“Um milhão de espécies estará ameaçada de extinção até o fim do século. Será que o homo sapiens é uma dessas espécies ameaçadas?” Entrevista especial com Carlos Alfredo Joly

Sem acordo formal, países ricos não querem assumir a conta da crise climática e o planeta não atravessa a encruzilhada rumo a modos de vida menos nocivos ao meio ambiente

Por: IHU e Baleia Comunicação

A 16ª Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade – COP16 chega ao fim nesta sexta-feira, 1º de novembro. O encontro teve amplas discussões, parte delas ainda sem consenso, mas a aprovação do Acordo Global para identificar e conservar Áreas Marinhas de alta importância ecológica em águas internacionais e do Plano de Trabalho para Povos Indígenas e Comunidades locais, sinalizam um progresso na implementação do Marco Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal, assinado em 2022 no Canadá.

A semana de trabalho também foi marcada por tensão, após a detenção da ativista ambiental brasileira Txai Suruí, no dia 30 de outubro. Os indígenas protestavam contra a Proposta de Emenda Constitucional – PEC 48, que trata do marco temporal, quando foi detida com violência por seguranças da COP. Os manifestantes foram liberados após a intervenção dos chefes da delegação brasileira.

Com as negociações chegando à fase decisiva, ainda não há indícios de que os obstáculos para entrar em um entendimento sobre o financiamento para a conservação da biodiversidade serão superados. Existe uma falta de comprometimento dos países desenvolvidos em aumentar o investimento financeiro, adverte o professor e pesquisador Carlos Joly. Para ele, “a relutância dos grandes países em contribuir para esses fundos é algo inacreditável. Enquanto temos alguns países que de fato dão uma contribuição muito maior do que 1% do seu PIB para a área ambiental (os países nórdicos basicamente, como a Noruega, que é um spread dentro dessa área), outros países têm uma dificuldade muito grande de contribuir”, aponta.

Em uma longa entrevista, concedida na primeira semana de discussões, o coordenador da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos – BPBES também falou sobre a importância de os países reconhecerem que a crise climática e a perda da biodiversidade são fenômenos sobrepostos. “Precisamos entender que essas duas crises, da biodiversidade e da mudança climática, estão imbricadas. A perda de biodiversidade tem seus impactos nas mudanças climáticas. Por sua vez, as mudanças climáticas estão rapidamente se tornando o pior vetor de perda de biodiversidade. Então, há cerca de dez anos, a comunidade científica vem pressionando no sentido de que esses dois temas sejam discutidos conjuntamente, que as decisões tomadas sejam conjuntas”, explica Joly.

Para o biólogo, “o ideal é que tivéssemos reuniões conjuntas dos dois órgãos: o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC, que trabalha com a questão climática, e o Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services – IPBES, que produz a base científica para as decisões políticas que são tomadas nas reuniões. Infelizmente muitos países, entre eles o Brasil, não aceitam discutir os dois temas em conjunto e entendem que cada tema tem a sua convenção”, pontua.

Vislumbrando ações para o além COP, Carlos Joly sinaliza a importância da implementação de “mudanças transformativas, que são mudanças que de fato mudam estratégias e que mexem com todos os países e suas economias. É um esforço muito maior”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o professor acredita que ainda há tempo de realizá-las, mas que será necessário um empenho conjunto de longo prazo. “Então, se tomarmos a decisão de eliminarmos os combustíveis fósseis, não será de hoje para amanhã. Temos todo um processo e uma previsão de transição energética, que ainda não inclui o abandono dos fósseis, pelo menos não objetivamente, mas creio que ainda temos tempo de implementar essas alterações”, complementa.

Carlos Alfredo Joly é graduado em Ciências Biológicas pela USP (1976), mestre em Biologia Vegetal pela UNICAMP (1979), PhD em Ecofisiologia Vegetal pelo Botany Department – University of St. Andrews, Escócia/GB (1982), Pós-Doc pela Universität Bern, Suíça (1994). É professor emérito da UNICAMP, aposentado do Departamento de Biologia Vegetal do IB/UNICAMP, Membro Titular da Academia Brasileira de Ciências, da Academia de Ciências do Estado de São Paulo, do Science-Policy Advisory Committee (SPAC) do Inter-American Institute for Global Change Research (IAI), chair da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos/BPBES, e Editor Chefe da Biota Neotropica. Editou 13 livros, com destaque para a série Biodiversidade do Estado de São Paulo: síntese do conhecimento ao final do século XX, o Atlas Inventário florestal da vegetação nativa do Estado de São Paulo, o livro Diretrizes para a Conservação e Restauração da Biodiversidade do Estado de São Paulo e o Ebook Diálogos Amazônicos: Contribuições para o Debate Sobre Sustentabilidade e Inclusão. Foi agraciado com diferentes prêmios, sendo o mais recente a Ordem do Mérito Científico, classe Grã-Cruz, em 2023.

Confira a entrevista.

IHU – Entre os dias 21 de outubro e 1º de novembro ocorre, em Cali, na Colômbia, a 16ª Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade (COP16). Eu gostaria que o senhor contextualizasse o evento e explicasse a sua importância neste contexto.

