Denúncia: operários chineses estariam sofrendo agressões em fábrica da BYD na Bahia

Quase 500 funcionários estariam em condições degradantes na construção da primeira fábrica de carros elétricos do Brasil

Por André Uzêda | Edição: Mariama Correia, Bruno Fonseca, Agência Pública

Uma mulher franzina equilibra uma tábua de madeira atrás do pescoço para carregar, sem perder tempo, dois baldes pesados. Um grupo de seis trabalhadores é transportado até o canteiro de obras em um carro de passeio, com um deles sendo levado dentro do porta-malas. Em um cooler pequeno, daqueles usados para manter a temperatura de cervejas e refrigerantes, é servida uma sopa para centenas de trabalhadores famintos, após uma longa jornada de trabalho.

Agressões físicas, com chutes e pontapés. Alojamentos sujos, aglomerados, mal iluminados e sem divisão entre homens e mulheres. Banheiros imundos, sem limpeza diária das pias e dos vasos sanitários. Operários atuando sem equipamentos de proteção individual, submetidos a rotinas de 12 horas por dia, de domingo a domingo.

Todas essas situações, de acordo com denúncias que a Agência Pública recebeu, estariam acontecendo dentro do canteiro de obras da empresa chinesa BYD, que está instalando uma fábrica de automóveis elétricos na cidade industrial de Camaçari, na Bahia.

Em março deste ano, com amplo apoio do governo do estado, comandado por Jerônimo Rodrigues (PT), a montadora asiática oficializou um acordo para construir sua primeira fábrica no Brasil. O terreno é o mesmo que foi ocupado pela Ford por quase 20 anos, até a empresa decidir encerrar suas atividades de maneira definitiva no país.

Com a saída da BYD dos EUA, o próprio governo da Bahia comprou o terreno de 4,6 milhões de metros quadrados e o revendeu à empresa pelo valor de R$ 287,8 milhões, de acordo com dados oficiais divulgados à época da negociação.

No ato de assinatura do contrato, o governador Jerônimo esteve acompanhado do presidente da BYD Brasil, Tyler Li, e do conselheiro especial da companhia chinesa, Alexandre Baldy, além de outras autoridades políticas locais.

De acordo com documentos e informações obtidas pela Pública, para a construção da fábrica, a BYD contratou cerca de 470 operários chineses de três empresas de seu país. O Jinjiang Group faz o serviço de terraplanagem, que é a preparação da área para o início das obras e, em média, utiliza 280 funcionários, segundo os documentos.

A Open Steel é responsável pela montagem da estrutura metálica da fábrica e mantém cem chineses trabalhando nessa função. Por último, a AE Corp tem como responsabilidade montar a estrutura metálica interna, onde serão produzidos os carros elétricos. Cerca de 90 chineses trabalham nesse setor atualmente.

Por que isso importa?

  • A reportagem denuncia condições degradantes de trabalho de funcionários chineses da primeira fábrica de carros elétricos do Brasil. A BYD está instalando uma fábrica de automóveis elétricos na cidade industrial de Camaçari, na Bahia.

Chineses são agredidos e não têm acesso à água, segundo denúncia

De acordo com fotografias, vídeos e áudios a que a Pública teve acesso, as situações mais degradantes teriam acontecido com os funcionários do Jinjiang Group. O material indica uma série de maus-tratos e descumprimentos a convenções internacionais de trabalho e segurança.

Nas imagens, dá para ver operários bebendo água salobra das poças formadas no canteiro, já que não teriam acesso a água potável. Alguns trabalham descalços ou sem os capacetes obrigatórios para proteção individual durante as obras.

A reportagem recebeu vídeos e áudios com relatos de agressão enviados por funcionários que pediram para ter suas identidades protegidas. Funcionários entrevistados sob condição de sigilo confirmaram essas denúncias. De acordo com eles,  os mestres de obras, também chineses, por mais de uma vez, teriam golpeado os operários com pontapés e socos. Um dos casos aconteceu em 9 de outubro, de acordo com as denúncias. Um vídeo registra o momento em que um chinês aparece caído no chão depois de, segundo relatos, ter levado um chute pelas costas.

O caso não seria isolado. De acordo com as fontes ouvidas, seria costumeiro ocorrerem cenas de violência quando há descumprimento de ordem ou demora na execução das tarefas.

Segundo reportagens publicadas por diversos veículos que acompanham o avançar das obras, a expectativa da montadora chinesa era finalizar a primeira fase das obras no fim deste ano, com a instalação de 26 novas estruturas, entre galpões de produção, pista de testes e outros equipamentos. Com a primeira etapa finalizada, já seria possível produzir 150 mil veículos por ano, de acordo com dados oficiais da BYD.

Entretanto, de acordo com uma fonte ouvida pela reportagem, houve um atraso e o novo prazo estimado é de finalização da primeira etapa em janeiro de 2025. Isso explicaria a pressão exercida sobre os funcionários chineses, resultando nos castigos físicos frequentes relatados à reportagem.

Na empresa AE Corp há outras denúncias de violações em nome da celeridade de entrega dos prazos. Segundo as fontes ouvidas pela Pública, o refeitório para alimentação foi montado no mesmo local de trabalho – o que configuraria jornada continuada, pois não há tempo para descanso.

Os brasileiros relatam que os chineses têm enorme dificuldade de comunicação para formalizar algum tipo de denúncia, pois eles não entendem o português, assim como os brasileiros também não conseguem se expressar em mandarim, cantonês ou nenhum dos outros cinco idiomas falados na China.

