EUA: O que não tem conserto, nem nunca terá

À véspera das urnas, EUA parecem mais divididos do que nunca. Mas por trás da polarização, há identidade. Nem Kamala, nem Trump querem enfrentar desigualdade, rentismo ou guerra – três marcas cruciais de um império decadente

Por Maurizio Lazzarato | Tradução: Antonio Martins, em Outras Palavras

Um duplo processo político e econômico, contraditório e complementar, está em andamento: o Estado e a política (norte-americana) afirmam energicamente sua soberania por meio da guerra (inclusive guerra civil) e do genocídio. Enquanto isso, ao mesmo tempo, mostram sua total subordinação ao novo rosto que o poder econômico adquiriu após a dramática crise financeira de 2008, promovendo uma financeirização sem precedentes, tão ilusória e perigosa quanto a que produziu a crise das hipotecas subprime. A causa do desastre que nos levou à guerra tornou-se um novo remédio para sair da crise: uma situação que só pode ser um presságio de outras catástrofes e guerras. A análise do que ocorre nos Estados Unidos, o coração do poder capitalista, é crucial, pois é precisamente de seu seio, de sua economia e de sua estratégia de poder, que partiram todas as crises e todas as guerras que assolaram e assolam o mundo neste século.

O núcleo do problema reside no fracasso do modelo econômico e político dos Estados Unidos, que o conduz necessariamente à guerra, ao genocídio e à guerra civil interna – por ora apenas latente, mas que já se materializou uma primeira vez no Capitólio, ao final da presidência de Donald Trump. A economia norte-americana já deveria ter sido declarada em falência há tempos, se fossem aplicadas as regras impostas a outros países. No final de abril de 2024, a dívida pública total, denominada Total Treasury Security Outstanding, ou seja, a soma dos diversos títulos e obrigações de dívida pública, ascendia a 34,617 trilhões de dólares. Doze meses antes, essa soma era de 31,458 trilhões. Em um ano, a dívida pública aumentou em 3,160 trilhões de dólares, quase equivalente ao nível da dívida pública da Alemanha, a quarta maior economia mundial [e cerca de três vezes maior que a brasileira]. Mas é sua progressão exponencial que agora está completamente descontrolada: um aumento de 1 trilhão a cada cem dias. Hoje, já estamos em 1 trilhão a cada 60 dias.

Se há uma nação que vive às custas do mundo inteiro, são os Estados Unidos. O resto do mundo paga as dívidas que eles geram (com os gastos desmesurados do “american way of life” — do qual, evidentemente, apenas uma parte dos norte-americanos se beneficia — e seu enorme aparato militar) de duas formas principais. Através do dólar, a mercadoria mais negociada do mundo, os Estados Unidos exercem uma senhoriagem sobre todo o planeta, pois sua moeda nacional funciona como moeda do comércio internacional, o que lhes permite endividar-se como nenhum outro país. Após a crise de 2008, os EUA encontraram outra forma de transferir os custos de sua dívida para outros, por meio de uma reorganização das finanças.

Capitais (principalmente de aliados e, entre eles, especialmente da Europa) são transferidos para os Estados Unidos para pagar as crescentes taxas de juros da dívida norte-americana, graças aos fundos de investimento. Após a crise financeira, estabeleceu-se uma concentração de capital, graças a quinze anos de quantitative easing (emissão de dinheiro a custo zero) operado pelos bancos centrais. Surgiu um oligopólio em escala que o capitalismo nunca havia conhecido. Com a ajuda política dos governos de Obama e Biden, um grupo muito reduzido de fundos de investimento norte-americanos possui ativos (ou seja, captação e gestão de poupança) entre 44 e 46 trilhões de dólares. Para ter uma ideia do que significa essa centralização monopolística, pode-se comparar com o PIB do Brasil – 2,3 trilhões de dólares – ou de toda a União Europeia – 18 trilhões de dólares. Os “Big Three”, como são conhecidos os três maiores fundos de investimento (Vanguard, Black Rock e State Street), constituem, de fato, uma única entidade, pois a propriedade dos fundos é cruzada e difícil de atribuir.

