Por trás da COP29: governo prende jornalistas e ativistas que criticam questões climáticas

Pública falou com pesquisadora e ativista Nargiz Mukhtarova: seu marido foi levado com um saco na cabeça pela polícia

Por Isabel Seta | Edição: Bruno Fonseca, Agência Pública

“É uma boa oportunidade para as autoridades encobrirem esses problemas de liberdade de expressão e liberdades políticas.” Foi assim que a jornalista Leyla Mustafayeva definiu a 29ª Conferência da ONU sobre mudanças climáticas (COP29), que começou na nesta segunda-feira (11 de outubro) para o governo do Azerbaijão.

Enquanto diplomatas e organizações ambientalistas veem o evento como a data mais importante do calendário global sobre o clima, para a mídia independente e ativistas do Azerbaijão, a COP29 é um problema.

Mustafayeva se referia à onda de prisões de jornalistas, ativistas, pesquisadores e lideranças políticas no país, já denunciadas como arbitrárias pela organização internacional Human Rights Watch (HRW) e condenadas, no final de outubro, pelo Parlamento Europeu.

“É como se esses problemas não existissem e como se o Azerbaijão fosse muito aberto a resolver as questões ambientais e climáticas. Eles [as autoridades do governo] estão se escondendo e escondendo suas atividades ilegais com a Conferência do Clima”, disse a jornalista em setembro, ao receber um prêmio em nome da Abzas Media, organização que ela dirige do exílio, em Berlim, por seu trabalho pela liberdade de imprensa.

Desde o ano passado, pelo menos 15 jornalistas já foram presos no país e podem ser condenados a longas sentenças, segundo o Comitê para Proteção dos Jornalistas (CPJ). Muitos deles trabalhavam para a Abzas Media, que também enfrenta acusações criminais. Além deles, vários defensores de direitos humanos e ativistas políticos foram encarcerados. Em setembro, Mustafayeva falou em um total de mais de 300 presos políticos.

“Os detidos arbitrariamente incluem um ativista anticorrupção crítico do setor de petróleo e gás do país e um defensor dos direitos humanos que cofundou uma iniciativa para advogar liberdades cívicas e justiça ambiental no Azerbaijão antes da COP29”, afirmou a Human Rights Watch.

Segundo organizações de direitos humanos, as autoridades do país têm um longo histórico de retaliação contra críticos do governo, comandado há 21 anos pelo presidente Ilham Aliyev – em 2003, ele sucedeu o pai, que presidiu o Azerbaijão por uma década.

Agora, essas organizações denunciam uma nova onda de detenções mal fundamentadas antes da COP29. “A repressão e o ambiente legal altamente restritivo para as operações de organizações sociais independentes ameaçam erradicar todas as formas de dissenso e o trabalho legítimo de direitos humanos”, afirmaram mais de 20 organizações em um comunicado emitido em setembro.

Em uma resolução aprovada em outubro, o Parlamento Europeu declarou que os abusos contra os direitos humanos no país são incompatíveis com a realização da conferência sobre o clima.

A crítica à onda de repressão se soma às preocupações ambientais com a realização do evento em um país altamente dependente de petróleo, que, junto com o gás natural, respondem por mais de 90% das exportações do Azerbaijão. O país, localizado nas montanhas do Cáucaso, é o 11º maior exportador de combustíveis fósseis do mundo (atrás do Brasil, que é o nono).

Segundo uma pesquisa da organização sem fins lucrativos Oil Change International, a estimativa é que a produção azerbaijana de gás e petróleo aumente 14% até 2035 – apesar de o país ter se comprometido a reduzir suas emissões de gases do efeito estufa em 35% nos próximos seis anos na comparação com 1990.

Em abril, o presidente chegou a dizer que o petróleo é um “presente dos deuses” e que defendia o direito do seu e de outros países de continuarem investindo na produção de combustíveis fósseis.

Às vésperas do evento, o diretor-executivo da COP29, o azerbaijano Elnur Soltanov, foi flagrado em uma gravação negociando “oportunidades de investimento” na companhia estatal de petróleo – segundo a consultoria Rystad Energy, a empresa tem 11 novos campos e projetos de expansão para serem aprovados até o final da década.

