Narrativa e mapas da degradação urbana, no centro de SP. Como a omissão do Estado, e mais tarde a especulação imobiliária, abandonaram uma área habitada pelos pobres; para em seguida tentar expulsá-los à força e dar lugar a obras suntuosas ou empreendimentos privados
Por Aluízio Marino, Alec Akasaka Benedusi, Renato Abramowicz Santos, Débora Ungaretti, Raquel Rolnik, no LabCidade
A persistência da cracolândia na região entre os Campos Elíseos, Santa Efigênia e Luz, há mais de três décadas, é resultado de decisões de política urbana, e não da falta delas. Por diversas vezes, ao longo da história recente, esse fragmento da cidade foi alvo de ações policiais e urbanísticas tendo em vista solucionar um processo de “degradação”, cujo sinônimo oculto é o deslocamento das elites e classes médias (suas formas de consumo e habitação) dessa área da cidade durante o processo de urbanização de São Paulo, e o rechaço de formas populares de morar e viver.
Apesar do anúncio do desejo de “revitalização”, verificamos como foi sendo construído, ao longo do tempo, um espaço em ruínas, que atraiu os abandonados da cidade, constituindo o que ficou conhecido como “fluxo”. Tendo como ponto de partida uma leitura publicada em 2017 pelo LabCidade FAUUSP, atualizada agora para 2024, demonstramos que a presença do fluxo, embora anunciado como justificativa para intervenções na região, é na verdade produto e resultado destas.
Antes da “cracolândia”, termo criado em 1995 pela delegacia especializada no combate ao crack no âmbito do Denarc, a região delimitada pelos bairros dos Campos Elíseos, Santa Efigênia e Luz era reconhecida por outras presenças também denominadas de forma estigmatizadoras: a prostituição da “Boca do Lixo”, do “Quadrilátero do Pecado”. A área, então circunscrita entre a Rua dos Timbiras, Avenida São João, Avenida Duque de Caxias e Rua Mauá, integrava uma série de hotéis localizados na Santa Efigênia, originalmente associada ao baixo meretrício, que, em 1953, por decreto do então prefeito Adhemar de Barros, havia sido removido das “casas de tolerância” do Bom Retiro. Marcada pela presença de circuitos ilegais, mas não apenas, a região conviveu historicamente e em meio à repressão, com uma pujante cena cultural, em especial do cinema, do teatro e do samba. Ainda assim, durante a ditadura militar, em nome da moralidade, aconteceram na região ações policiais que resultavam, rotineiramente, em despejos e prisões.
Do outro lado da avenida Duque de Caxias, no bairro dos Campos Elíseos, inicialmente planejado para receber as residências da elite cafeeira, ainda no final do século XIX, foi paulatinamente se popularizando. Com a saída das elites e classes médias para bairros adjacentes (Higienópolis, Pacaembu, Av. Paulista e os Jardins), a partir dos anos 1930 os antigos casarões e edifícios passam por compartimentações sucessivas, predominando a permanência de populações de menor renda, sobretudo após a instalação do terminal rodoviário da Luz em 1961.
Como incremento à movimentação de pessoas, já observadas a partir das linhas de trem de passageiros e as estações da Luz e Júlio Prestes, a existência da rodoviária atraiu uma população nômade e provisória de recém-chegados, em parte pela oferta de uma série de serviços aos viajantes, em sua maioria trabalhadores que se deslocavam para São Paulo em busca de oportunidades. Entre elas, a locação em pensões, hotéis e cortiços, próximos ao eixo de transporte, tornou-se forma comum de acesso à moradia na região.
Antes mesmo da chegada da rodoviária, ainda no século XIX, a Santa Efigênia já concentrava esse tipo de moradia, de casinhas e pensões de aluguel encortiçados. O mapa abaixo sobrepõe dados de um levantamento de cortiços publicado em 1893, realizado pela Comissão de Exame e Inspeção das Habitações Operárias e Cortiços no Distrito da Santa Efigênia, com dois levantamentos mais recentes, de 2015 e 2022, realizados pela Secretaria Municipal de Habitação, evidenciando a permanência de formas populares de moradia há mais de um século.