As fortunas desse “hipermonopólio” foram construídas sobre a destruição do Estado Social. Para as aposentadorias, a saúde, a educação ou qualquer outro serviço social, os norte-americanos são obrigados a contratar seguros de todo tipo. Agora, cabe aos europeus e ao resto do mundo ocidental (mas também à América Latina) colocarem-se nas mãos dos fundos de investimento, ao ritmo ditado pelo desmantelamento dos serviços sociais (o salário indireto garantido pelo Estado de Bem-estar social transforma-se em uma carga, um custo e uma despesa com que cada um deve arcar, para garantir sua própria reprodução). Os Estados Unidos têm um duplo interesse em continuar e intensificar o desmantelamento do welfare state em todo o mundo: econômico, porque induz a investir nos títulos dos fundos de investimento (que, por sua vez, servem para comprar títulos do Tesouro, obrigações e ações de empresas americanas) e político, porque a privatização dos serviços significa individualismo e financeirização do indivíduo, que se transforma de trabalhador ou cidadão em pequeno operador financeiro (e não “empreendedor de si mesmo”, como prega a ideologia dominante). As políticas fiscais também convergem para o projeto de anular o Estado Social. Nem os ricos nem as empresas pagam impostos, e a progressividade dos mesmos é reduzida a zero; portanto. Não há mais recursos para os gastos sociais e, em consequência, incentiva-se a compra de serviços privados que acabam nos fundos de investimento. O projeto de destruir tudo o que foi conquistado graças a duzentos anos de lutas está, finalmente, se concretizando.

A poupança norte-americana já não é suficiente para alimentar o circuito de renda, de modo que os fundos de investimento estão à espreita da poupança europeia. Por exemplo, os 35 trilhões de dólares que o ex-primeiro ministro italiano Enrico Letta gostaria de destinar a um grande fundo de investimento europeu funcionariam segundo os mesmos princípios: produzir e distribuir renta, gerando as mesmas enormes diferenças de classe encontradas nos Estados Unidos. A razão para o rápido e incrível empobrecimento da Europa pode ser rastreada na estratégia econômica conduzida pelo aliado norte-americano. O diferencial negativo em relação aos Estados Unidos passou de 15% em 2002 para os atuais 30%. Quanto mais a Europa se deixa roubar, mais suas classes políticas e midiáticas se tornam atlantistas, belicistas, submissas àqueles que as estão marginalizando de forma dramática, empurrando-as para a guerra contra a Rússia (guerra que, aliás, nem sequer são capazes de sustentar). Os Estados europeus substituíram a China e o Leste Asiático na compra de títulos do Tesouro norte-americano e, ao manterem a demolição do Estado Social, obrigam a população a contratar apólices de seguro que acabam nas contas dos fundos de investimento. Dessa forma, o euro se converte em dólar, salvando assim a dolarização da ameaça representada pela recusa do Sul em submeter-se ao domínio da moeda americana.

Essa transferência de riqueza também afeta a América Latina, onde Milei é a vanguarda da nova financeirização que visa privatizar tudo. O neofascismo de Milei é um laboratório para adaptar as técnicas de saque americanas adotadas pela Europa, Japão e Austrália às economias mais fracas. Milei não encarna o fascismo clássico; ele representa o novo fascismo “libertário” da renda e dos fundos de investimento, uma cópia ideológica desajeitada do fascismo do Vale do Silício, nascido de suas empresas “inovadoras”.

A política econômica de Biden, de repatriação de indústrias que haviam sido deslocalizadas, empobrece ainda mais o restante do mundo e, sobretudo, a Europa, que vê empresas estabelecidas em seu território tentarem cruzar o Atlântico. As grandes facilidades fiscais necessárias são financiadas com dívida, assim como com dívida são financiadas as bombas (de bilhões de dólares) que os Estados Unidos continuam a enviar para a Ucrânia e Israel. Portanto, ironicamente, a Europa paga por uma política projetada para reduzir ainda mais sua capacidade produtiva, assim como paga duas vezes pela guerra e pelo genocídio: uma vez com a compra de títulos do tesouro norte-americanos e com as apólices de seguro que permitem aos Estados Unidos se endividarem; e outra vez com a imposição de construir uma economia de guerra (aceita e acelerada por classes políticas inclinadas ao suicídio).

Como dizia Kissinger: “Ser inimigo dos Estados Unidos pode ser perigoso, mas ser amigo é fatal”. Essa enorme liquidez permitiu que os fundos comprassem, em média, 22% de todo o índice Standard & Poor’s, que contém as 500 principais empresas listadas na bolsa de Nova York. Os fundos de investimento já estão presentes nas empresas e bancos mais importantes da Europa (principalmente na Itália, onde estão sendo vendidos em ritmo acelerado), e suas especulações praticamente decidem o destino da economia, determinando as decisões dos “empreendedores”.