Carlos Joly – A COP16 é a décima sexta reunião dos países signatários da Convenção da Diversidade Biológica, documento que foi aprovado na Eco-92, no Rio de Janeiro, em 1992, e que desde então vem realizando reuniões a cada dois anos. A 15ª reunião foi muito alterada em função da Covid-19. Estava prevista para ser realizada na China; foi adiada e, ainda assim, as condições para receber um evento desse porte na China não eram seguras e ela acabou sendo realizada no Canadá, em Montreal, onde é a sede do secretariado da Convenção. O encontro foi realizado com todo o apoio logístico e financeiro da China, como se ela fosse a anfitriã. Nessa edição de em 2022, a Convenção aprovou um Novo Marco Global para a Biodiversidade, que está para a área da biodiversidade como o Acordo de Paris está para área de mudanças climáticas.

IHU – O que significa o fato de que até o início da Cúpula sobre Biodiversidade de Cali, apenas 33 países haviam apresentado seus planos nacionais de biodiversidade? Quão sério é o discurso dos Estados em relação às questões climáticas e ambientais?

Carlos Joly – Talvez por ser algo mais perceptível pelo cidadão comum e por ser algo que era, até agora, mais fácil de estimar, as mudanças climáticas ganharam uma vitrine, um destaque muito maior na mídia e, portanto, chegaram ao cidadão em relação às questões da biodiversidade.

Precisamos entender que essas duas crises, da biodiversidade e da mudança climática, estão imbricadas. A perda de biodiversidade tem seus impactos nas mudanças climáticas. Por sua vez, as mudanças climáticas estão rapidamente se tornando o pior vetor de perda de biodiversidade. Então, há cerca de dez anos, a comunidade científica vem pressionando no sentido de que esses dois temas sejam discutidos conjuntamente, que as decisões tomadas sejam conjuntas. O ideal é que tivéssemos reuniões conjuntas dos dois órgãos: o IPCC, que trabalha com a questão climática, e o IPBES, que produz a base científica para as decisões políticas que são tomadas nas reuniões. Infelizmente muitos países, entre eles o Brasil, não aceitam discutir os dois temas em conjunto e entendem que cada tema tem a sua convenção.

A principal diferença é que na Convenção de Mudanças Climáticas tem o princípio da responsabilidade comum, porém diferenciada. Isso significa que os países mais desenvolvidos, que contribuíram mais com o CO2 que temos hoje na atmosfera, precisam ajudar a financiar as adaptações e os processos de mitigação que ocorrem nos países em desenvolvimento. A responsabilidade é comum: todos nós somos responsáveis pelo clima, mas cada um é responsável pela sua contribuição em relação à poluição. Isso não está na Convenção da Diversidade Biológica e é a principal razão pela qual alguns países são contrários a essa discussão conjunta.

Complexidades

Quando olhamos para o que foi aprovado em 2022, falamos que “só” cerca de 30% dos países cumpriram com suas obrigações. Por exemplo, o Brasil, um país megadiverso, número um em biodiversidade, não cumpriu com a aprovação de uma estratégia e um plano de ação para a biodiversidade, em primeiro lugar porque não é um documento simples de ser produzido.

Apesar de falarmos que foi aprovado dois anos atrás, na verdade foi aprovado em dezembro de 2022, portanto, é um tempo relativamente curto. O que foi feito aqui no Brasil, com a coordenação do Ministério do Meio Ambiente – MMA, foram reuniões setoriais a partir de uma proposta redigida pelo Ministério com o setor privado, com as ONGs e a academia. O resultado dessas consultas foi integrado em um documento único, que agora precisa passar formalmente pela aprovação da Comissão Nacional da Biodiversidade, que é uma das comissões que foi destruída no governo Bolsonaro, deixando de existir a partir do primeiro dia de governo. Era necessário reestruturar a própria comissão, ao mesmo tempo que o plano era desenvolvido.

A comissão vai se reunir, pela primeira vez depois de reformulada, em dezembro próximo para avaliar esse documento conjunto. Eu participo da Comissão representando a Academia Brasileira de Ciências. Teremos então a tarefa de ler esse documento integrado e discutir o formato final do que será essa nova estratégia brasileira. É uma pena, pois seria importante que o Brasil tivesse resolvido esses problemas, estando em dia com suas obrigações.

Atrasos comprometem metas do Brasil no Acordo de Paris

Mas precisamos lembrar que nós também não estamos em dia com as nossas obrigações do Acordo de Paris. Estamos muito longe, e a cada ano que passa nos afastamos mais da possibilidade de cumprir o que prometemos. Vejam bem: o que nós prometemos no Acordo de Paris é uma dessas ações que é importante tanto para a mudança climática quanto para a biodiversidade, que é a restauração ecológica de áreas florestais da Amazônia e da Mata Atlântica. O Brasil se comprometeu em restaurar 12 milhões de hectares. O pior é que não sabemos o que foi restaurado, onde estão essas áreas que foram restauradas e não temos um protocolo para acompanhar a restauração.

