Por Barbara Souza, Informe Ensp
As implicações da saúde com o cotidiano, a luta dos povos pela vida, a urgência das mudanças climáticas e a relação da humanidade com a Terra. Estes foram alguns dos temas aprofundados pelo escritor Aílton Krenak na conferência de abertura do XI Seminário Internacional de Direitos Humanos e Saúde e do XV Seminário Nacional de Direitos Humanos e Saúde. Realizados na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), os eventos começaram nesta segunda-feira (25/11), com auditório lotado. Ao abordar “O Presente e o Futuro dos Direitos Humanos: saúde das populações diante da mudança climática”, tema escolhido para os seminários, o jornalista do Núcleo de Cultura Indígena e imortal da Academia Brasileira de Letras defendeu uma visão de saúde que “obriga a gente a ter consciência do mundo que habitamos”.
“As mudanças climáticas precisam ser observadas da perspectiva da relação do nosso corpo humano com o corpo da Terra, que é a nossa mãe. Se olharmos as mudanças climáticas nessa perspectiva biocêntrica, não antropocêntrica, vamos aprender muito mais e vamos nos tornar mais resilientes a elas. As mudanças climáticas virão, não adianta espernear, e quem tem que mudar somos nós”, sintetizou Krenak em entrevista ao Informe ENSP após a palestra.
Logo no início da apresentação, o autor de “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo” e “A Vida Não é Útil” falou das tentativas de extinção dos povos originários, até mesmo por meio de decretos. Ele destacou que, como resposta, o número oficial de indígenas no país subiu de 300 mil nos anos 1990 para 1,7 milhão atualmente. No entanto, ao escapar de uma emancipação compulsória, essa população cresceu empobrecida. “Crescemos nas periferias do Brasil, nos lugares sem saneamento, sem infraestrutura, na faixa da pobreza. Não conseguiram emancipar os povos indígenas, mas sim transformá-los em pobres. Existe uma deliberada política de fazer esse povo ficar pobre: é envenenando os territórios, estragando nossos rios, destruindo nossa floresta, já que não podem tirá-la da gente”, explicou Krenak.
Direitos Humanos e Especismo
Ao aprofundar a crítica à degradação ambiental, ele questionou a posição de superioridade adotada pelos seres humanos diante de outras formas de vida. Krenak lembrou que, de acordo com a cosmovisão de povos originários de regiões da América Latina, principalmente nos Andes, reivindicam-se os direitos da montanha e do rio, por exemplo. “É interessante que esse evento das mudanças climáticas passou a reclamar o ‘sujeito de direito’ para não-humanos. É a Terra, um organismo vivo, sendo respeitado na sua integridade porque tem direito… Ora, nós ainda estamos presos à chave dos Direitos Humanos! Eu tenho chamado isso de especismo do humano”, afirmou o autor. Ao detalhar seu ponto de vista, ele traçou um paralelo: “É mais ou menos como qualquer outro privilégio que, por ter sido durante muito tempo exercido, não se admite mais como privilégio, mas como direito”.
Mesmo se desconsiderada sua problemática relação com a natureza, a humanidade também não nutre uma convivência harmoniosa com seus pares de espécie. É isso que o escritor indígena examinou ao criticar a dita universalidade dos Direitos Humanos. “Uns são considerados mais humanos que outros. Como se mede o grau de humanidade de alguém?”, questionou. Neste momento da palestra, Krenak falou que a visão de mundo dominante é a que privilegia o individualismo em detrimento da coletividade. “A humanidade deve ser a expressão de compromissos comuns, coletivos. E nós somos o tempo inteiro capturados por uma ideia neoliberal e meritocrática em que os direitos humanos passam a ter uma medida individual. Isso tem a ver com o que o Pepe Mojica diz sobre o mundo não querer cidadãos, mas sim consumidores. A cidadania é uma experiência coletiva e compartilhada, enquanto o consumo e a clientela são individuais”, completou.
“A saúde acontece na fricção entre o nosso corpo e a Terra”
A palestra seguiu repleta de reflexões e críticas ao modelo de desenvolvimento capitalista, com questionamentos ao chamado mercado e suas escolhas político-econômicas. “Nós estamos totalmente imensos numa trama onde a mudança climática deixou de ser um evento ecossistêmico e passou a ser um evento político”, resumiu Krenak. Preocupado com a realidade da vida prática das populações diante do cenário de emergência climática e sempre considerando a saúde de forma ampla, o convidado afirmou que “a saúde se dá no dia a dia, no trabalho, no lugar de quem pega no batente, no sujeito que arruma a estrada, que conserta o caminhão… A saúde acontece na fricção entre o nosso corpo e a Terra”.
Aílton Krenak adicionou outro ingrediente às provocações ao citar e lamentar o sofrimento mental que, na sua avaliação, tornou-se “um novo paradigma da condição de estar vivo”. Para ele, tal sofrimento precisa ser associado ao que as comunidades humanas, junto ao corpo da Terra, passam a vivenciar com o evento das mudanças climáticas. “Nosso corpo e o corpo da terra estão experimentando um tipo de fricção que não havia antes. Quando uma comunidade ribeirinha bebe água, come peixe, pega açaí, come açaí, come suas frutas, tem sua casa de farinha e produz seu alimento, está produzindo saúde. Quando ele foge desse lugar, desvincula corpo e território, está produzindo doença e sofrimento. Então nós tínhamos que considerar que o mesmo corpo que produz saúde também produz doença, desestruturação e desordem”, explicou.