Economista preso criticava dependência dos fósseis

Entre as detenções denunciadas está a do economista Farid Mehralizada, conhecido por analisar indicadores econômicos do governo em canais da TV e colaborar como pesquisador para a organização europeia Radio Liberty. O economista publicava textos sobre temas como o impacto da pandemia na educação nacional, as reformas econômicas do governo, a migração interna e as privatizações.

Mehralizada falava abertamente sobre o problema econômico representado pelo setor petroleiro e sobre o desperdício de água nos sistemas de irrigação do país, castigado por secas severas.

“Eu acredito que a detenção dele foi motivada por vários fatores, um deles é a crítica pública que ele fazia sobre as políticas econômicas do Azerbaijão. Ele sempre alertou que a forte dependência de combustíveis fósseis representa sérios riscos para as pessoas e para o meio ambiente”, afirmou a esposa dele, Nargiz Mukhtarova.

O Comitê para Proteção dos Jornalistas e a Radio Liberty já se manifestaram pedindo a soltura do economista.

Em entrevista exclusiva à Agência Pública, Mukhtarova, que atua como ativista e pesquisadora dos direitos das mulheres no país, falou sobre a prisão do marido, o histórico de repressão no Azerbaijão e os impactos socioambientais do modelo econômico baseado em combustíveis fósseis.

A Pública questionou o governo do Azerbaijão sobre as detenções. A embaixada do país ainda não respondeu à reportagem – o texto será atualizado caso haja posicionamento. Em resposta à imprensa dos Estados Unidos, a embaixada azerbaijana em Washington contestou o relatório da Human Rights Watch e afirmou que todos os casos estão sendo analisados de forma apropriada. Disse, ainda, que o país é vítima de uma “campanha orquestrada de desinformação”.

Você escreveu um artigo sobre a prisão do seu marido, em maio. Pode contar o que aconteceu naquele dia e desde então?

No dia 30 de maio, meu marido, Farid, foi violentamente detido no centro de Baku [capital do país] por policiais à paisana. Eles colocaram um saco na cabeça dele e, mais tarde naquele dia, um grupo de policiais fez uma busca no nosso apartamento, confiscando o equipamento dele.

Farid foi levado para o principal departamento de polícia da cidade, onde foi interrogado por dois dias antes de o tribunal sentenciá-lo a quatro meses de prisão preventiva. Ele foi acusado de contrabando, em conexão com o caso da Abzas Media, mas não apresentaram evidências para essa acusação [a Abzas Media já declarou que Farid não tinha qualquer conexão com a organização]. Farid me contou, depois, que a prisão foi violenta, com ameaças e intimidações.

Na época, eu estava grávida de cinco meses, e o estresse daquele dia foi insuportável. Desde então, a prisão dele foi estendida para seis meses, e nossas vidas mudaram totalmente. Nós tivemos nossa filha durante esse período, mas Farid ainda não teve a chance de conhecê-la, perdendo esses primeiros meses preciosos da vida dela. Em agosto de 2024, adicionaram mais acusações, incluindo empreendimento ilegal, evasão fiscal, falsificação de documentos, o que estendeu a prisão até dezembro.

Você já falou sobre o trabalho crítico do Farid e os comentários públicos dele sobre a dependência do Azerbaijão de combustíveis fósseis. Você acredita que isso estaria por trás da prisão dele?

Eu acredito que a detenção dele foi motivada por vários fatores, um deles é a crítica pública que ele fazia sobre as políticas econômicas do Azerbaijão. Ele sempre alertou que a forte dependência de combustíveis fósseis representa sérios riscos para as pessoas e para o meio ambiente.

Farid dizia que essa abordagem é insustentável, não só porque contribui para a degradação ambiental, mas porque torna a população mais vulnerável à pobreza. Ele falava das secas crescentes impactando a nossa região, enfatizando como elas ameaçam a agricultura, reduzem a produtividade, aumentam a insegurança alimentar.