Nós estamos bem distantes de podermos demonstrar para o mundo que de fato cumprimos a meta. Essa opção do Brasil foi feita no sentido de que, com isso, não precisaríamos reduzir as emissões de setores que exigirão um investimento econômico para cumprir, por exemplo: transporte, produção e indústria. A ideia era que, se plantássemos os 12 milhões de hectares, retiraríamos da atmosfera uma quantidade de CO2 que equivale às emissões que o país está fazendo. Seria uma visão muito positiva do mundo. Portanto, são complicadas essas decisões internacionais e a internalização das decisões que são tomadas.

IHU – A proposta de restaurar 12 milhões de hectares é ainda do governo Dilma Rousseff, em 2015. Esse número continua sendo suficiente diante da imensidão de áreas florestais queimadas e degradadas de lá para cá?

Carlos Joly – Certamente não. Isso precisa ser revisto e ampliado. Já foi feita uma tentativa, mas temos algumas das mudanças nesses compromissos que precisam passar pelo Congresso e lá tem uma bancada ruralista conservadora – não do ruralismo moderno, que está se adaptando às novas exigências, mas aquele bem retrógrado e que tem uma força extremamente organizada e grande.

Então, esses assuntos não têm avançado no Congresso e alguns deles têm sido barrados na Comissão de Constituição e Justiça, que sabemos que é presidida por uma bolsonarista de carteirinha [Caroline de Toni (PL/SC)], que tudo o que vem da área ambiental obviamente é contra o desenvolvimento do país.

IHU – Em que pé está o Brasil no planejamento para atingir as metas presentes no acordo, por exemplo, na conservação de 30% das terras, oceanos e águas do mundo até 2030?

Carlos Joly – Essas metas que foram aprovadas em 2022 deveriam ser cumpridas até 2030. Uma meta como essa, do aumento para 30% de conservação das terras, deveria estar cumprida até 2030, mas principalmente o que deveria se desenvolver são os mecanismos que consigam inverter os processos de perda de biodiversidade. Por exemplo: subsídios que existem para áreas agrícolas e que preveem a expansão de áreas agrícolas, existentes em diferentes países do mundo, precisariam ser revertidas ou convertidas em uma agricultura que fosse amigável às questões ambientais. A ideia é que até 2030 uma parte fosse cumprida, mas que os mecanismos para cumprir o restante estivessem em vigor para que chegássemos a uma solução até 2050. São os dois objetivos dos 32 princípios desse novo Marco Legal da Biodiversidade.

Precisamos lembrar que o Marco anterior eram as Metas de Aichi, estabelecidas em 2010 com prazo de dez anos para os países cumprirem. Então, em 2020, foi quando os países apresentaram o que conseguiram cumprir das metas estabelecidas em 2010 e o estabelecimento de um novo marco, que é o que foi aprovado. Quando fazemos uma avaliação do que foi cumprido entre 2010 e 2020, não chega a 25% em termos do cumprimento global.

Avanço brasileiro

Em alguns pontos, inclusive na área de conservação, o Brasil evoluiu e conseguiu chegar a 17% do território dentro de áreas protegidas de alguma forma, sejam terras indígenas, sejam unidades de conservação ou reservas extrativistas, e 10% na área marinha. Agora a previsão é bem mais pesada, porque está aumentando de 17% para 30%, isto é, 1/3 do país precisa estar dentro de áreas protegidas, e 1/3 das áreas marinhas sob sua jurisdição também. Esses esforços são, obviamente, bem-vindos, mas eles não solucionam o problema; eles são o que chamamos de “solução incremental”. Havia menos de 17% [de áreas protegidas], se conseguiu chegar 17% e agora vai fazer um esforço para chegar a 30%. É o mesmo mecanismo de criação de áreas protegidas que está sendo ampliado em seu uso.

Mudanças transformativas

A Plataforma Internacional de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos – IPBES vai propor na 11ª plenária que acontece em dezembro, na Namíbia, a aprovação de um relatório das mudanças transformativas, que são mudanças que de fato mudam estratégias e que mexem com todos os países e suas economias. É um esforço muito maior. Podemos dizer que hoje uma mudança transformativa seria se afastar da utilização dos combustíveis fósseis, isso tem um impacto tanto para a biodiversidade quanto para o clima.

Se pensarmos num passado não tão distante, a abolição da escravatura, processo que aconteceu no mundo inteiro e que o Brasil foi um dos últimos países a ter uma lei nesse sentido, é vista como uma mudança transformativa. É uma mudança que começou lá em 1888 e que não acabou, porque ainda temos escravidão de diferentes formas, não tão explícita como era na época, mas não conseguimos resolver essa questão completamente e outros países também.

Ou seja, essas mudanças transformativas são muito abrangentes e é esse tipo de pensamento que precisamos começar a considerar para que consigamos atingir essas metas. Isso passa também por mudanças nossas, como, uma mudança de dietas, uma ingestão menor de carnes, uma conscientização de reduzir ao máximo seu lixo, reutilizar tudo o que é possível e o que não for possível, devemos destinar para compostagem e reciclagem. Menos de 20% das prefeituras brasileiras têm coleta de lixo seletiva. Passa por nós, mas as etapas seguintes precisam estar em funcionamento. Essas discussões vão guiar os debates na área ambiental, tanto de mudanças climáticas quanto de biodiversidade, nos próximos cinco a dez anos.

