Leandro Konder, 10 anos de saudade. Por Milton Temer

No blog da Boitempo

Dez anos exatamente se passaram desde que Leandro Konder nos deixou. E parece que foi ontem, quando olho para a minha biblioteca, onde tenho seus livros enfileirados; ou quando relembro os momentos do nosso convívio desde os anos 70, no exílio europeu, em fotos. Foram anos felizes que não tiveram um happy end, a partir da descoberta do Parkinson que o consumiu, e que ele enfrentava, até para animar o entorno, sem perder um grama sequer da verve humorística e humanista com que sempre pautou seu comportamento.

Um Parkinson cujo ataque começamos a desconfiar, eu e Carlos Nelson Coutinho, nos almoços de sábado da “menor tendência” da fragmentada esquerda brasileira, onde eu desempenhava o papel de Sancho Pança dos meus dois geniais amigos e camaradas. Quixotes que muito tiveram a ver com meu aprendizado político, após a cassação consequente do golpe de 64. Leandro, diziam nossas companheiras — Cristina, que sacrificou importante carreira profissional para acompanhá-lo de perto nos dias difíceis que viriam, Rosane e Andréa, as três sempre dando razão a ele, contra nós —, não conseguia falar porque eu e Carlito não permitíamos. Atropelávamos antes que ele se exprimisse.

Não era fato, embora a crítica tivesse credibilidade pela forma sempre cordata com que Leandro enfrentava nossos debates, mesmo em momentos de maior veemência. A verdade é que ele começava a perder o ritmo da conversa, por conta da lentidão de reação quando provocado. Só mais tarde foi descoberta a enfermidade que o debilitou na reta final da intensa e profícua existência

Em vida e posteriormente, por conta do imenso legado intelectual que nos deixou, Leandro foi um “Imprescindível”, como Brecht — sobre quem ele tudo leu e sobre quem muito escreveu — caracterizava aqueles que nunca se vendem ou se rendem na luta em favor dos oprimidos contra os opressores. E isso fica muito bem definido num exemplar artigo publicado aqui no Blog da Boitempo pouco depois de seu falecimento, por José Paulo Netto.

Leandro não era um guerrilheiro das armas, mas difícil encontrar quem, melhor do que ele, tenha conseguido guerrear com as armas da crítica, principalmente nos anos difíceis da ditadura, quando sua atividade intelectual foi determinante para a introdução e conhecimento de Lukács e Gramsci em nossa realidade concreta. Da sala de aula, à conversa com o militante de base, ou na assessoria do Comitê Central do saudoso Partidão em seu período mais conflituoso da passagem dos anos 70 aos 80, sua voz suave se fazia tonitruante diante do silêncio que se instalava por conta da consistência e da forma didática e generosa com que defendia seus argumentos. Argumentos que esgrimia quando fazia um intervalo na produção de caricaturas dos presentes, guardadas para si, desenhos que serviam para espairecer quando as reuniões se tornavam maçantes.

Sua militância prática nunca o fez relaxar na militância da formulação teórica dos ensaios políticos, nem no didatismo a que se dedicava para a explicação daquilo que o leigo tinha dificuldades em capturar nos clássicos fundamentais para sua formação política. Filosofia, Ideologia, Dialética, Materialismo, Fascismo… sobre todos os temas, inclusive sobre o Amor, Leandro tinha algum livro pronto para divulgar, depois de traduzir e detalhar o que havia “Em torno de Marx”(com esse título, aliás, publicou um livro pela Boitempo, que anunciava como “[…] o autor, figura central no marxismo brasileiro, dialoga sobre moral, religião, história e dialética, incluindo reflexões sobre Lukács, Adorno, Gramsci e outros”).

Mas o engajamento ideológico nunca o limitou aos textos — na maioria das vezes áridos — da teoria política, que ele tornava palatáveis para o mais comum dos mortais. Tinha espaço para a ficção, para a ironia sobre temas sérios, e até para a poesia.