As críticas dele questionam os fundamentos da abordagem do governo, fazendo com o que o trabalho dele seja inerentemente arriscado no clima político atual.

O caso dele não é isolado. Como era a relação do governo com o jornalismo independente e com o ativismo climático e de direitos humanos há alguns anos atrás, antes do Azerbaijão ser anunciado como anfitrião da COP29? E como você vê a influência da conferência nessa relação?

A restrição de vozes independentes não é nova. Desde 2013, o governo do Azerbaijão mantém uma postura dura contra o jornalismo independente e o ativismo. Ao longo da última década, muitos veículos de comunicação foram forçados a fechar suas redações em Baku, enfrentando ações na Justiça e outras formas de intimidação.

A Radio Liberty, organização com a qual o Farid colabora, agora opera no exílio. Jornalistas e ativistas que falam de questões críticas – principalmente aquelas relacionadas a preocupações ambientais ou direitos humanos – são muito pressionados. O caso do Farid é emblemático de uma repressão maior contra vozes independentes.

Você pesquisa direitos das mulheres no Azerbaijão. Eu assisti a uma entrevista sua de quatro anos atrás sobre uma série de feminicídios e abusos contra mulheres no país. Alguma coisa mudou nesses últimos anos? Qual a situação hoje?

Existe uma dinâmica similar no caso dos direitos das mulheres, e, infelizmente, pouca coisa mudou nos últimos anos. As autoridades no Azerbaijão demonstram pouca preocupação com a segurança das mulheres, e o nosso sistema jurídico não é estruturado para apoiar as vítimas de forma efetiva.

Ainda existem lacunas significativas na legislação que deixam as mulheres vulneráveis. Por exemplo, feminicídio não é reconhecido como um crime distinto [diferente de homicídio], as autoridades não reconhecem sua natureza de gênero, o que obscurece a escala e o impacto do problema.

Assim, o número de vítimas continua alto, mas medidas de proteção não são implementadas. A falta de ação do governo sobre o assunto reflete um padrão mais amplo de desrespeito aos direitos humanos e à segurança.

Você escreveu que o Azerbaijão é comumente descrito como um “Estado rentista”. Em que aspectos?

A dependência estrutural do Azerbaijão de recursos naturais, particularmente petróleo e gás, é um traço distintivo da economia e da governança. A economia do Azerbaijão depende da receita da venda externa de recursos, e não de atividades produtivas dentro do país. Essa dependência molda a economia de várias maneiras.

Primeiro, a estabilidade econômica é vulnerável às flutuações nos mercados de energia, já que a maior parte da nossa receita se deve às exportações de petróleo e gás. A diversificação econômica é limitada, o que faz com que o país seja muito suscetível a crises quando os preços desses mercados caem.

E há muitas consequências ambientais e sociais desse modelo. A extração de recursos já levou a uma degradação ambiental significativa, incluindo poluição do ar e da água, com impactos negativos para a saúde e agricultura. Ao focar na riqueza dos combustíveis fósseis, o governo tem desviado a atenção de necessidades sociais, como educação, saúde e infraestrutura.

É nesse sentido que o Azerbaijão exemplifica as características de um Estado rentista, em que os sistemas político e econômico são moldados principalmente pela riqueza de recursos em vez de pelo crescimento sustentável e inclusivo.

Os países que vão participar da COP29 se manifestaram pouco sobre a repressão no Azerbaijão, com exceção do Parlamento Europeu, que aprovou uma resolução em outubro condenando as violações de direitos humanos. É o suficiente?

Só isso não é o suficiente. A comunidade internacional precisa fazer mais para garantir que os direitos humanos sejam priorizados junto com os objetivos ambientais.

Direitos humanos não são apenas uma questão periférica – eles são fundamentais para alcançarmos uma resposta significativa e justa para a crise climática. Esforços internacionais mais fortes e coordenados são necessários para tornar esse alinhamento uma realidade, principalmente com o Azerbaijão sediando a COP29.

Imagem: Nargiz Mukhtarova, então grávida de oito meses, em frente ao tribunal que realizava uma audiência do caso de Farid – Acervo Pessoal

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