IHU – Professor, esse debate em torno da conscientização da população não é novo. Assim como não é novidade também que as soluções para este problema amplo e complexo costumam ser na perspectiva de que é responsabilidade das pessoas. Contudo, o agronegócio e as grandes indústrias têm a maior participação na destruição ambiental. Não estamos colocando a responsabilidade só de um lado?

Carlos Joly – Os dois lados são culpados. Nós não podemos fugir à responsabilidade de que temos uma parte importante a contribuir, inclusive contribuir pensando em quem elegemos e como o sistema todo funcionará. Agora, sem dúvida, o impacto causado, por exemplo, pelas áreas de agronegócio aqui no Brasil é gigantesco. Como eu disse: há grupos que estão se modernizando e grupos que não querem mudar as práticas já estabelecidas, queimam a floresta para depois jogar semente de graminha e deixar o gado entrar, e é um processo que não é só de destruição da floresta, mas também de grilagem de terra pública. Com isso, entra uma especulação imobiliária, porque se for vender aquela área depois que a floresta estiver derrubada, se já estiverem crescendo capim e algumas cabeças de gado, o valor da propriedade muda por um fator muito grande. Sem dúvida, tem um impacto muito grande.

O que é complicado é que se pegarmos uma área de Cerrado, que foi fortemente impactado, uma parte desse desmatamento, obviamente que não deveria ser com a queima, é legal porque a propriedade de Cerrado precisa manter só 20% das suas áreas como reserva legal. É diferente da Amazônia, que precisa manter 80% da sua área como vegetação nativa. Nós temos a legislação para reverter isso, mas, de novo, é a questão da implementação dessa legislação e da força econômica e política contrária à sua implementação.

IHU – Por que deveríamos nos preocupar com o declínio brutal da biodiversidade?

Carlos Joly – Vamos falar de um processo que está acontecendo em várias regiões do mundo. Alguém já imaginou o impacto para todos os biomas e também produtivo do ponto de vista econômico, se perdermos os polinizadores? É algo que está acontecendo e em alguns países há um declínio considerável da população de polinizadores. Há vários fatores envolvidos: desde o uso de agrotóxicos até o aumento de temperatura; a ventilação de colmeias depende muito da temperatura externa.

Daí vão dizer: “Ah, mas a soja é uma espécie autopolinizada”. Sim, mas quando tem um polinizador presente, aumenta-se cerca de 18% a produção. Não é uma coisa marginal, mas muito significativa. Para o café é mais ou menos o mesmo percentual. Para o maracujá é 100%, porque se não tiver polinizador, não tem a produção. E precisam ser abelhas nativas, que tenham corpo maior e que vibrem muito as asas – em São Paulo chamamos de Mamangava. Essas abelhas são fundamentais no caso do maracujá. Quando conseguimos chegar ao produtor e mostrar esses benefícios, ganhamos o apoio deles.

Biodiversidade e polinizadores

O que é preciso fazer? É necessário ter áreas de vegetação nativa que vão manter a população de polinizadores. No momento de florada da soja, principalmente as abelhas terão uma quantidade de alimento, essa população vai crescer muito e ser efetiva nessa polinização. Mas acabou a florada da soja e vão levar alguns meses até a próxima florada. Nesse meio tempo, como manter essas populações? Daí a importância das áreas nativas, porque teremos espécies florescendo o tempo todo, as populações serão menores, mas vão estar presentes. No momento que houver outra florada, essa população crescerá, responderá à disponibilidade de alimentos e fará a polinização efetiva. O mesmo no caso de laranjas ou café. Com isso, começamos a mostrar que manter uma área de reserva legal não é contraproducente; ela vai contribuir para a produção.

Importância das APPs

Manter as Áreas de Preservação Permanente – APPs, além de manter as populações de polinizadores, dará uma estabilidade de diminuir a erosão e o assoreamento, o que vai diminuir os casos de enchentes, porque um rio assoreado causa enchentes. No Rio Grande do Sul, vocês viveram essa situação de perto e conheceram muito bem as suas consequências.

Se conseguirmos manter o rio dentro do seu canal, com suas variações de cheias e baixas, haverá mais água disponível e diminuirá a probabilidade de enchentes e alagamentos. Eu trabalhei com restauração de mata ciliar por dez anos no fim da década de 1980, e vimos a desgraça que é o assoreamento.

IHU – Como fazer com que os países saiam da abstração das declarações institucionais e apresentem números e objetivos ao que se comprometeram na COP15?

Carlos Joly – E eu vou mais adiante… e que não fique só no papel. Não é fácil. No Brasil, há a vantagem de termos uma comunidade científica nessa área ambiental de maneira geral, seja na área de mudanças climáticas, seja na área da biodiversidade. Ela é muito forte e bem-conceituada internacionalmente, e que tem disponibilidade de trabalhar buscando soluções com o governo e com o setor privado, o que é um diferencial para o país, mas que é subutilizado.