Funcionários estrangeiros têm mesmo direito que brasileiros

De acordo com as fontes ouvidas, os funcionários brasileiros que trabalham na montagem da fábrica da BYD na Bahia não estão submetidos ao mesmo regime precário de trabalho dos chineses.

Os funcionários brasileiros cumprem uma carga horária das 8h às 18h (na BYD), com uma hora de descanso para refeição. Nas demais terceirizadas – no Jinjiang Group, Open Steel e AE Corp –, a carga horária seria das 7h às 17h, com duas horas de almoço.

“Mesmo quando os chineses trabalham em funções administrativas, são submetidos a jornadas mais intensas que os brasileiros. Como precisam responder a processos para a matriz chinesa, muitas vezes trabalham de madrugada para se adaptar ao fuso horário de 11 horas que separa os dois países”, disse um funcionário que falou em condição de anonimato com a reportagem.

Em média, são 590 funcionários nacionais trabalhando na montagem da fábrica. A maior parte está distribuída na BYD e no Jinjiang Group. A empresa AE Corp, que monta a estrutura metálica para a produção dos carros elétricos, não possui funcionários brasileiros.

A advogada Ana Paula Studart, especialista em direito trabalhista, lembra que a Constituição brasileira assegura aos trabalhadores estrangeiros os mesmos direitos dos brasileiros, como ao 13º salário, adicional de férias, 30 dias de férias remuneradas, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e cumprimento de jornada de trabalho constitucionalmente prevista. Isso vale até mesmo para estrangeiros que atuem em multinacionais instaladas no Brasil.

“Vale destacar que, conforme previsto no artigo 358 da CLT, sobre equiparação salarial, os trabalhadores brasileiros e estrangeiros que exerçam a mesma atividade têm direito ao mesmo salário. Trata-se, aqui, de clara proibição a discriminação salarial”, pontua.

Studart reforça que, além dos direitos trabalhistas, as empresas devem zelar por itens relacionados à saúde e segurança dos seus funcionários, além de cumprir a jornada de trabalho de até 44 horas semanais, estabelecida na Constituição.

“As empresas devem seguir as normas de saúde e segurança do trabalho para proteger seus funcionários. Isso inclui a implementação de programas de prevenção de acidentes, equipamentos de proteção individual, a realização de treinamentos periódicos para os funcionários e a realização de exames de saúde ocupacional. Tudo isso é indispensável para uma adequação aos âmbitos trabalhistas das empresas estrangeiras”, diz.

Em caso de violação das leis trabalhistas, os estrangeiros podem buscar apoio no sindicato que representa a categoria, bem como no Ministério do Trabalho, ou no Ministério Público do Trabalho (MPT) para eventuais reparações.

Maus-tratos teriam começado logo depois do início das obras

As obras no terreno de Camaçari começaram em março deste ano. De acordo com os relatos de funcionários ouvidos, em abril, ou seja, um mês desde o começo da montagem, já havia relatos de violações a direitos trabalhistas de funcionários chineses.

A reportagem procurou a empresa sobre as denúncias. Em nota, a BYD disse que opera há 10 anos no Brasil “cumprindo rigorosamente as leis locais”.  A montadora disse ainda que “as obras da fábrica em Camaçari, na Bahia, atendem todas as normas legais, incluindo a licença de instalação obtida em 2024 e aprovada pelo governo do estado”, além de ressaltar que fez um investimento de R$5,5 bilhões, com potencial para gerar “mais de 20 mil empregos”.

Na nota, a BYD informa ainda que a JinJiang Construction Group é a construtora responsável pelas obras. E, por ser um tipo de edificação muito específica, “atua em diversos países onde a BYD expande operações”.  A BYD, no entanto, não respondeu especificamente sobre as denúncias de violência.

No dia 11 de novembro deste ano, a Polícia Federal e o MPT estiveram no canteiro de obras para uma vistoria das condições de trabalho, mas não chegaram a ir aos alojamentos ou percorrer todo o espaço de montagem da fábrica, segundo fontes ouvidas pela reportagem.

Procurado, o MPT confirmou a inspeção na planta da fábrica. Segundo o órgão, há um inquérito em andamento para apurar informações sobre “saúde e segurança do trabalho” dos operários. A visita ocorreu com a presença de um procurador, um perito e servidores, além da escolta da Polícia Federal.

“Tem um inquérito em andamento. O relatório ainda não está pronto e deve ser anexado a ele. Denúncias nos ajudam a iniciar a apuração. Neste caso, há uma investigação que terá que chegar a uma conclusão”, respondeu o órgão, via assessoria de imprensa.

Questionada sobre a inspeção do MPT, a BYD disse que a vistoria “apontou a necessidade de ajustes pontuais na operação”. E que, as inconformidades já foram identificadas, com exigências que a JinJiang “atuasse na correção com urgência”. A empresa não especificou quais seriam estas correções.

A Polícia Federal e o governo da Bahia também foram procurados, mas não responderam até a publicação.

No dia 2 de dezembro está prevista uma visita da CEO da BYD, a chinesa Stella Li, à Bahia. Durante o evento, com a presença esperada do governador Jerônimo Rodrigues, será anunciado um novo aporte de R$ 3 bilhões da montadora chinesa para ampliar a estrutura inicialmente prevista.

A Pública apurou que está havendo uma mudança na estrutura dos alojamentos dos funcionários para essa visita, que será acompanhada por jornalistas convidados a percorrer o canteiro de obras.

Imagem: Divulgação/BYD

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