ES: ‘Se não nos unirmos, mais uma vez irão nos destruir’

Comunidades e ambientalistas confrontam Rigoni e listam impactos da privatização de parques

Por Mariah Friedrich, Século Diário

“A mesma conversa que reconheço aqui, emprego e renda, nós ouvimos na década de 1970, quando a Aracruz Celulose [atual Suzano e ex-Fibria] chegou em nosso território. Se não nos unirmos, mais uma vez irão nos destruir, porque isso não é para as comunidades tradicionais, é para os grandes empresários”.

O alerta da quilombola Gessi Cassiano ressoou a tensão entre os interesses de grupos econômicos e a necessidade de proteção socioambiental provocada pelo processo de implementação do Programa de Desenvolvimento de Unidades de Conservação (Peduc), que privatiza a área, debatido em audiência pública nessa quarta-feira (30), na Assembleia Legislativa.

O debate convocado pela Comissão de Meio Ambiente reuniu representantes de comunidades tradicionais, moradores do entorno dos parques estaduais, servidores e ambientalistas, além de parlamentares e o secretário de Estado de Meio Ambiente, Felipe Rigoni, para tratar dos impactos do projeto, que provocou resistência da sociedade civil diante das ameaças à sobrevivência ambiental e ao modo de vida das comunidades locais. O programa estabelece a exploração econômica de seis unidades de conservação integral no Espírito Santo, por meio de uma concessão de 35 anos ao setor empresarial.

“Nós lutamos, meu pai morreu lutando, e hoje vejo pessoas que não têm conhecimento do que é o sofrimento na pele querer destruir. Precisamos nos fortalecer e proteger a natureza, porque é dela que tiramos o sustento”, ressaltou a quilombola residente da comunidade de Linharinho, nas proximidades da vila de Itaúnas, um dos locais que serão impactados pelo Peduc, no município de Conceição da Barra, norte do Estado.

A pesquisadora Simone Machado, que desenvolve estudos sobre comunidades tradicionais da região do Sapê do Norte, onde Itaúnas está inserida, destacou que a vila é um território tradicional, por isso é a unidade de conservação onde ocorreu a reação mais forte contra o Peduc até então.

“As comunidades tradicionais que estão no entorno do parque fazem a conexão com as unidades de conservação, são responsáveis pelos corredores ecológicos, até porque dependem dessa sociobiodiversidade e sabem como manejar. Além disso, elas já realizam o empreendedorismo local e esses empreendimentos que estão sendo propostos, na verdade, podem comprometer a estrutura que já existe e prejudicar quem vive ali, como os barraqueiros que nunca puderam ser regularizados”, relatou.

Além do Parque Estadual de Itaúnas (PEI), o programa estabelece a transferência do manejo dos parques Cesar Vinha (PEPCV), em Guarapari; Cachoeira da Fumaça (PECF), em Alegre, sul do Estado; Forno Grande (PEFG) e Mata das Flores (PEMF), em Castelo, e Pedra Azul (Pepaz), em Domingos Martins, na região serrana; e prevê a realização de um leilão para concessão das unidades em 2025.

O biólogo Walter Luiz Oliveira Có ressaltou que o programa da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Seama) coloca em risco não apenas a biodiversidade dos ecossistemas, que representam os últimos refúgios para diversas espécies, mas também a confiança pública nos órgãos de preservação ambiental, ao permitir empreendimentos econômicos que conflitam com o objetivo primordial de proteção integral dessas áreas.

“Esse turismo de massa não faz sentido nenhum sob o ponto de vista de uma área de conservação integral. Se perdemos a última linha de defesa da vida, que faz as pessoas acreditarem na capacidade dos órgãos ambientais, em que momento vamos começar a fazer as coisas certas como sociedade? Precisamos de mais parques nas cidades, e não mais cidades nos parques”, defendeu.

O também biólogo Hugo Silva Cavaca frisou que a audiência pública foi possível devido à iniciativa da Assembleia Legislativa, enquanto o Governo do Estado afirma que prevê realizar consultas com a população que vive nas áreas dos parques e entornos apenas em 2025. Ele criticou a forma como os projetos conceituais têm sido divulgados na imprensa antes de escuta às comunidades e pediu que Rigoni apresentasse o termo de referência para a contratação e quais estudos têm sido desenvolvidos pela consultora Ernst & Young.

Para Hugo, ocorre uma inversão de prioridades, pois os planos de manejo estão sendo adequados para a concessão. “É obrigatório a participação social para desenvolver esses projetos, e os planos de manejo e as mudanças não podem acontecer sem o acompanhamento da sociedade civil”, cobrou.

Um dos conselheiros do Parque Paulo César Vinha, Lúcio Lopes, apontou as deficiências do governo em garantir a fiscalização e conservação das áreas de preservação e compartilhou sobre a situação preocupante da vegetação exótica que invadiu as ilhas de Guarapari. “Uma concessão de 35 anos é muito preocupante. Eu implorei à gestora do parque para ter acesso ao projeto e nem eles tinham conhecimento. Como liderança comunitária, vejo a omissão e a degradação. Se não temos condições nem para cuidar do nosso patrimônio, como vamos entregar isso para terceiros?”, questionou.

Incompatível com a preservação

As deputadas Iriny Lopes (PT) e Camila Valadão (Psol) questionaram a viabilidade legal do programa da Secretaria de Estadual de Meio Ambiente. Para Iriny, a iniciativa não tem sustentação jurídica, porque entre em desacordo com dispositivos da Constituição Federal, como o artigo 255, e a Lei 9985 de 2000, que garantem a proteção integral das áreas de conservação.