Em 2017, criamos a Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, de lá para cá produzimos o primeiro relatório brasileiro de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos. Depois, produzimos relatórios temáticos de restauração, de polinização, de clima, de água, de diversidade e conhecimentos tradicionais e indígenas de biodiversidade e, mais recentemente, sobre a área costeira e marinha, um de agricultura e biodiversidade e um de espécies exóticas invasoras. Tudo isso foi feito de forma voluntária pelos pesquisadores.

Quando começamos a elaborar o primeiro relatório, havia um grupo de 25 pesquisadores aproximadamente, pessoas que já estavam trabalhando em relatórios do IPBES. Elas disseram: “Nós também temos a capacidade de produzir um relatório brasileiro, porque isso foge do escopo das Nações Unidas, que não podem descer no nível nacional jamais – isso é responsabilidade dos países”. Levamos três anos para produzir o primeiro relatório brasileiro, trabalhando de forma totalmente voluntária e os outros da mesma forma. E trazemos essas informações para os tomadores de decisão.

Produzimos esses relatórios, que geralmente são algo volumoso, com mais de 300 páginas, mas elaboramos um sumário para os tomadores de decisão escrito por jornalistas em conjunto com os pesquisadores. Isto foi feito para que haja uma linguagem para o público não acadêmico, voltada para os membros do Congresso Nacional, técnicos e administradores dos Ministérios do Meio Ambiente, de Ciência e Tecnologia e de Relações Exteriores, no nível estadual das secretarias de meio ambiente.

Subutilização da comunidade científica

Enfim, tivemos o azar de terminarmos o primeiro conjunto de relatórios quando houve uma mudança de governo, o que tornou muito mais difícil trabalhar no nível federal. Mas sempre precisamos lembrar que os técnicos, o staff permanente dos ministérios, é muito capacitado. Mudou o ministro, mas as pessoas que põem a mão na massa de fato são técnicos extremamente especializados.

Se pegarmos o ICMBio ou o Ibama, em qualquer um desses órgãos federais têm equipes muito boas. Então essa discussão passou a ser só com essas equipes e assim se espera uma mudança para melhor, para tentar levar isso para um nível político mais elevado. Em São Paulo, trabalhamos muito com a Secretaria de Meio Ambiente com esses subsídios. São subexploradas a vontade, a disponibilidade e a qualidade da comunidade científica em contribuir para que consigamos cumprir com as metas.

O documento Estratégia e Plano de Ação Nacionais para a Biodiversidade – EPANB foi discutido com grupos setoriais. Ele idealmente deveria ter uma versão reformulada, apresentada e discutida em um workshop conjunto, onde tem representante de todos os grupos que discutiram e depois passar para a Comissão Nacional de Biodiversidade. Não deu tempo, daí aceleramos o processo para de fato termos uma estratégia e um plano condizentes e aplicáveis à realidade brasileira. Não adianta colocar metas que não são viáveis.

IHU – Parece que uma das questões centrais neste debate é o financiamento das ações de mitigação à crise climática global e de proteção e renovação da biodiversidade. Como superar esses desafios, já que o valor estimado para a restauração da biodiversidade no Sul global é da ordem dos 200 bilhões de dólares até 2030?

Carlos Joly – O número está certo e realmente é muito pouco. Com o Protocolo de Kyoto, tivemos o primeiro protocolo na área climática, que colocou na pauta metas específicas. Convenção é algo sempre com uma linguagem bastante fluída, e os Protocolos são aqueles que colocam os “dentes das plataformas”, são os que de fato têm impacto para os países. Mas desde o Protocolo de Kyoto e, cinco anos depois, reforçado na COP10 no Japão, as Metas de Aichi foram aprovadas. O acordo era que os países desenvolvidos aumentariam a sua contribuição – seja para a mitigação, seja para a biodiversidade ou mudanças climáticas – em 0,7% para 1% do PIB. Essa era a projeção até 2020. Quando chegamos em 2020, a contribuição dos países desenvolvidos era 0,6%, ou seja, ela caiu. Essa é a discussão mais pesada na COP do Clima e na COP da Biodiversidade. O ponto é a questão do financiamento.

Junto com o que foi aprovado em dezembro de 2022, já pensando nessa questão do financiamento, foi criada, dentro do Global Environment Facility – GEF (o braço ambiental do Banco Mundial, que financia ações da área ambiental), uma divisão específica dentro da área de biodiversidade. Isso foi proposto lá no Canadá e implementado ainda em 2023, então esse mecanismo está colocado, mas é óbvio que precisa do aporte de recursos para ser viabilizado. A China, ainda em 2020, quando a COP deveria ter acontecido, fez a proposta da criação de um fundo e criou um fundo com um certo recurso. Essas ações estão se fundindo, criando o que seria um grande fundo para a biodiversidade.

Relutância dos países ricos

Mas a relutância dos grandes países em contribuir para esses fundos é algo inacreditável. Enquanto temos alguns países que de fato dão uma contribuição muito maior do que 1% do seu PIB para a área ambiental (os países nórdicos basicamente, como a Noruega, que é um spread dentro dessa área), outros países têm uma dificuldade muito grande de contribuir.

