impotente e em crise sem saída à vista.

Aqui no Brasil, neste momento, ainda estamos em um processo eleitoral democrático para definir os governos municipais, com um segundo turno dentro de poucos dias, especialmente em capitais dos Estados e nos maiores municípios em termos de população. Não dá para ter dúvidas que os resultados apontam correlações de forças políticas nada virtuosas. E muitas análises foram publicadas a respeito.[ii] Mas o que tais correlações políticas significam vai muito além das eleições, uma expressão democrática periódica. Precisamos ser mais profundos nas análises sobre estrutura de classes, suas frações e suas estratégias de ação, para saber como se situar e como agir com os objetivos e valores éticos que nos movem para lutar politicamente.

As sociedades são estruturas duras mas com limites gelatinosos, por assim dizer, onde o poder real dos que se consideram “donos” pode se dissimular, manipular, com dinheiro, propaganda e mentiras, angariando apoio e até o comprando se necessário. Basta ter presente o bloco de poderosos especuladores acionistas sob o disfarce de mercado, que manipulam a economias segundo seus interesses em nome da regra da liberdade.

Esta classe e seus asseclas operadores são proporcionalmente pouco, mas constituem um bloco poderoso – da “Faria Lima” como é conhecido – que condiciona diretamente governos e especialmente a política fiscal e monetária do país, sem limites, geralmente na penumbra.  Seu poder de classe, apesar de pequeno em termos de cidadania, influencia em muito as eleições, especialmente nas grandes cidades e capitais, onde muitos exercem seu poder de modo especial. Mas as grandes e médias cidades contem em seus territórios milícias e traficantes, o lado abertamente criminoso dos que nos dominam.

Por outro lado, no vasto território rural temos a versão moderna de “coronéis” do  grande agronegócio brasileiro, integrantes da classe dominante. Esta fração, de grandes proprietários de terras, que se auto consideram e se proclamam pela televisão como “agro é tec,  o agro é pop, o agro é tudo”. Não criam muitos empregos estáveis, mas se valem de grileiros, pistoleiros e desmatadores e até de formas de trabalho semelhante ao escravo, especialmente na abertura de novas áreas anexadas criminalmente ou recentemente adquiridas. A seu modo é um grupo poderoso, sem limites no agir baseado no seu controle territorial. Praticam muita violência, especialmente contra quem ousa se opor à sua expansão ou questiona a sua legitimidade e legalidade, defendendo o próprio direito à terra. O “agro” dá particular atenção à política em todos os níveis, ocupando espaços de poder diretamente ou por cúmplices. Quando eleitos para o executivo municipal ou sua Câmara, tendem a considerar a coisa pública como sua, como direito. Pior ainda quando se elegem para governos e legislativos estaduais ou para o Senado e Câmara de Deputados, juntando-se em “frentes” e “bancadas” na defesa seus interesses paroquiais. Hoje são os maiores beneficiados com emendas parlamentares para seus redutos.

Tal estrutura no claro-escuro limita a democracia. Hoje é parte fundamental do “Centrão” no Congresso Nacional. E tem o enorme fundo eleitoral público proporcional ao tamanho de cada partido. Mas mesmo com regras legais definidas,  manipulam e controlam tais regras pois se consideram “donos” dos próprios partidos. Mas o fundo das campanhas é alimentado ainda pelos grandes doadores/financiadores, nada transparentes, em geral de grandes empresas, ricaços especuladores nas bolsas ou diretamente do agronegócio, sempre em busca de seus interesses de acumulação, em nome da liberdade de mercado, como se democracia também fosse uma forma de mercado de votos. Dá para imaginar a distorção praticada por tais “eleitores”.

Mas tem mais, pois hoje as grandes redes socais puxadas por “influenciadores”, contando com o enorme poder das próprias operadores e servidoras da internet, alimentam e contaminam o   “ambiente público democrático”. O “fenômeno” Marçal, em São Paulo, coração econômico e político do Brasil, é um caso emblemático a respeito, mas não se restringe a ele, pois é uma forma particularmente usada pela extrema direita em muitos países. O caso do super rico Musk, dono da X – outro monstro gerado pelo capitalismo – mesmo não sendo brasileiro, revela toda a ameaça democrática que significa a manipulação da informação e propagação de notícias falsas e de ódio entre nós, aqui no Brasil, sempre em nome do direito de “liberdade de expressão”. Mas os outros que fazem parte do “grupito” de ricaços proprietários de empresas que controlam a grandes empresas provedores de internet no mundo podem ser um pouco mais moderados e pouco falantes, mas o modo de operar é o mesmo ou só menos espalhafatoso do que o Musk. O fato é que o ambiente das redes sociais digitais parece um mundo selvagem onde tudo é permitido.