Alguém delirava sobre a autonomia do proletariado cognitivo, sobre a independência da nova composição de classe. Nada mais distante da realidade. Quem decide onde, quando, como e com qual força de trabalho produzir (assalariada, precária, servil, escravizada, feminina, etc.) é, mais uma vez, quem possui os capitais necessários, quem tem a liquidez e o poder para isso (hoje em dia, sem dúvida, os “Big Three”). Com certeza, não é o proletariado mais fraco dos últimos dois séculos. Esqueçam autonomia e independência; a realidade de classe é a subordinação, a submissão e a sujeição, como nunca antes na história do capitalismo. Ser “trabalho vivo” é uma desgraça, pois é sempre um trabalho comandado, como o do meu pai e do meu avô. O trabalho não produz “o” mundo, mas o “mundo do capital”, que, até prova em contrário, é algo muito diferente, pois é um mundo de merda. O trabalho vivo só pode conquistar autonomia e independência na recusa, na ruptura, na revolta e na revolução. Sem isso, trata-se de uma impotência assegurada!

As lutas intestinas do capital financeiro norte-americano

Em um artigo na Dinamopress, Luca Celada cita Robert Reich, qualificando-o de “progressista” porque, como ministro do governo de Bill Clinton e bom democrata, ele intensificou a financeirização (e a consequente destruição do welfare state) e cavou abismos de desigualdade de classe, estabelecendo bases sólidas para o desastre de 2008, origem das guerras atuais. A ação de Musk e Thiel, empresários do Vale do Silício e aliados de Trump, é vista como a ameaça de um novo monopólio, enquanto a centralização inédita de poder dos fundos de investimento, que há quinze anos fazem o que querem com a ativa cumplicidade dos democratas, criando juntos as condições para a próxima catástrofe financeira, não é considerada seriamente.

“Talvez não seja totalmente coincidência que a ‘entrada na política’ dos magnatas do Vale do Silício tenha coincidido com os primeiros indícios de uma ação regulatória mais vigorosa por parte do governo Biden-Kamala, incluindo as primeiras verdadeiras ações antitruste contra gigantes como Google, Amazon e Apple, apresentadas pela presidente da Comissão Federal de Comércio, Lina Khan (cuja tese de graduação foi dedicada ao monopólio da Amazon), e pelo igualmente combativo assistente do ministro da Justiça, Jonathan Kanter. Não é surpreendente, então, que alguns barões do Vale do Silício estejam apostando no candidato mais disposto a lhes renovar um cheque em branco. E até mesmo a nomear alguns dentre eles para seu próprio governo.”

Kamala Harris está atada de pés e mãos à vontade dos fundos de investimento, porque os acionistas de referência de todas (absolutamente todas) as empresas que Celada menciona são precisamente os fundos. Não vejo como a candidata poderia se opor ao seu monopólio, do qual depende a salvação dos Estados Unidos e de seu partido (os “democratas pelo genocídio”…). A justificativa para a cegueira em relação aos “progressistas” deve ser buscada no neofascismo de Trump. Se ele for eleito, passaremos da frigideira para o fogo; mas não devemos esquecer que, com a eleição de Biden, já caímos da frigideira para o fogo da guerra e do genocídio. Garantiram-nos que a violência nazista era apenas um parêntese, mas os democratas nos lembraram que o genocídio é, de fato, uma das ferramentas com as quais o capitalismo age desde seus primórdios. A democracia norteamericana está fundada sobre o genocídio e a escravidão. O racismo, a segregação e o apartheid são outro componente estrutural. A cumplicidade com Israel tem profundas raízes na história da “mais política” das democracias, segundo Hannah Arendt.

Os pequenos monopolistas, como Musk, mobilizaram-se porque o grande monopólio não os deixa respirar, mas estão completamente subordinados à sua lógica. Na verdade, é um conflito interno ao capital financeiro norte-americano: os pequenos monopolistas gostariam de representar os “espíritos animais” do capitalismo, contidos, segundo eles, pela aliança dos democratas com os grandes fundos de investimento. Enquanto promovem um fascismo futurista (novamente, nada realmente novo se pensarmos no fascismo histórico, onde o futurismo da velocidade, da guerra e das máquinas harmonizava-se sem problemas com a violência anti-proletária e anti-bolchevique), um transumanismo e um delírio ainda mais oligárquico e racista do que o das finanças dos fundos. Esses pequenos monopolistas, na verdade, estão de acordo com os grandes monopolistas na questão crucial: a propriedade privada, ou seja, o alfa e o ômega da estratégia do capital.