O recurso do IPBES vem de doações voluntárias. No primeiro trabalho do IPBES, de 2014 a 2019, 85% dos recursos vieram da Noruega, e os Estados Unidos entraram com um pouquinho. O Brasil entrou com as contribuições que sempre faz, em que recebemos e organizamos reuniões aqui. E [a organização das reuniões] é uma necessidade, então, financia-se. É uma maneira de contribuir. Nós nunca entramos com dinheiro, isso está fora de cogitação.

De novo, lá em Cali essa discussão será bastante pesada na segunda semana da COP, onde estarão presentes mandatários, primeiros-ministros, presidentes, que é a semana em que eles batem o martelo. Na primeira semana ocorrem as negociações de como está sendo implementada e feita essa prestação de contas. Depois, tem o que chamam de high-level week, que é quando os mandatários estão presentes para assinarem de fato o que seus negociadores se comprometeram a fazer. Eu espero que consigamos organizar isso de forma mais eficiente, tanto na área de biodiversidade quanto na área do clima, e que façamos a diferença em relação às necessidades de conservação.

IHU – Professor, há uma questão que tem aparecido como controversa na mesa de discussões. É a proposta de mecanismo multilateral de compartilhamento de representações digitais dos materiais genéticos de plantas, animais e microrganismos, um banco de dados digitais de materiais genéticos (o que tem sido colocado como “legalização da biopirataria” por alguns cientistas). Como avalia essa proposta? De que forma isso pode aprofundar a desigualdade no acesso a medicamentos, por exemplo?

Carlos Joly – Isso realmente é um assunto delicadíssimo. Na teoria, ele deveria estar resolvido pelo Protocolo de Nagoia, mas como o Protocolo não fala especificamente e não previu a questão das sequências genéticas, ficou uma “área cinzenta”, onde cada um interpreta de acordo com seus interesses. Isso precisa ser definido. Os bancos já existem se pensarmos, por exemplo, em quem pesquisa genoma humano. Há um esforço internacional para que todas as sequências que foram sendo identificadas fossem colocadas em um banco até que se completar o genoma e que fosse propriedade de todo mundo.

Temos o GenBank, que é um banco em há depósitos de sequências genéticas de microrganismos a vertebrados e plantas com flores (angiospermas, antes chamadas de plantas superiores). A informação genética não permite uma pirataria diretamente, se não tem a ligação do que aquele gene ativa ou produz, ou leva à produção de determinada molécula, que, aí sim, pode ter interesse para as indústrias farmacêutica, alimentícia, cosmética, com diferentes usos econômicos.

Protocolo de Nagoia

Eu não acredito que usando as regras do Protocolo de Nagoia isso seja um problema. Precisamos lembrar que o Protocolo de Nagoia faz com que, se uma farmacêutica identifica ou isola a molécula de uma planta ou animal brasileiro e consegue utilizá-la para a produção de um fármaco de grande valor econômico (isto é, um fármaco para doenças dos países desenvolvidos), ninguém está pensando ou está preocupado em produzir remédios para malária ou para a doença de chagas, porque isso é doença de pobre, não vai dar dinheiro e isso fica para a pesquisa acadêmica.

Um exemplo: pesquisadores da USP de São Carlos, da Unicamp e do Instituto Butantan identificaram, cerca de 15 anos atrás, que uma molécula presente no veneno da Jararaca pode ser utilizada na produção de remédios de controle de pressão. Como era feito antigamente, eles descreveram e fizeram a parte química, e um químico de uma multinacional olhou para aquela estrutura e falou que era algo que poderia dar muito dinheiro. E todos os remédios que temos hoje utilizam essa molécula, e o Brasil não ganhou nenhum dinheiro com isso. Isto mudou completamente com o Protocolo de Nagoia.

Biopirataria atende aos interesses dos países ricos

Com o Protocolo de Nagoia, estando demonstrado que aquela molécula foi obtida de uma planta, microrganismo, vertebrado, qualquer organismo brasileiro, o Brasil passa a ter direito sobre a repartição de benefícios. Acabou essa discussão porque é fácil identificar a origem das moléculas. Todos os que trabalham com as moléculas sabem rapidamente identificar de que família de plantas e de que gênero veio. É fácil chegar às espécies, saber a distribuição delas e conseguir demonstrar isso.

Se esse sequenciamento seguir essas regras, sendo possível sempre vincular qualquer coisa derivada do sequenciamento de uma espécie brasileira, o Brasil automaticamente passará a ter direito. Mas é isso o que os países desenvolvidos não querem, e por isso a utilização dessa zona cinzenta para defender os interesses deles. Eu acredito que, assim como o Protocolo de Nagoia acabou sendo aprovado, e a delegação brasileira teve uma importância fundamental nisso em 2010 para aprovar, isso mostra também o contraste do Brasil internacional e do Brasil nacional. O Brasil internacional foi um dos responsáveis pela aprovação do Protocolo de Nagoia em 2010 e é um dos países mais interessados nele.