A complexidade do momento brasileiro se exprime de algum modo neste processo eleitoral. Ainda faltam os resultados finais, incluindo o segundo turno, para traçar uma geografia eleitoral, especialmente partidária, na complexidade e variedade de partidos que temos no momento. Sempre as questões vividas nos territórios dos mais de 5.500 municípios que temos e vinte e seis Estados Federados, de tamanho populacional e territorial diverso, complicam mais ainda uma análise de correlação de forças locais e seu impacto no conjunto do país. A este fato se soma o tamanho de eleitores/as que se abstiveram  de votar ou anularam o voto. Tudo isto precisa ser visto e avaliado por representar importantes sinalizadores de tendências políticas e formas diversas do viver, agir e pensar, dado o tamanho do país, base fundamental  para avaliar o “estado” da democracia. Vai ser necessário termos disponíveis os números totais de cada partido, fazendo uma espécie de geografia do voto com os resultados, levando em conta as coalizões partidárias, tarefa analítica um tanto complexa, dado o tamanho e as múltiplas diversidades de toda ordem do Brasil. Aliás, um aspecto que destaco é que não podemos tirar conclusões apressadas, mas sim elementos para alimentar o debate e direções de nossas escolhas e estratégias políticas para frente, enquanto “esquerdas”.[iii]

Gostaria de contribuir com algumas questões que merecem investigação mais profunda. Não dá para negar que a influência do “bolsonarismo” foi grande, mas não o suficiente, dado  a  ambição política e empenho de seu líder com um autoritarismo extremado. Não dá também para reconhecer a perda de vitalidade e capacidade de disputa hegemônica do PT, perdendo de intensidade, mas o tamanho do estrago não é o que se anunciava. Além disto merece destaque o caso de São Paulo, com a polaridade surgida no primeiro turno, com o Boulos chegando ao segundo turno numa aliança entre PSOL e PT, acima do Marçal e atrás  do Nunes com a turma do governador Tarcísio, da centro-direita e da “Faria Lima”.  No país como um todo, os sinais até aqui indicam a centro-direita, com o seu balaio de várias expressões partidárias, como vitoriosa. Mas o que representa isto, pois as identidades e diferenças não podem ser ignoradas. A sinalizar a insignificância dos herdeiros do PSDB. Como tais sinais irão impactar a disputa de hegemonia para as eleições estaduais e nacionais, dentro de dois anos, é algo que temos que aprofundar e entender o que significa como desafio político para a democracia e nós da esquerda. Por fim, um sinal preocupante foi a falta de grandes mobilizações e tomada do espaço público de cidades de nossa parte, numa conjuntura tão desafiadora

Mas gostaria de destacar, assim mesmo, a atenção especial que devemos dar aos os “monstros”e sua atuação, alguns velhos e outros bem novos, como as forças e expressões de extrema direita. Vou deixar tão desafiante questões para um nova postagem, já depois do segundo turno.

[i] Não faltam análises, mas elas revelam mais as complexidades do momento do que algum consenso básico. Diante de tal dificuldade entre analistas, que considero referência na construção de minha própria análise, parei com as postagens mais regulares no meu blog. Dei-me um tempo para pesquisar e refletir. Mesmo sem muitas respostas, volto a compartir algumas pistas que a pesquisa e a reflexão feitas me apontam.

[ii] Eu me limitei às muitas análises do campo democrático de esquerda que temos, sem dar conta de todas.  Por  isto não apresento  os autores e os artigos a que tive acesso, tanto antes como após as eleições, ainda mais com o segundo turno   em várias  capitais estaduais  e maiores municípios, em termos de população, estão ainda indefinidos. Reconheço que não estou seguindo particularmente alguma delas, mas todas de algum modo alimentam o debate. Espero que a minha postagem aporte algo novo para a análise coletiva necessária neste momento, sobretudo dos desafios pela frente com eleições para o poder federal daqui a dois anos.

[iii] No Ibase, quando diretor, apoiei iniciativas de geografia eleitoral a partir do voto, especialmente na primeira década em contexto democrático após ditadura. O mapa surpreende pelas interrelações reais entre vitórias eleitorais e políticas públicas ou  acesso a serviços públicos como água e eletricidade, por exemplo.

 

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