Livro reunirá experiências antirracistas no sistema. Seus organizadores defendem: ação do Estado é indispensável, mas apenas o movimento social pode resgatar a radicalidade necessária para provocar as mudanças necessárias na estrutura
por Gabriela Leite, Outra Saúde
Ainda é preciso avançar muito para acabar com o racismo SUS, embora a equidade esteja em seu cerne. Mas iniciativas que combatem as desigualdades raciais nas estruturas do sistema público de saúde sempre existiram – basta que se escute. É o que tenta fazer um projeto encabeçado por Emiliano de Camargo, Rachel Gouveia e Tadeu de Paula, que compõem a Frente Nacional de Negros e Negras da Saúde Mental (FENNASM). Os três pesquisadores concederam entrevista conjunta ao Outra Saúde para falar sobre seu novo projeto.
Em uma parceria com o selo Diálogos da Diáspora, da editora Hucitec, eles idealizaram um novo livro construído a muitas mãos. Abriram um edital para receber relatos de experiências coletivas que tratem da temática racial nos processos de produção de saúde – o que chamam de AquilombaSUS. Serão 20 experiências selecionadas, e as inscrições estão abertas até dia 20 de dezembro – a publicação deve sair em meados de 2025.
Como esse racismo se revela? “No campo da saúde, ele tem uma dimensão mais macroestrutural, que está no próprio sucateamento do SUS. A gente sabe que a maioria da população que depende exclusivamente do SUS é de pardos e pretos”, introduz Tadeu, que é psicólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Mas essa é só uma das faces: “Também está na estrutura do SUS uma reprodução do racismo nas categorias profissionais: a maioria de médicos e pessoas que estão em lugares de poder são homens e mulheres brancas, enquanto negros e negras estão em cargos de menor remuneração. Eles foram, inclusive, os profissionais da linha de frente que mais morreram durante a pandemia de covid”, relembra Tadeu.
Uma das chaves para a mudança dessas estruturas pode estar na organização antirracista coletiva que já desponta no SUS – e que os pesquisadores chamam de aquilombamento. “Há um protagonismo de negros presente nessa construção. Não é só uma reunião de pessoas, mas tem uma direção ético-política, clínica, de perspectiva antirracista que resgata a cultura, os valores, as experiências forjadas na diáspora e que são trazidas para o interior do Sistema Único de Saúde”, conta Raquel, que coordena o projeto de pesquisa e extensão da luta antimanicomial e feminismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Emiliano, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) contribui com um exemplo do que seria uma experiência de aquilombamento no SUS: o Kilombrasa, coletivo da cidade de São Paulo, que “começou a discutir as relações raciais dentro do território da Brasilândia, de um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) infanto-juvenil, e foi fazendo relação com os diversos setores que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) para as suas ações antirracistas dentro do equipamento”.
Tadeu enxerga que o AquilombaSUS pode ter um papel de articulação, ao “poder acionar essa potência que existe nos territórios, movimentos de produção de cuidado, de rede de proteção, de enfrentamento ao racismo – que tem toda uma carga de ancestralidade, de cultura que vem desse manancial da afrodiáspora”. E então enfrentar os processos sociais, que não nascem dentro do SUS, que são muito mais antigos que ele – como o hospital, a medicina, a psicologia, frequentemente reprodutoras do racismo.
A saúde mental é a área de atuação dos três pesquisadores – e talvez não à toa é daí que venham as principais experiências do AquilombaSUS descritas por eles. Para Raquel, “o AquilombaSUS está se propondo a fortalecer estratégias que são produzidas no território, que trabalham com a perspectiva da escuta, do acolhimento, centradas na liberdade e na defesa de uma perspectiva em que a loucura não é identificada por uma perspectiva do estigma, da discriminação”. Essa é a lógica que reforça o próprio racismo, explica ela.
Saúde da população negra, 15 anos após a PNSIPN
Instituída em 2009, a importância Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) é destacada pelos pesquisadores pelo seu papel de garantir a universalidade como princípio do SUS. “Para que o sistema de saúde possa cumprir sua função universal, ele sustenta políticas específicas, mas que não intencionam uma fixação na particularidade”, ensina Emiliano. Ele acredita que a PNSIPN “radicaliza a dimensão pública e universal do SUS”, mas também ajuda a cumprir o princípio de equidade do sistema.
Mas Tadeu oferece uma visão crítica sobre a situação dessa política no Brasil de hoje: “Em um país estruturalmente racista, se essas políticas não se pensam a partir de uma perspectiva antirracista, elas não estão cumprindo efetivamente seu papel. Então, nesse sentido, ela ainda ocupa uma posição marginal na estrutura do SUS. Precisa ser colocada mais na centralidade da agenda, dos investimentos, dos esforços institucionais”. Ele defende que os movimentos sociais precisam mobilizar projetos para “constuir um sentido pleno de política pública” pois, reconhece, “ela não vai se efetivar somente a partir da iniciativa estatal”.
Nesse sentido, qual o papel do governo Lula? Emiliano reflete que é preciso colocá-lo em perspectiva histórica. Nos primeiros governos do petista, houve a implementação de programas sociais que eram muito defendidas pelo movimento negro, como as cotas raciais. “Isso também aconteceu no SUS, com a criação de uma série de instâncias de participação do movimento negro, de mulheres negras, de forma até então nunca alcançadas na democracia brasileira”. Essas políticas geraram efeitos concretos, defende ele.
Agora, o Brasil vive um contexto mais complexo, após um golpe contra a presidente Dilma e uma tentativa de golpe militar em 2022. A democracia está em risco. “Contudo, também há os limites de um governo que se estabeleceu em frente ampla. Há um certo fisiologismo que exige uma análise conjuntural, pois configura limites para que políticas importantes passem no Congresso”. Isso frustra, de certa forma, os movimentos negros, segundo Emiliano.
“O governo está absolutamente absorto em garantir uma condição de governabilidade de um ‘Centrão’, de uma ultradireita que atenta contra a democracia e as condições básicas da vida”, completa Tadeu. “Então, evidentemente, esperar do governo uma radicalidade que tem que vir do movimento social é um equívoco de leitura. Alguns enfrentamentos só são possíveis se houver uma base social fortalecida em algumas agendas que precisam ser mais radicais para garantir a democracia para além do discurso de governabilidade”, termina ele.
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Reprodução/ Marcello Casal Jr. /Agência Brasil