Nós não conseguimos ratificar esse protocolo. Só fomos ratificá-lo durante o governo Bolsonaro. É uma das pouquíssimas coisas boas da área ambiental e foi feito sem nenhuma participação do Executivo.

O Brasil nacional é descolado do Brasil internacional

Em meados do segundo ano do governo Bolsonaro, os ex-ministros do Meio Ambiente fizeram uma carta e vieram a público contra o desmonte que estava ocorrendo. Nesse momento em que eles se reuniram, também se encontraram com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Nessa reunião eles decidiram várias coisas. Uma delas é que as casas não dariam andamento nos projetos de lei anti meio ambiente, os projetos ficariam nas comissões e não seriam chamados a plenário e levados à votação. Todos se comprometeram com a ratificação do Protocolo de Nagoia.

Dilma Rousseff mandou o Protocolo de Nagoia nas vésperas da Rio+20, em 2012 e até 2022 não tinha sido criada a comissão para analisar o Protocolo. Em 45 dias, essa comissão foi criada, o Protocolo foi aprovado pela Comissão, foi ao plenário da Câmara e aprovado; em seguida, foi aprovado no Senado. Então o Senado comunicou ao Itamaraty a aprovação, e esse, por sua vez, fez uma nota dizendo que, a partir daquele momento, éramos membros do Protocolo de Nagoia. Normalmente tem um decreto presidencial que reconhece a aprovação. Não tivemos isso, mas tem a mesma validade. O Brasil internacional está muitas vezes descolado do que conseguimos fazer aqui dentro.

Com tudo isso, quero dizer que eu entendo que essas sequências estão protegidas, mas isso precisa ficar por escrito, não dá mais para ficar na interpretação de cada um e acredito que vão conseguir resolver dessa vez.

Outro lado da moeda: ausência da indústria farmacêutica brasileira

O outro lado disso é a indústria farmacêutica. Nós não temos indústria farmacêutica no Brasil, a nossa indústria farmacêutica só trabalha com a cópia de medicamentos cuja patente venceu e cria os genéricos para a nossa utilização – graças a Deus fazem isso, não sou contra.

O que ocorre é que não tem nenhuma indústria e nenhuma subsidiária de multinacional fazendo pesquisa com moléculas da biodiversidade brasileira. Porque nós temos uma fase inicial, que é o pessoal que faz química de produtos naturais, em que conseguimos identificar as moléculas que são de interesse, fazer a estrutura tridimensional da molécula – algo bastante sofisticado – e sintetizar a molécula. Mas quando chega a esse ponto, é quando deveria sair da pesquisa e deveria entrar no setor produtivo. A partir desse estágio vai levar dez anos, pelo menos, para fazer todos os testes de laboratório, de culturas in vitro, tem que usar animais também (não acho isso uma boa prática), porque as culturas precisam passar por organismos inteiros e será necessário usar os ratos para testes e, depois, serão usados humanos como voluntários. Após passar por tudo isso, se aprovado, é possível colocar o produto à venda. Essa parte é extremamente custosa e leva dez anos e ninguém quer investir nisso.

Uma das razões da falta de investimentos é porque lá atrás, em 2002, nós criamos uma medida provisória que dificultava o acesso aos genéricos e chamava todo mundo de biopirata, inclusive os pesquisadores. Então, todas as indústrias que tinham investido alguma coisa até aquele ponto saíram, porque não conseguiam legalizar perante aquela legislação o que tinha sido coletado. Essa medida provisória só foi perder valor no governo Dilma, quando aprovaram a Lei da Biodiversidade, a Lei de Acesso a Recursos Genéticos. A lei é muito boa, mas o decreto que a regulamenta não é bom e seria mais fácil de ser alterado porque é um decreto assinado pelo Presidente da República. Deveria ser modificado.

Oportunidade perdida

Por isso, não usamos praticamente nada da riqueza da nossa biodiversidade. No século XXI, nós temos apenas a patente de um remédio, que a Aché desenvolveu o Acheflan, que é feito com uma planta brasileira. Foram feitos todos os testes e chegou ao mercado como um anti-inflamatório, semelhante a outros que já existiam no mercado. Só. Com toda essa riqueza que nós temos. Ah, vão dizer, “mas precisamos proteger”. Sim, precisa proteger, mas usar de forma sustentável, é o que a própria Convenção diz, e repartir os benefícios – são os três pilares da Convenção. Nós estamos atuando apenas na conservação. É muito pouco.

Nós temos muito mais medicamentos comercializados in natura, como os chás, que funcionam e estão todos baseados na medicina tradicional, e são muito bons, mas da indústria farmacêutica tradicional não temos praticamente nada.

IHU – Já se planeja rever as metas, mirando 2050. Temos tempo para isso ou já é tarde demais? O senhor comentou antes também do longo processo a partir da implementação de mudanças transformativas. Há espaço para essas mudanças também?

Carlos Joly – Nós temos tempo. O impacto inicial é relativamente rápido, faz a “abolição da escravatura” e se tem a libertação de todos os escravos, com isso vão se criar outros mecanismos de escravidão, mas 80% do problema é resolvido com essa decisão. Então, se tomarmos a decisão de eliminarmos os combustíveis fósseis, não será de hoje para amanhã. Temos todo um processo e uma previsão de transição energética, que ainda não inclui o abandono dos fósseis, pelo menos não objetivamente, mas creio que ainda temos tempo de implementar essas alterações.