Seu programa comum é financeirizar tudo, o que significa privatizar tudo. Os problemas surgem na hora de dividir esse enorme bolo. Para compreender os limites da análise progressista, devemos aprofundar rapidamente o funcionamento da financeirização monopolística conduzida pelos fundos de investimento após 2008. A crise das hipotecas subprime era setorial e a especulação estava concentrada no setor imobiliário. Aqui, hoje, as finanças são, em contrapartida, onipresentes. De Obama a Biden, os governos democratas acompanharam a infiltração dos fundos em toda a sociedade: não há âmbito da vida que hoje não esteja financeirizado.

Financeirização da reprodução: fala-se muito sobre a centralidade da reprodução nos movimentos sociais, mas eles estão em um atraso abismal em relação à ação dos fundos de investimento, cuja precondição é a destruição do welfare state. Os democratas abandonaram qualquer pretensão de um novo Estado de Bem-estar social e apostam tudo na privatização de cada serviço social. Eles teorizaram isso abertamente: a democratização das finanças deve resultar na financeirização da classe média. Os fundos, facilitados de todas as maneiras possíveis pelos democratas, assegurariam um investimento financeiro seguro, de modo que os norte-americanos que compram os títulos produzidos por esses fundos deveriam obter, por meio deles, a renda e os serviços que o trabalho já não lhes garante (aqueles que podem arcar, pois os pobres, as mulheres solteiras e a grande maioria dos trabalhadores são excluídos: em uma pesquisa recente, revelou-se que 44% das famílias norte-americanas não conseguem cobrir uma despesa inesperada de 1.000 dólares).

Para Kamala Harris, a classe média chega apenas até aos que ganham pelo menos 400 mil dólares por ano. Um dado significativo para entender a composição social que os democratas têm como referência. O trabalho e os trabalhadores desapareceram completamente do horizonte dos democratas, assim como da “esquerda” em geral. O milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, replicado pelas finanças e que já fracassou em 2008, é hoje novamente proposto como a solução para a “questão social”. Repetimos: trata-se de um processo de financeirização do welfare state, pois os títulos e as apólices devem substituir os serviços prestados pelo Estado. Podemos citar também o caso italiano: diante da falta de investimento do Estado no território afetado pela crise climática, o ministro da Proteção Civil relançou a ideia de seguros obrigatórios contra inundações. Matteo Salvini interveio dizendo que “o Estado pode dar orientações, mas não vivemos em um Estado ético onde o Estado impõe, proíbe ou obriga a fazer”. Em vez disso, propôs uma nova lei para obrigar os empregados a investir parte de seu TFR (indenização por demissão) em fundos de pensão, para obter, ao final de sua carreira, uma aposentadoria complementar. Obviamente, sem entender qual a relação disso com os fundos norte-americanos (ingenuidade ou idiotice?), pois, na verdade, 70% acabariam convertidos em dólares nos Estados Unidos.

A financeirização transforma as empresas em agentes financeiros. E afeta também as empresas que geram lucros reais, que demitem pessoal e cujos enormes dividendos não são reinvestidos, mas, em grande parte, distribuídos aos acionistas ou utilizados para comprar suas próprias ações e aumentar seu valor, incrementando sua capitalização (que já não tem nenhuma relação com o que realmente produzem e vendem). Tudo isso anda de mãos dadas com a financeirização dos preços: não é o mercado (a relação entre oferta e demanda de bens) que estabelece os preços, mas as apostas dos operadores (por meio de derivativos), que não têm nenhuma relação com a produção ou o comércio real. Os preços são determinados por empresas financeirizadas que controlam os setores de energia, alimentos, matérias-primas, indústria farmacêutica, etc., a partir de uma posição de monopólio ou oligopólio absoluto (os principais acionistas dessas empresas são sempre os grandes fundos de investimento). A inflação que surgiu recentemente é resultado da especulação sobre os preços e não depende de maneira alguma do aumento dos salários ou dos gastos sociais. O conjunto dessas financeirizações que afetam a “vida” (embora o termo seja ambíguo) faz explodir as diferenças de renda e, sobretudo, de patrimônio, das quais são vítimas os trabalhadores e toda a população que não pode se permitir comprar os títulos.