A existência de um grande número de pessoas morando e circulando nesse território ofereceu alternativas de sobrevivência e geração de renda, gerando um comércio popular: do comércio ambulante ao fornecimento de marmitas. Ali também se instalaram polos de comércio especializado, como instrumentos musicais e equipamentos eletrônicos.
Em 1982, com a desativação da rodoviária, permaneceu ali uma estrutura cada vez mais subutilizada e ociosa de hotéis e pensões, alguns deles desativados, dando lugar a ocupações de moradia, e no início da década seguinte, abrigo aos primeiros usuários de crack. Ato contínuo, as expulsões esporádicas, já realizadas nas casas de prostituição da Boca do Lixo, com fechamento e interdições, progressivamente deslocam os usuários de de substâncias para fora dos estabelecimentos, passando a ocupar as ruas do entorno.
Nos anos 1990, a cracolândia já era uma realidade e passou a ser mobilizada como a principal justificativa para a transformação urbana. A estratégia empreendida pelo Governo do Estado de São Paulo naquele momento foi instalar grandes equipamentos culturais, como a Pinacoteca, a Sala São Paulo e a Escola de Música (EMESP Tom Jobim), denominados como “equipamentos âncora”. Esse conjunto de intervenções pontuais consistia em uma espécie de “acupuntura urbana”, que apostava na ideia de que a presença de equipamentos sofisticados de cultura e arte trariam como consequência um movimento de retorno das elites e classes médias ao centro.
Segundo essa lógica, tais intervenções seriam capazes de atrair investimentos em restaurantes, apartamentos, negócios, promovendo uma ampla transformação. Contudo, diversos fatores limitaram a possibilidade de atores privados transformarem esse território. Em primeiro lugar, a existência de um patrimônio histórico edificado e protegido: a Santa Efigênia possui um dos traçados urbanos mais antigos da cidade, remontando ao início do século XIX, composta por sobrados e edificações hoje tombados. Outro limite foi a complexidade fundiária dos bairros, resultado de décadas de fragmentação das propriedades, com irregularidades registrais, heranças e inventários não concluídos. A existência de muitos herdeiros, alguns já falecidos, outros difíceis de localizar, dificultava a aquisição dessas áreas pelo setor imobiliário, o que inviabilizou a transformação da forma como se dá em muitos outros setores da cidade.
Como o setor privado não teve êxito em comprar e demolir, o setor público assumiu esse papel. Já nos anos 2000, o Governo do Estado e a Prefeitura passam gradativamente a desapropriar imóveis, justificando essa ação em nome da vigilância sanitária e da fiscalização de espaços comerciais, mas sobretudo mobilizando o discurso e a estratégia da “guerra às drogas”, estabelecendo como meta o fim da cracolândia, último entrave para “revitalizar” a região. Estas ações foram constituindo, na verdade, um cenário de ruínas, onde os despejados das próprias intervenções foram estabelecendo novas ocupações precárias, atraindo assim outros deserdados da cidade, oferecendo uma rede de moradia e sobrevivência precária nos limites e sobras da legalidade.
À medida que algumas áreas foram sendo desapropriadas e demolidas, foram criados e expandidos imensos terrenos baldios, quarteirões inteiros desapropriados, em pleno centro da cidade, densamente urbanizado. Observa-se, aqui, o primeiro movimento de deslocamento planejado da cracolândia que, a partir de 2008, migra do bairro da Santa Efigênia e atravessa a avenida Duque de Caxias no sentido dos Campos Elíseos, ocupando o entorno da Praça Júlio Prestes e, pouco tempo depois, o já demolido terreno da antiga rodoviária da Luz. A partir de então, as operações policiais que sucederam aproveitaram o espaço para estabelecer ali um laboratório violento, orientadas pela lógica da “dor e sofrimento” – que nomearia a operação iniciada em 2012 – empurrando usuários entre as ruínas.
Para poder superar o impasse da desapropriação – restrita ao poder público sob justificativas de utilidade pública ou interesse social – em 2005 foi lançada a concessão urbanística Nova Luz, que previu a passagem do instrumento para atores privados, o qual foi alvo de contestação na justiça. Comerciantes e trabalhadores da Santa Efigênia se organizaram junto aos moradores da área, entre eles moradores de ocupações ameaçadas, movimentos e outras organizações sociais, para resistir à tática da desapropriação privada e destruição de seus comércios, espaços de moradia e trabalho na região. Com a oposição ampla no debate público e irregularidades na contratação dos projetos, a concessão foi judicializada pelo Ministério Público e suspensa.