Outra crítica feita por Krenak foi em relação a uma “ideia falsa de futuro”, segundo a qual será possível resolver todos esses problemas num momento que ainda virá. “A saúde não tem depois. A saúde é agora, é presente. Então essa ideia de presente e futuro é um pouco sem sentido. A saúde é presente”, disse em entrevista ao Informe ENSP. Sobre essa ideia, ele afirmou durante a palestra que “conjugar saúde no futuro seria prometer para alguém, que você não sabe se vai estar vivo amanhã, que vai ficar tudo bem”, e alegou que essa promessa seria um “golpe”.
Mudanças climáticas e saúde coletiva
Com o olhar voltado para a prática, Krenak defendeu que os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) ganhem, na visão dos profissionais, dos pensadores e dos pesquisadores da saúde, a possibilidade de serem um dispositivo de atuação no campo das mudanças climáticas. A ideia é evitar que a questão fique muito “distante do chão” e acabe se tornando apenas “mais uma legenda”. Nesse sentido, o palestrante defendeu ser importante considerar que locais criados para enfrentar questões da saúde acabaram também se tornando espaços de mobilização interna de aldeias e comunidades indígenas. “Nós deveríamos valorizar muito mais esses endereços e fortalecer a relação com eles. Eles podem ser pontos de foco para pensar a mudança climática na perspectiva da saúde coletiva”, explicou.
Mesa solene de abertura
Antes da conferência proferida por Aílton Krenak, uma cerimônia institucional deu início ao XI Seminário Internacional de Direitos Humanos e Saúde e ao XV Seminário Nacional de Direitos Humanos e Saúde. O diretor da ENSP, Marco Menezes, reafirmou o posicionamento da Escola na defesa do Estado Democrático de Direito e da democracia no Brasil, mencionando as tentativas de golpe que vem sendo noticiadas pela imprensa. Em seguida, ele destacou alguns aspectos relacionados ao tema do evento. “É preciso reconhecer que as emergências climáticas e a crise hídrica, nesse ponto específico, impactam de forma diferente às populações. No mundo, de uma forma geral, logicamente o Sul Global é mais impactado, assim como as populações mais vulnerabilizadas. E falar desses pontos é falar do maior problema de saúde pública que enfrentamos hoje: a fome e a pobreza. Temos que discutir como se organizam os sistemas alimentares, a acumulação de riqueza e o modelo de desenvolvimento do nosso país e do mundo”, afirmou o diretor. Marco Menezes aproveitou a oportunidade para se manifestar contra o marco temporal da demarcação das terras indígenas, reforçou a importância da parceria entre a academia e os movimentos sociais e disse ainda que as discussões do seminário contribuem para a formação de posicionamentos institucionais tanto da ENSP quanto da Fiocruz como um todo.
Chefe do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural (DIHS/ENSP), organizador do evento, Maria Helena Barros de Oliveira fez um afetuoso agradecimento aos envolvidos nos preparativos e relembrou o histórico do DIHS, destacando o foco de suas atividades. “Estamos dando muita atenção e tendo um empenho muito forte nas questões do antirracismo, das pessoas com deficiência, de todas as populações vulneráveis, como a LGBT e a de imigrantes refugiados. A questão das populações em estado de vulnerabilidade é o nosso trabalho, nossa luta e nossa construção”, declarou. A pesquisadora lembrou ainda do protagonismo do departamento na criação, em 2009, do Comitê Pró-Equidade de Gênero e Raça da Fiocruz e, em 2017, do Comitê Fiocruz pela Acessibilidade e Inclusão das Pessoas com Deficiência.
O presidente da Fiocruz, Mario Moreira, ressaltou que a relação entre direitos humanos e saúde é inegável, mas que as mudanças climáticas tornam essa conexão ainda mais evidente e desafiadora. “Fortalecer o direito humano à saúde, garantindo equidade e inclusão, é essencial para enfrentarmos esse cenário com justiça social”, disse. O presidente sublinhou ainda que o Brasil tem sido uma voz importante nesse debate global. “A Fiocruz está plenamente engajada nessa mobilização. A Fiocruz, no seu papel relevante no contexto nacional, está totalmente engajada nessa luta. Uma luta de formação de consciência e de debate junto à população. Tenho aprendido o quanto é potente trabalhar junto aos territórios, com a população afetada pela política pública. Toda a nossa agenda institucional, da mais embebida de ciência até as com preocupações mais sociais, está baseada na lógica dos direitos mais fundamentais dos cidadãos e cidadãs”.
Presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz (Asfoc), Paulo Garrido defendeu ser fundamental que, do evento, mais do que análises críticas, mas propostas concretas que fortaleçam a luta coletiva: “A história da ENSP nos ensina que a transformação social só é possível quando unimos pensamento e ação, ciência e militância, solidariedade e mobilização”.
Já o juiz Eric Scapim, que representou a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), disse que parcerias como a firmada entre sua instituição e a ENSP/Fiocruz são essenciais para a concretização dos Direitos Humanos. “Que estes seminários sejam mais um marco na construção de caminhos para um presente e um futuro em que os Direitos Humanos, principalmente o direito à saúde, sejam prioridades inegociáveis”, afirmou.