O fracasso da governança neoliberal e a guerra

Essa afirmação do monopólio sanciona o fim do neoliberalismo e da ideologia de mercado, o que merece algumas observações. Falamos de ideologia quando nos referimos à competição, pois o processo de verticalização econômica continuou imperturbável pelo menos desde o final do século XIX. De fato, ele explodiu durante o neoliberalismo.

Primeira observação. Os fundos de investimento, como mencionado anteriormente, são hoje fundamentais para a centralidade do poder norte-americano, mais do que qualquer outra instituição. E os fundos precisam das políticas fiscais do governo (não taxar as finanças; sobrecarregar o trabalho com impostos), das regulamentações e das facilidades generosamente concedidas por Obama (presidente negro, mas em perfeita continuidade com o branco que o precedeu e o que o seguiu) e, de forma ainda mais decisiva, por Biden. Aqui surge um problema teórico e político: as finanças, que deveriam representar a modalidade mais abstrata do valor e a forma cosmopolita perfeitamente realizada do capitalismo, no Ocidente são comandadas e geridas por dispositivos que carregam a bandeira das estrelas e listras. Os fundos norte-americanos atuam em conjunto com os governos dos Estados Unidos, perseguindo seus interesses em detrimento do resto do mundo.

A moeda encontra-se na mesma situação. Não existe uma moeda supranacional; a moeda é sempre nacional, pois está estreitamente vinculada, especialmente o dólar, às políticas decididas pelo Estado que a emite. Pode-se dizer que a moeda e as finanças representam a tendência de sair dos limites territoriais dos Estados e, ao mesmo tempo, sua incapacidade de fazê-lo. A relação entre os Estados Unidos e os fundos de investimento organiza uma ação global que favorece poucos norte-americanos e suas oligarquias.

A segunda observação refere-se à leitura que costuma ser feita do neoliberalismo, que ainda é considerado vigente, quando, na verdade, está morto: assassinado pelos fascismos, pelas guerras e pelo genocídio. Seu ilustre predecessor, o liberalismo, sofreu o mesmo destino. Embora pretendesse evitar os pequenos inconvenientes que causara (as duas guerras mundiais e o nazismo…), terminou necessariamente por reproduzi-los. Grande parte dessa análise se deve à teoria da biopolítica de Michel Foucault, que exerceu uma influência nefasta no pensamento crítico. Foucault entende o neoliberalismo como uma teoria da empresa e sua subjetivação como um tornar-se “empreendedor de si mesmo”. Ele nunca menciona, nem mesmo de passagem, o crédito, a moeda e as finanças sobre os quais a estratégia capitalista foi construída desde o final dos anos 1960.

O principal instrumento da contrarrevolução é o “grande endividamento do Estado, das famílias e das empresas”, como diria Paul Sweezy, e não a produção. A empresa é uma ideologia e uma ideia ordoliberal que pertence ao Ocidente industrial, aos anos 1930 e ao pós-guerra: um mundo definitivamente morto. O ordoliberalismo vê na economia aquilo que causa a morte do “soberano” quando as finanças realizam um imenso monopólio (o soberano econômico). Mas, no contexto do capitalismo, o soberano econômico precisa se constituir por meio do “soberano” político (o Estado). A cabeça do soberano não foi cortada pela economia, mas desdobrada, fazendo da centralização do poder do capital e do Estado uma estratégia que teve enorme sucesso.

Foucault simplesmente confundiu uma época, assim como seus discípulos – como Dardot e Laval, entre outros – que reproduziram os erros de seu mestre. O mercado nunca funcionou como acreditavam Foucault e os ordoliberais, isto é, com base na concorrência. Ao contrário, sua verdade está representada pelo funcionamento das finanças, que estabelecem os preços a partir de um monopólio especulativo que nada tem a ver com a oferta e a demanda de bens reais (recentemente, o preço da energia aumentou dez vezes, mas sem nenhuma relação com sua disponibilidade real; o mesmo ocorre com os cereais, etc.). A subjetivação não está representada pelo empresário, mas pela ilusória transformação dos indivíduos (não de todos, como dissemos) em agentes financeiros. Para as finanças, a “população” e o mundo são compostos por credores, devedores e investidores em títulos, ações e bônus. A financeirização da classe média, promovida pelo acordo entre os democratas e os fundos de investimento, é a última quimera destinada a desaparecer no vazio no próximo colapso.