Com a Nova Luz política e juridicamente derrotada, e tendo sido a pauta e demanda da moradia como uma das justificativas desta derrota, o poder público se viu obrigado a aprender com os erros. A estratégia, nesse sentido, não seria mais em equipamentos culturais nem na desapropriação a encargo do setor privado. A aposta, encabeçada pelo governo do Estado, e seguida do governo municipal, seria a habitação. Os projetos de habitação via Parceria Público-Privada passaram, assim, a mobilizar a legitimidade da pauta da moradia e o interesse social para justificar transformações urbanísticas mais amplas. A PPP Casa Paulista, lançada em 2012 e contratada em 2014, é voltada para quem trabalha no centro com carteira assinada, mas não mora no centro. Se propõe, com isso, a atrair novas pessoas para morar na área central – justificada ao se apropriar, parcialmente, de uma antiga e legítima pauta dos movimentos de moradia da área central: habitação para trabalhadores no centro da cidade. A proposta, porém, excluiu uma parcela da população que não se enquadrava nos perfis de renda e crédito, promovendo, ao mesmo tempo, a remoção dos antigos moradores e comerciantes locais, e o não acolhimento de pessoas despejadas das pensões e cortiços desapropriados. A implementação desses empreendimentos foi acompanhada de uma política de repressão e violência não só contra os moradores das edificações demolidas para o projeto, mas também contra as pessoas em situação de rua.
Em maio de 2017, pouco antes do lançamento dos primeiros empreendimentos das PPPs, uma grande operação policial, com mais de 900 agentes da polícia Civil e Militar, espalhou o fluxo, à época concentrado entre a Alameda Dino Bueno e a Rua Helvetia. Um dia depois, tratores começaram a demolir imóveis com pessoas ainda vivendo dentro deles. Embora o então prefeito à época, João Dória, atestasse publicamente o “fim da cracolândia”, a cena de uso voltava a ocupar o entorno da Estação Júlio Prestes algumas semanas depois. Como reação, foi composta a articulação do Fórum Aberto Mundaréu da Luz, da qual o LabCidade fez parte, e cujo resultado imediato foi a elaboração do plano alternativo Campos Elíseos Vivo, com participação coletiva de moradores e comerciantes, tendo em vista combater a abordagem violenta e reducionista dos projetos públicos em andamento.
O fracasso da tentativa de remover a cracolândia dali não interrompeu as políticas violentas, mas fez com que mudassem de estratégia. Ao invés de dispersar os usuários, a gestão Dória passou a intensificar as ações de zeladoria urbana – com movimentação do fluxo para limpeza de ruas e coleta de lixo – fechar serviços de cuidado e cercar espaços públicos, em especial das praças Júlio Prestes e Princesa Isabel, gradeadas e policiadas em 2018 e 2022 respectivamente, dificultando ao máximo a circulação das pessoas que se concentram nas cenas de uso e o trabalho da assistência social. Tudo isso em conjunto com as desapropriações e remoções dos moradores e comerciantes dos quarteirões alvo do projeto, inclusive durante o período da pandemia.
A retomada da estratégia de dispersão: do deslocamento à multiplicação das cenas de uso
Em 2022, após praticamente completada a remoção total dos moradores e comerciantes dos três quarteirões para as PPPs, foi retomada a estratégia de dispersão da cracolândia. Já sob a gestão Ricardo Nunes, a concentração de usuários foi então deslocada do entorno da estação Júlio Prestes. Inicialmente o fluxo se concentrou na Praça Princesa Isabel, mas em pouco tempo foi expulso, e, assim, a cracolândia se espalhou, formando pelo menos 16 concentrações menores no entorno.
