Os Subterrâneos da Psiquiatria em Sergipe… Por Antonio Samarone

Presa pichando muro contra a ditadura, militares mantêm poetisa internada em hospital psiquiátrico durante nove anos

No Documentos Revelados

Em meados da década de 1970, a Atalaia Nova, na Barra dos Coqueiros, era uma Arembepe de Província, frequentada por hippies, comunistas, artistas, bichos grilos, maconheiros e desocupados. Era a nossa Praia. Sem contar que o aluguel era barato.

Circulava entre os moradores uma lenda, de que antes do golpe de 1964, morou na Ilha, num barraco isolado, um mulher desconhecida, altiva, bem falante, feminista, poeta, jornalista e escritora. Era vista diariamente na tó-tó-tó, indo e vindo de Aracaju. Se falava que era até comunista.

Eu nunca acreditei nessa conversa. Uma intelectual de esquerda, livros publicados, culta, vivendo entre os pescadores da Barra dos Coqueiros. Fui pesquisar.

A senhora era Jacinta Velloso Passos, baiana, formada em pedagogia, casada com James Amado, irmão do famoso escritor Jorge Amado. Jacinta era de família tradicional de Cruz das Almas, na Bahia. Logo cedo, em 1944, entrou para o PCB. Rodou o Brasil lutando pelo que acreditava. A vida de Jacinta deu muitas voltas e ela se desarrumou.

Em julho de 1962, Jacinta chegou de mala e cuia para morar sozinha na Barra dos Coqueiros. Fez poucos contato com o PCB sergipano. Se tornou uma militante avulsa, por conta própria. Acreditou que poderia organizar os pescadores da Barra dos Coqueiros, tendo em vista uma revolução operária.

Jacinta Passos participava das mobilizações políticas em Aracaju. Sempre discreta e anônima. Certa feita, após a exibição do filme “A Balada do Soldado”, no cine Rio Branco, ela levantou-se e propôs um debate. A plateia não aceitou, porque ela não estava bem vestida. Ela apelou para os estudantes do Atheneu, presentes no cinema, e o debate ocorreu. Wellington Mangueira estava presente.

Com o golpe militar de 1964, os comunistas sergipanos de carteirinha foram quase todos presos. Jacinta Passos era uma desconhecida em Sergipe. Mas não tardou. Certa noite, foi surpreendida pichando nos muros de Aracaju. Ela deve ter sido presa em abril de 1965.

Ao ser interrogada pelo Tenente Rabelo, no 28º BC, Jacinta respondeu em versos. Ela falava sempre com firmeza, sem preocupação em negar nada.

O que fazer, pensou o Tenente Rabelo. Como enquadrá-la, qual o crime? Um mulher culta, escritora, não era organicamente mais do PCB? Surgiu a versão dela ser uma desequilibrada mental. Já tinha passado por uma internação em São Paulo.

O Tenente Rabelo chamou o Dr. Hercílio Cruz, médico psiquiatra, para examiná-la no quartel, e concluíram pela loucura de Jacinta. Foi confinada no Adauto Botelho, e logo transferida para a Clínica Psiquiátrica Santa Maria, no Bairro América.

Ali viveu abandonada, encarcerada como doente mental, na verdade uma presa política sem julgamento. No prontuário médico dela está anotado com destaque: “Desde 1944, é comunista”! Estava dado o diagnóstico.

Jacinta reagiu a internação, mas foi acalmada com muito eletrochoque. Passou a viver isolada num quarto, afastada dos outros pacientes.

Passava horas ouvindo um rádio de pilha, sintonizado sempre na Voz da América, BBC de Londres e Central de Moscou. Era como ficar sabendo sobre o Brasil, pois por aqui, a imprensa era censurada.

Jacinta preencheu 3.348 páginas em cadernos manuscritos, com poemas, peças de teatro, letras de músicas, textos de história e filosofia. Uma mulher sozinha, internada como louca em Aracaju, inventou um mundo de liberdade, no poder criativo do pensamento.

Num período do internamento (prisão), ela subia todas as tardes ao primeiro andar do manicômio, para conversar longamente com outro comunista ali alojado. Tratava-se de Robério Garcia, um conhecido comunista da Província.

A situação do internamento de Robério Garcia era distinta. Sendo de família politicamente importante em Sergipe, irmão do governador Luiz Garcia, Robério estava no hospital psiquiátrico para evitar a prisão nos porões da ditadura.

Sergipe não é para amadores. O mesmo hospital que aceitava uma presa política, e mascarava com um diagnóstico psiquiátrico; também abria as suas portas para esconder um comunista, mesmo sabendo não ser portador de nenhuma patologia mental.

Os comunistas Jacinta Passos e Robério Garcia foram internados como loucos no Hospital Psiquiátrico do Dr. Hercílio Cruz, em Aracaju, no período da ditadura militar de 1964, por motivações diferentes: Jacinta cumprindo pena sem julgamento e Robério evitando ser preso e julgado.

Havia outra diferença: Robério Garcia era um interno livre e Jacinta Passos uma presidiária.

O caso do encarceramento da intelectual Jacinta Velloso Passos, num hospital psiquiátrico em Aracaju, é parte dos subterrâneos da psiquiatria em Sergipe.

Jacinta Passos é um nome reconhecido nacionalmente, várias biografias publicadas, uma mártir da luta das mulheres no Brasil.

Em Aracaju, a escritora Jacinta Passos foi convenientemente esquecida, para não ensombrar a história da psiquiatria sergipana. Jacinta chegou a fugir do hospital, mas foi brutalmente recapturada.

Quem perguntasse a Jacinta o que ela estava fazendo ali, no Hospital psiquiátrico. Ela respondia sem pestanejar: “Estou presa. Sou uma presa política. Foi o exército. Estou presa desde 1965, quando caí, estava escrevendo num muro de Aracaju.”

Segundo o Jornalista e escritor Célio Nunes:

“Presa em 1964, Jacinta Passos foi internada no Adauto Botelho, removida depois para a Clínica Santa Maria. Internado como louca por 9 anos, para o sossego dos que não toleram comportamentos diferentes e contestadores. Depois de muitos eletrochoque, veio a falecer em 1973.”

Em 28 de fevereiro de 1973, faleceu aos 57 anos, no Hospital Psiquiátrico Santa Maria, em Aracaju, a presa política Jacinta Velloso Passos. Deixando uma ampla produção literária: “Os Cadernos do Sanatório”. No atestado de óbito consta como causa do óbito “derrame cerebral”.

Jacinta Passos deixou uma filha, a historiadora Janaína Amado.

“Quando eu não for mais um indivíduo, eu serei poesia/ Eu não serei eu, serei nós/ serei poesia permanente/ poesia sem fronteira.” (Jacinta)

Minha homenagem tardia, a Jacinta Passos.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Costa

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