Impossível falar de Leandro, por exemplo, sem lembrar do genial personagem Alberto, o sapateiro anarquista, em quem se espelhava para driblar censura nos artigos que escreveu por algum tempo na página de opinião do conservador jornal O Globo. O Alberto, que ele definia num dos muitos poemas com que se apresentava nos almoços mensais dos Comuníadas (grupo de amigos que se reunia na casa do cineasta Zelito Viana), era assim cantado:

 

Alberto tem muito orgulho
De ser um bom sapateiro
Bate no couro ligeiro
Estica-o, faz barulho

Mas seu orgulho mais forte
É o de ser libertário
Vigoroso adversário
Da hipocrisia e da morte

Alberto é um anarquista
Fiel à sua doutrina
Seu exemplo nos ensina
Seja mais livre! Insista!

Conheci Leandro após o golpe de 64. E o conheci após ter conhecido seu pai, o saudoso Valério Konder, médico sanitarista, comunista de linha dura a quem fui encaminhado após ter entrado para o PCB. Leandro usou isso durante toda a vida, ao dizer que eu era uma amizade herdada do pai como forma de se apresentar como mais jovem que eu, embora três anos mais velho. Mas quando o conheci, foi a chamada amizade de infância à primeira vista. E logo fui admitido em tertúlias políticas que se realizavam em rotineiros fins de semana em sua casa, onde conheci Carlos Nelson.

Frequentávamos, então, as rodas de samba históricas, promovidas por Teresa Aragão e Jorge Coutinho, nas segundas feiras do Teatro Opinião. Ali nos deleitávamos com os espetáculos em que nomes como Zé Keti, Cartola, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Nelson Cavaquinho, para além de Nara Leão e Maria Bethânia, começavam a ocupar os espaços da “Esquerda Festiva”. E ainda lembro do dia em que, numa mesa com Leandro e Carlito, Sérgio Cabral (Pai) registrava a presença dos dois como a “Mesa dos Aprendizes de Lukács”, por conta da Escola de Samba então famosa, Aprendizes de Lucas. E quando recordo desse tempo, vejo Leandro e Carlos Nelson adaptando a letra do genial “Esta Melodia”, eternizado por Marisa Monte “Quando vem raiando o dia/ eu me levanto e logo começo a cantar/ essa linda melodia, que nos faz sonhar”, sucesso daqueles shows, que, com eles, ganhava uma nova letra, no “Samba do Idealismo Alemão”

 

Samba do Idealismo Alemão (Leandro Konder/Carlos Nelson Coutinho)

Quando veio a burguesia,
O Velho Kant se pôs a filosofar
E chegou um belo dia a elaborar
O seu idealismo racional
Onde a gnoseologia não juntava com a moral
Mesmo sendo uma tremenda antinomia
Fez-se um progresso na Filosofia

O proletariado não quer
Perder de vista essa lição:
Da Experiência do idealismo
Clássico alemão

Hegel foi quem resolveu esse problema
Uniu lógica e a história
Numa grande ontologia
Que foi a sua glória

Ao seu idealismo genial,
Dinâmico e totalizante
Mais profundo que o de Kant,
Só faltava a dimensão materialista
Que lhe daria a práxis marxista
O proletariado não quer
Perder de vista essa lição:
Da Experiência do idealismo
Clássico alemão.

 

Muita coisa ainda haveria de ser lembrada, mas isso o próprio Leandro, em sua modéstia marcante, impediria. Enfim, caro Léo, Me sinto feliz de te relembrar mais uma vez, com inveja das conversas que você deve estar tendo com o nosso Carlito. Conversas de que, em breve, quero participar, nessa outra dimensão.

Até mais ver.

Em torno de Marx, de Leandro Konder
Refletindo sobre a vitalidade do pensamento marxiano, aborda a dimensão filosófica muitas vezes subaproveitada de Marx. O autor, figura central no marxismo brasileiro, dialoga sobre moral, religião, história e dialética, incluindo reflexões sobre Lukács, Adorno, Gramsci e outros.

Sobre o amor, de Leandro Konder
O amor através dos olhos dos grandes pensadores e escritores. O filósofo brasileiro explora as múltiplas facetas desse sentimento, desafiando convenções e expondo suas complexidades com erudição, clareza e humor fino.

As artes da palavra: elementos para uma poética marxista, de Leandro Konder
Reflexão sobre a riqueza da linguagem literária em uma jornada apaixonada. O filósofo, com erudição única, analisa poesia, romance, teatro, ensaio, crônicas e cartas, revelando a complexidade desses gêneros. E inspirado por Lukács, oferece uma visão original sobre o realismo na literatura.

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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Costa.

 

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