No congresso da Abrasco, Élida Graziane faz alerta duro sobre a ameaça de cortes no SUS e outras áreas sociais. E propõe saída ousada: enfrentar os injustos benefícios fiscais da saúde privada e os gastos com juros da dívida pública
por Guilherme Arruda, Outra Saúde
Ontem (6/11), o último dia das atividades do 5º Congresso de Política, Planejamento e Gestão em Saúde, em Fortaleza (CE), ocorreu em paralelo a uma reunião do Comitê de Política Monetária (COPOM) do Banco Central (BC) que definiu um novo aumento de 0,5% na taxa básica de juros do país. A avaliação mais precisa dessa fatídica decisão para os rumos do país foi feita no próprio 5º PPGS por Élida Graziane, professora da FGV e procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo.
“O custo desse aumento nos juros para as contas públicas, de cerca de R$40 bilhões, é o mesmo que a proposta de corte nos gastos sociais supostamente quer economizar. E vai bastar outro ataque especulativo como o que estamos vivendo para o BC aumentar a taxa de juros de novo”, ela denunciou na mesa redonda “Novo Arcabouço Fiscal e a Reforma Tributária: Implicações no Financiamento do SUS e da Seguridade Social”. Na prática, estamos em uma “encruzilhada fiscal”, apontou Élida: o Governo Federal priorizará os compromissos com o rentismo ou seu dever de garantir políticas de assistência bem financiadas e de qualidade para o povo, como o SUS?
Na discussão, que também contou com a participação da professora da UFMG Iola Gurgel e do presidente da Associação Brasileira de Economia em Saúde Francisco Funcia, Élida propôs que não faltam caminhos alternativos ao corte de direitos e à flexibilização do piso constitucional de 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) para que haja recursos para não apenas manter como, inclusive, aumentar o gasto público com saúde no país – que, historicamente, está abaixo da média mundial.
“Nós precisamos falar de um dever material de gastos mínimos de saúde. A Reforma Tributária precisa enfrentar o fato de que as renúncias fiscais estão crescendo excessivamente, já são 7% do PIB”, apontou a procuradora, ressaltando o impacto dessas renúncias na precarização dos serviços públicos. Ela se referenciou em estudos do economista da saúde Carlos Ocké-Reis para frisar que a saúde privada já goza de renúncias fiscais e subsídios que equivalem a um terço das despesas com Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS) feitas pelo Ministério da Saúde. “Porque estamos falando de um ajuste fiscal que reduz direitos e continuamos abrindo mão de novas receitas?”, questionou Élida.
“Se a gente não enfrentar a captura do Orçamento a partir do ponto de vista dos tributos não-arrecadados, da regressividade tributária, da dívida ativa, das renúncias fiscais e das despesas financeiras, podemos virar um país cujo gasto social equivale ao da África subsaariana sem jamais estabilizar a dívida. É um engodo”, alertou a professora da FGV.
Quem luta para abocanhar os recursos da Saúde
Na definição de Élida, a disputa pelo orçamento federal (e, dentro dele, o da Saúde), se trata de “um conflito redistributivo, que não está sendo discutido”. Concretamente, o andar de cima da economia luta de forma renhida para abocanhar uma parcela cada vez maior da riqueza do país, e as amarras do Arcabouço Fiscal – para a procuradora, “uma armadilha matemática, que acirra a aposta do Teto de Gastos do governo Temer” – acabam pressionando para que esses recursos sejam transferidos das políticas voltadas para os mais vulneráveis.
Enquanto isso, outras distorções orçamentárias seguem comprimindo as verbas da Saúde. Uma, cita a professora da FGV, são as renúncias fiscais e os subsídios oferecidos ao setor da saúde suplementar. “A renúncia fiscal é um tratamento discriminatório, em que alguém está se beneficiando enquanto o resto da sociedade paga a conta. Se a fila do SUS aumenta, é porque alguém do outro lado não está pagando seus tributos”, opina a especialista em contas públicas.
Outra delas, é a lógica de liberação das emendas parlamentares, que corrói a dotação orçamentária do Ministério da Saúde: “No começo desse ano, as emendas estavam pagas enquanto as despesas discricionárias não iam pra frente. Quem paga a conta é o Programa Nacional de Imunizações, o Farmácia Popular”.
Mesmo assim, as coisas se encaminharam para um cenário em que, para que “tudo caiba” no orçamento de 2025, se discutem cortes que vão da desvinculação de benefícios sociais do salário mínimo à flexibilização de pisos constitucionais de investimento em áreas estratégicas, mas nem se chega a propor alguma revisão das despesas com os juros da dívida pública ou de soluções mais estruturantes para a perda de arrecadação com renúncias fiscais. Aliás, como se viu no mesmo dia do debate, as autoridades financeiras do país até mesmo aumentam a taxa de juros, aprofundando o problema.
“Nos últimos 30 anos, o principal fator a afetar a dívida pública foi a evolução dos juros, não o gasto social. E o problema é o Fundeb? O problema é o SUS?”, questiona.
Rumo deve ser correção de injustiças fiscais
Nesse cenário, a discussão sobre cortes de recursos entra em colisão com a realidade de que os desafios da saúde pública só tendem a aumentar nos anos que estão por vir. “O SUS tem que projetar suas tendências pensando no envelhecimento da população, na crise climática, no surgimento de novos patógenos e na atual prática dos planos de saúde de tentar se livrar dos seus ‘consumidores problemáticos’, como os idosos”, pondera Élida.
Por isso mesmo, a professora da FGV alerta: “abaixo do Piso, só há um porão incivilizado”. A flexibilização dos gastos mínimos com os investimentos sociais só pode levar ao descumprimento flagrante de deveres do Estado previstos na Constituição Federal de 1988, como o de garantir à população direitos sociais como a saúde, a previdência social e a assistência aos desamparados. “Quem disse que é a Constituição que tem que caber no orçamento? O orçamento é uma lei ordinária, ele é que tem que estar submetido à Constituição”, aponta a procuradora.
Em um cenário possível, Élida avalia até mesmo que o corte de gastos pode acabar não gerando nenhum espaço fiscal, já que há o risco de que o Estado passe a enfrentar ainda mais questionamentos judiciais por não assegurar o direito à saúde das pessoas. “Os gastos mínimos materiais com Ações e Serviços Públicos de Saúde são um dever, é preciso gastar nisso. Mas se eles reduzirem, também vão explodir os números dos gastos com judicialização. Isso tudo pode virar gasto com precatórios”, ela prevê.
Em meio a esse embate complexo, Élida Graziane alertou sobre os perigos do caminho de defender o orçamento da Saúde deslocando os possíveis cortes para áreas como Previdência Social ou Educação, a partir de uma lógica de “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Frente à armadilha da balcanização do orçamento, “é preciso enfrentar esse problema de forma sistêmica” e discutir a sério medidas urgentes de ampliação da arrecadação e correção de injustiças fiscais históricas, e não a redução de gastos sociais, ela arremata.
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Imagem: Reprodução/ Marcello Casal Jr. /Agência Brasil