A guerra inevitável dos Estados Unidos

Hoje, o processo que nem mesmo foi vislumbrado pela biopolítica atinge seu apogeu. O crescimento, no Ocidente, é unicamente financeiro (enquanto no Sul global é real). Sua produção (o dinheiro que produz dinheiro, como dizia Marx, “a pereira que produz peras”) é uma ficção, uma fabricação de papel sem valor que, no entanto, tem efeitos reais. Os fundos elevam os preços das ações das empresas das quais são acionistas, com o objetivo de cobrar os dividendos que são distribuídos entre os acionistas. Não se trata de nova riqueza, mas apenas de apropriação, captura e roubo de um valor que já existe e que simplesmente se transfere do restante do mundo para os Estados Unidos. De uma perspectiva de classe, pode-se dizer que do trabalho ao capital especulativo. Se esse “roubo” da riqueza produzida no resto do mundo for interrompido, todo o sistema entrará em colapso.

O verdadeiro nome desse processo é renta. Seu circuito está garantido e assegurado pela dolarização, e é por isso que os Estados Unidos nunca poderão aceitar um mundo multipolar. Estão necessariamente obrigados ao unilateralismo, forçados a saquear seus aliados, porque o Sul global já não quer continuar funcionando como colônia (papel assumido completamente pela Europa, Japão e Austrália). As oligarquias que governam o Ocidente são fruto da financeirização e funcionam exatamente como a aristocracia do “Antigo Regime”. Hoje, portanto, é necessária uma nova noite de 4 de agosto de 1789, quando foram abolidos os privilégios da aristocracia feudal.

Os Estados Unidos estão em um beco sem saída: são obrigados a aumentar as taxas de juros para atrair capitais de todo o mundo; caso contrário, o sistema financeiro entra em colapso. Mas o próprio aumento das taxas estrangula a economia norte-americana. Quando as reduzem, como estão fazendo agora por motivos eleitorais (durante a campanha eleitoral, de fato, os democratas foram acusados de sufocar a economia), apenas os especuladores (principalmente os fundos de investimento) que apostam em sua evolução são beneficiados. Assim como a grande liquidez disponibilizada para a economia pelos bancos centrais nunca chegou à produção real, pois se deteve no setor financeiro, essa redução das taxas também não terá impacto na economia real, apenas ativará a especulação.

Os Estados Unidos são incapazes de sair do círculo vicioso da renda, por isso a guerra é a única solução, pelo menos desde 2008, quando ficou claro que a economia norte-americana se baseava na produção e distribuição de rentas financeiras. Daí a vontade de perseguir e expandir a guerra, de continuar financiando e legitimando o genocídio, de fazer com que os novos fascismos assumam o poder em todos os lugares. O futuro próximo parece ser esse, como confirma um documento de julho deste ano da Comissão de Estratégia de Defesa Nacional do Congresso norte-americano, onde se afirma sem rodeios que os Estados Unidos devem se preparar para a “grande guerra” contra o Sul global, com Rússia e China no centro. Nos próximos anos, será necessário mobilizar cada setor da sociedade, seguindo como modelo o que foi feito antes e durante a Segunda Guerra Mundial, para eliminar a ameaça à sua existência, que nunca foi tão grave desde 1945.

O escritor alemão Ernst Jünger diria que estão preparando a “mobilização total”. No entanto, têm um pequeno problema, já que a economia e a riqueza que impuseram são para poucos, enquanto muitos foram empobrecidos, marginalizados, precarizados, culpabilizados por sua condição. Agora, parecem perceber que precisam dos muitos, que é necessária uma força de trabalho “forte e preparada” para defender a nação e o espírito nacional… a economia e a propriedade dos pouquíssimos. Com um país mais dividido do que nunca, não podemos senão desejar boa sorte às oligarquias que promovem a mobilização total para a guerra que querem travar contra três quartos da humanidade e que, certamente, perderão – como estão perdendo no Oriente Médio e na Europa Oriental. É apenas uma questão de tempo.

Imagem: Nicole Eisenman, O Triunfo da pobreza (2009)

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