Mas podemos estar errados como o pessoal de mudanças climáticas errou. O impacto das mudanças que sentimos hoje é muito mais severo; era o que se imaginava que aconteceria de 2030 para frente. O Rio Grande do Sul viveu um gigantesco impacto, a Amazônia vive uma seca gigantesca nunca registrada. A potência dos furacões na região do Caribe, América Central e Estados Unidos é assustadora. Discutia-se, há dez dias, antes do furacão Milton de fato chegar, a criação de uma escala número seis para a classificação que hoje vai até cinco. Então, o processo todo se acelerou e ainda não conseguimos fazer essas avaliações na área de biodiversidade. É um problema que nós, como pesquisadores, temos que colocar a cabeça para trabalhar e ver resultados. É muito pouco o que sabemos.

Trabalho de campo

A minha equipe trabalha na vertente da Serra do Mar, que é uma cidade litorânea no nível do mar, até 1.200 metros de altitude do mar. A cada 100 metros, temos quatro parcelas do tamanho de um campo de futebol cada, onde medimos e identificamos todas as áreas e estamos acompanhando a cada dois anos. Obviamente tem várias outras pesquisas ocorrendo simultaneamente, mas essa mostra se a floresta deixou de ser um sumidouro de carbono para passar a ser uma fonte de carbono. Conseguimos ver algum efeito que possamos relacionar? Não.

Talvez no processo de ciclagem em que já percebemos que na área de 1.200 metros a temperatura é quatro graus menor do que no nível do mar. Toda folha, galho e matéria orgânica que cai leva mais tempo para reciclar. O estoque de carbono que fica no solo é muito grande, junto com nitrogênio. Esses estoques estão diminuindo, ou seja, parte daquele carbono está sendo usado e por isso que conseguimos ver que lá em cima, onde medimos a interação da floresta com a atmosfera, ela emite e absorve, ao longo de um ano, mais ou menos a mesma quantidade e está zerada. Mas a tendência, com o aquecimento, é essa ciclagem ser mais rápida e mais CO2 ser jogado na atmosfera. Eu posso publicar um paper? Ainda não, pois não tenho dados, é só uma projeção. Podemos projetar a partir do quanto aumentou nesse período e dizer que até 2050 isso vai ter aumentado tanto. Isso é coisa de modelagem que sempre precisamos olhar com mais cuidado. Ainda não temos esses dados.

Impactos imprevisíveis

Ao mesmo tempo, nesse pedacinho de Serra do Mar que trabalhamos, existem pelo menos 20 espécies de pequenas goiabeiras; são plantas da família das goiabeiras que não passam de dois metros de altura. E se uma dessas espécies deixar de existir, qual será o impacto? Não sabemos. Mas, por alguma razão, tem. Agora que tem uma parte do grupo trabalhando a questão de polinização, aparentemente essas espécies florescem todas em períodos diferentes, isto é, o ano todo tem flor disponível. Portanto, se perder uma espécie, vamos ficar com um buraco.

Nesse momento não haverá alimento disponível para essas espécies de abelha que polinizam as plantas. Mas ainda é teoria. É ótimo do ponto de vista da academia, há questões bastante importantes ligadas a isso, mas ainda não podemos dizer que vai acontecer. Isso funciona para qualquer espécie de planta ou animal, a não ser que seja eliminado um predador de topo, que é o problema de leões, tigres, onças, porque se retira o controle populacional dos grupos abaixo e se tem mudanças de população.

No estado de São Paulo, por exemplo, a capivara tornou-se um enorme problema, porque se reproduzem com muita rapidez, se multiplicam porque não tem mais o predador. Isso foi substituído em parte pelo homem com a caça, mas hoje, com a vigilância pesada que há, não se caça e essas populações são transmissoras de doenças e surge esse tipo de problema também.

IHU – No fundo, o que está em jogo globalmente? É o futuro da biodiversidade apenas que está na berlinda ou é o nosso próprio futuro?

Carlos Joly – Essa é exatamente a questão: será que somos uma das espécies ameaçadas de extinção? O relatório global do IPBES-2019 diz que um milhão de espécies estará ameaçada de extinção até o fim do século. Será que o homo sapiens é uma dessas espécies ameaçadas? Nó não sabemos. Eu acredito que não, porque o homem, ao mesmo tempo, desenvolveu várias tecnologias que permitem a continuidade da vida. Mas se repetidamente tivermos grandes impactos, secas e enchentes, haverá uma diminuição da produção de alimentos por conta da mudança de temperatura; o pessoal que trabalha com espécies agrícolas têm feito as projeções do que pode acontecer. Teremos ultrapassado os 10 bilhões de habitantes do planeta. É um planejamento muito difícil de ser feito. Pessoalmente, creio que não seremos extintos, mas isto não nos dá o direito de ignorar as outras 999 mil que estarão ameaçadas de extinção.

Carlos Joly (Foto: Agência Fapesp)

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