“Esse projeto tem um problema de origem insanável, os empreendimentos dentro das unidades são incompatíveis com o conceito de preservação. Não existe meia preservação. Então, eu pergunto ao secretário: por que contratou uma consultora que não tem expertise em questões ambientais? Custou R$ 8 milhões dos cofres públicos e eu quero saber exatamente de onde esses recursos foram tirados”.

Durante sua fala no plenário, o secretário de meio ambiente, Felipe Rigoni, defendeu a iniciativa, ressaltando que irá gerar empregos e melhorar o aproveitamento das áreas do entorno. Reconheceu, ainda, que os projetos tiveram inadequações identificadas pelos técnicos do Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema), que, segundo ele, têm orientado para a realização de ajustes. “Se eu estivesse fazendo uma privatização simples e pura, eu venderia o parque e ponto, então fariam o que quisessem. Os projetos têm sido modificados, justamente por indicação dos técnicos do Iema”, argumentou.

Extensão do governo

A Federação das Indústrias do Estado (Findes) enviou sua especialista do Conselho Temático de Meio Ambiente e Sustentabilidade, Graciele Zavarize Belisário, para defender o programa da gestão Renato Casagrande (PSB). A representante criticou o movimento de oposição à iniciativa. “Vocês não vieram buscar informações sobre o projeto, a grande maioria que está aqui, veio fazer uma defesa político-partidária”, acusou.

A deputada Camila Valadão reagiu à defesa corporativa da especialista da Findes e apontou como reflexo da relação construída entre a Seama e a entidade industrial, que se comporta como uma extensão do governo: “É muito curioso como a Findes tem acesso à totalidade do projeto, enquanto as comunidades não foram consultadas. Isso demonstra a incapacidade da Secretaria de Meio Ambiente e do Iema em resolver os problemas existentes. O Espírito Santo teve um superávit de R$ 1,23 bilhões em 2022, poderia utilizar para essas questões, mas a abordagem adotada é transformar a proteção ambiental em mais uma estratégia de mercado”.

Iema fragilizado

A diretora do Sindicato dos Trabalhadores e Servidores Públicos do Estado (Sindipúblicos) e servidora do Iema, Silvia Sardenberg, expôs a fragilização da autarquia ao longo dos anos, enfatizando a escassez de concursos públicos e a nomeação de diretores ligados ao setor privado. Ela mencionou as tentativas de extinção do instituto, que foram barradas pelo movimento dos servidores, mas ressaltou que, desde então, o governo estadual não tem proporcionado as condições necessárias para o funcionamento do órgão ambiental.

“Tentam extinguir o Iema por inanição. Queremos que os servidores tenham voz nesse processo, mas falar em público que vai ter participação quando estão prevendo somente apresentar o projeto depois da modelagem terminada, não é consultar. Participação é deliberação, mudar as cláusulas, porque vai ficar em uma área sensível, porque se tem alguma área degradada dentro de um parque, é porque não foi recuperada. Então não é isso que se quer, reforçou.

‘Lucro pelo lucro’

O diretor do Sindicato dos Petroleiros do Espírito Santo (Sindipetro), Alex Pereira, denunciou as privatizações em curso no Estado, a exemplo do setor petrolífero, o que tem resultado em uma série de desastres ambientais causados por negligência, como o recente derramamento de petróleo em São Mateus.

“O pior é que nós avisamos, fizemos uma reunião com o governador, que assinou um documento público dizendo que seria contra as privatizações, mas tivemos um banco aqui no Estado que financiou essas vendas. Então, a gente sabe exatamente o que essas empresas fazem, só querem o lucro pelo lucro. A concessão é uma palavra bonita para as privatizações e não é o capixaba que vai ganhar com isso”, alertou.

Descaracterização

Os projetos idealizados por Felipe Rigoni, já anunciados para o Parque Estadual de Itaúnas e o Parque Estadual Paulo César Vinha, na modelagem da consultora Ernst & Young, contratada sem licitação, incluem estruturas de grande impacto em áreas naturais protegidas, como teleféricos, tirolesas, restaurantes, hospedagens e estacionamento para centenas de veículos.

O projeto prevê cinco polos de exploração turística para o Parque Estadual de Itaúnas. O primeiro, na área do Hotel Barramar, inclui duas pousadas com 15 quartos cada, um restaurante e estacionamento com 200 vagas. No segundo, localizado na antiga foz do Rio Itaúnas, as mesmas estruturas serão replicadas, conectadas por trilhas suspensas.

A área da sede do parque será reestruturada com escritórios, alojamento para 16 pessoas e um centro de visitantes. No polo histórico, um memorial da será criado sobre a vila soterrada, na Casa de Tamandaré, acompanhado de cafés e lojas, além de uma tirolesa. Também haviam sido apresentadas mudanças para a tradicional área das barracas, que receberia uma estrutura única.

No Parque Estadual Paulo César Vinha, o plano divide as intervenções em dois núcleos. No primeiro, que engloba a portaria principal, a Lagoa de Caraís e o Mirante do Alagado, serão instalados teleféricos, uma torre de tirolesa e trilhas suspensas. O segundo, que cobre o acesso secundário, abrange a Lagoa Feia e áreas alagadas e receberia a instalação de 28 glampings e bangalôs, decks flutuantes, piscina e um restaurante na rocha.

Imagem: Lucas S.Costa/Ales

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