Movimentos sociais denunciam projeto do governo para ampliar presença da medicina de negócios na Saúde pública. E propõem: também lá a saída é ampliar o gasto estatal, ao invés de mercantilizar os direitos e o Comum
por Peoples Health Dispatch, no Outra Saúde
No Reino Unido, o governo do Partido Trabalhista avalia promover uma grande expansão do envolvimento do setor privado no National Health Service (NHS), sistema público de saúde do país, a pretexto de reduzir suas filas de espera. Recentemente, a Rede de Operadoras Independentes de Saúde (IHPN, na sigla em inglês) escreveu ao governo do prmeiro ministro Keir Starmer para afirmar que as empresas da saúde privada estão prontas para gastar £1 bilhão (R$ 7,4 bilhões) para acomodar mais pacientes do NHS — caso o governo garanta que seu trabalho será de longo prazo.
Embora a oferta tenha sido bem recebida pelo Departamento de Saúde do país, ativistas levantaram objeções ao plano. A campanha We Own It alertou que um retorno da política conhecida como Iniciativa de Financiamento Privado (PFI, em inglês), que é o que propõem as empresas, levaria a um aumento da dívida, escassez de pessoal e diminuição das capacidades de treinamento do NHS.
Esta não seria a primeira vez que o capital privado seria convidado a penetrar a saúde pública durante uma administração trabalhista. Quando Tony Blair era primeiro-ministro, a primeira versão da PFI confiou ao setor privado o financiamento da construção de hospitais para preencher lacunas na rede do NHS. O NHS pagaria então os custos de construção dessa infraestrutura — com juros — ao longo de 25 anos ou mais, eventualmente tornando-se o proprietário.
No entanto, relatórios já indicaram que, embora o NHS tenha adquirido £13 bilhões (R$ 96 bi) em propriedades por meio do PFI, ele também acabou com £80 (R$ 590 bi) bilhões em dívidas — ou seja, seis vezes mais. Isso significa que, até pelo menos 2022, algumas regiões do NHS gastavam mais no serviço da dívida com o setor privado do que em suprimentos médicos.
Não há qualquer indicação de que o atual governo introduziria salvaguardas mais fortes ao implementar uma nova fase da iniciativa, apelidada de PFI 2.0. Na verdade, a situação tende a ser pior. Enquanto a rodada anterior do PFI deixou alguma infraestrutura para o setor público, o PFI 2.0 não prevê nada do tipo: as capacidades adicionais seriam totalmente privadas, com o único envolvimento público sendo o dinheiro pago às empresas.
“O PFI 2.0 não apenas expandiria drasticamente a operação privada nos serviços de saúde, mas também aumentaria de modo dramático o quanto se extrai do NHS em lucros”, sugeriu a We Own It em sua análise. Atualmente, empresas privadas sugam £10 milhões do NHS (R$ 74 milhões) por semana. Garantir ainda mais contratos privados aumentaria esse valor, reduzindo os recursos para investimento nas próprias instalações do NHS.
De acordo com uma investigação recente, essas instalações precisam urgentemente de fortalecimento, como os ativistas da saúde têm afirmado por décadas. O relatório indica que anos de “austeridade” deixaram uma marca profunda no NHS, e que isso — e não a suposta ineficiência das equipes — levou à atual crise. Infelizmente, o estudo não conseguiu frisar a importância de romper laços com o setor privado e manter o NHS público, de acordo com o grupo Keep Our NHS Public.
Mesmo que o fizesse, é altamente provável que o Secretário de Saúde, Wes Streeting, não entendesse a importância de tal estratégia. Falando em uma conferência do Partido Trabalhista em setembro, Streeting expressou entusiasmo sobre uma “reforma” do NHS, uma palavra utilizada por vários governos do Reino Unido com o significado de “qualquer coisa, exceto investimento público em instalações públicas”.
“Reforma ou morte. Nós escolhemos a reforma”, disse o Secretário de Saúde. Sua abordagem levou os ativistas a temer que o governo esteja se apegando a uma agenda privatista de “reforma” da saúde em vez de assumir compromissos materiais para proteger o NHS.
A Keep Our NHS Public argumenta que o governo deveria se comprometer a enfrentar o subfinanciamento, a fragmentação e a terceirização. Como os profissionais de saúde e seus sindicatos levantaram várias vezes, uma verdadeira estratégia para proteger o NHS também deve incluir um compromisso com a melhoria das condições de trabalho e a garantia de salários justos.
Expandir o papel da medicina de negócios não é uma opção realista, alerta a We Own IT. “O setor privado não tem sua própria equipe”, alertou a We Own It. “Eles roubam funcionários, treinados com enormes despesas públicas, do NHS.”
Um maior envolvimento empresarial também reduziria a capacidade do NHS de treinar novos funcionários, afirmou o grupo. Os procedimentos geralmente transferidos para o setor privado são frequentemente essenciais para a experiência prática necessária aos médicos em treinamento. Com menos procedimentos desse tipo sendo realizados em hospitais do NHS, essas oportunidades de aprendizado desapareceriam, condenando novas gerações de profissionais de saúde a uma educação de qualidade inferior e prejudicando o atendimento ao paciente.
“Se o PFI 1.0 foi um dos pregos no caixão do NHS como o conhecemos, o PFI 2.0 é o verdadeiro fim do nosso NHS como um serviço público que trabalha para os pacientes, não para o lucro”, alertou o We Own It.