A tática da dispersão foi atualizada sob o nome de “Operação Caronte”, realizada entre 2021 e 2022, em seis fases, cada uma dividida em diversas etapas, liderada pela Polícia Civil em parceria com a Guarda Civil Metropolitana (GCM) e a Polícia Militar (PM). A narrativa governamental da época afirmava que a tática da dispersão era um sucesso, pois, além de qualificar o atendimento dos usuários, estaria gerando uma diminuição das cenas de uso. Em texto publicado na Folha de S. Paulo, Alexis Vargas, o então secretário-executivo de Projetos Estratégicos da Prefeitura de São Paulo, afirmou: “Os números confirmam que estamos no caminho certo. A cracolândia está cada vez menor, os usuários estão tendo mais atendimento e o centro da capital paulista está cada vez mais ocupado por famílias”. Esse discurso, no entanto, não se sustentou no tempo e a política da dispersão sofreu fortes críticas de regiões que passaram a acolher novas cracolândias. A multiplicação das cenas de uso gerou uma forte sensação de insegurança, agora ampliada pelo centro da cidade. Cenas de assalto a transeuntes e roubos a lojas passaram a circular nas redes sociais, amplamente divulgadas pela mídia, gerando fechamento de diversos estabelecimentos.
Da dispersão do fluxo aos lançamentos imobiliários
A presença do crack na região por mais de três décadas produziu um imaginário social do medo que, ao longo do tempo, foi “contaminando” a dinâmica local como um dos fatores decisivos na formação das geografias urbanas do crime e da violência. O crack, para além de apresentar complexidades na confluência entre o social, o jurídico e a saúde pública, carrega representações morais em torno do ilícito, tornando-se elemento chave na engrenagem de depreciação-apreciação dos imóveis onde se concentram as cenas de uso.
Importa, nesse sentido, observar como a produção imobiliária pressiona as margens desse perímetro nas últimas décadas, desde a primeira expulsão de usuários da Santa Efigênia. Entre os anos de 2008 e 2022, de acordo com dados da Embraesp, pode-se constatar que os lançamentos imobiliários se aproximam da área de influência do fluxo, com espraiamento dos empreendimentos, a partir deste recorte, na região da República, Santa Cecília, Bom Retiro, Barra Funda, com algum incidência em trechos dos Campos Elíseos. A sequência abaixo sintetiza o atravessamento entre a movimentação do fluxo e os lançamentos pelo mercado imobiliário (Embraesp, 2008-2022).
Com os imóveis desvalorizados, a estratégia da desapropriação volta a tomar a cena. Agora para a construção de uma nova esplanada do Governo do Estado, ocupando o entorno da Praça Princesa Isabel, lugar em que, durante os anos de 2008 e 2023, se concentrava a cena de uso da cracolândia, em mais um projeto de PPP, agora de transferência da sede administrativa.
E para onde foi o fluxo? Voltou para o mesmo lugar onde tudo começou, no pedaço entre a Santa Efigênia e a Luz, ocupando mais uma vez as ruínas, em um dos terrenos demolidos durante a Operação Nova Luz no início dos anos 2000 e que, até hoje, segue abandonado. Embora o Governo do Estado e a Prefeitura afirmem terem criado um “corredor da saúde”, na Rua dos Protestantes, o que se vê é a cracolândia cercada por grades e muros, continuamente deslocados pelo movimento duplo de ações de segurança e zeladoria urbana.
Moral da história: as políticas de gestão e controle do território exercidas pelos governos revelam que a produção da “cracolândia” – enquanto materialidade e território, mas também enquanto uma ideia que constitui (e amedronta) o imaginário social – e seu deslocamento, ao longo do tempo e do espaço, são fruto de políticas e ação – e não omissão – do Estado. Por meio de um jogo que alterna demolição e deslocamento, foi-se criando, com muita violência, uma dinâmica territorial e social em que a valorização e desvalorização acabam sendo efeitos (e objetivos) das políticas de controle, repressão e deslocamento forçado, em um jogo de disputas políticas que até os dias de hoje tem agravado as condições urbanísticas e sociais da região.
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Aluízio Marino é pós-doutorando FAU-USP
Alec Akasaka Benedusi é graduando FAU-USP e pesquisador no LabCidade
Renato Abramowicz Santos é doutorando FFCLCH-USP e pesquisador do LabCidade e do Observatório de Remoções
Débora Ungaretti é doutora pela FAUUSP e pesquisadora no LabCidade
Raquel Rolnik é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade
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Mapa de localização atual do fluxo, indicação dos imóveis demolidos na Nova Luz e PPPs (Pólo Administrativo, Casa Paulista e Pérola Byington). Fonte: Labcidade, 2024.