Nos textos sagrados – Bíblia, Alcorão, fundamentos orais das Religiões de Matriz Africana e nas Espiritualidades dos Povos Originários (Indígenas) – é enfatizado que justo e bom é a prática da justiça, da ética e da solidariedade, a empatia com nossos semelhantes e com todos os seres vivos da nossa Casa Comum. Conviver reconstruindo o paraíso terrestre, “uma terra sem males”, deve ser a utopia que nos inspira na caminhada diária.
Os profetas e as profetisas sempre denunciam as tramas que causam injustiça e geram violência. O profeta Isaías, por exemplo, brada: “Ai daqueles/as que fazem decretos injustos e daqueles/as que escrevem apressadamente sentenças de opressão, para negar a justiça ao violentado e fraudar o direito dos pobres do meu povo, para fazer das viúvas a sua presa e despojar os órfãos” (Is 10,1-2). Em profunda sintonia com os povos injustiçados, o profeta Habacuc clama: “Até quando, Javé, vamos pedir socorro? Até quando teremos que gritar: ‘Violência!’ Até quando teremos que contemplar a injustiça? O injusto encurrala o justo e distorce o direito” (Hab 1,1-4). “Juízes, julguem com justiça!” (Dt 16,19), profetiza quem escreveu o livro do Deuteronômio. A fina flor da sabedoria popular alerta: “A justiça divina acontece e não falha.” Entretanto, na sociedade capitalista com idolatria do mercado que chantageia o Governo Lula exigindo que corte nos corpos dos pobres para garantir ‘(ir)responsabilidade fiscal’ que canalize quase 50% do orçamento do Governo Federal para amortizar juros da gigantesca dívida pública. Esta brutal injustiça é tida pelos empresários especuladores e pela mídia vassala dos patrões como se fosse justiça.
A Pastoral Carcerária Nacional lançou, recentemente, dia 02 de dezembro, o Relatório “Políticas de Seletividade, Definhamento e Morte: O Silêncio Frente às Denúncias de Tortura no Sistema Prisional”, que mostra a crueldade que se reproduz cotidianamente no Sistema Prisional brasileiro: superlotação, insalubridade, maus tratos, agressões à dignidade humana dos presos, torturas de vários tipos, mais de 30% – cerca de 300 mil presos – cumprindo prisão preventiva sem terem sido julgados e, salvo exceções, em um universo de mais de 800 mil presos a regra é que são jovens negros de periferia.
Segundo a Lei de Execução Penal, n. 7.210/84, as prisões devem apenas restringir o direito de ir e vir, mas na prática são masmorras, campos de concentração que humilham, violentam, embrutecem e matam aos poucos pessoas que nasceram tendo direitos negados desde o ventre materno. Até o Supremo Tribunal Federal (STF) já admitiu “um estado de coisas inconstitucionais” no sistema prisional do Brasil e determinou que os estados apresentem projetos para solucionar as ilegalidades e as arbitrariedades. Prazo já esgotado, sem soluções apresentadas.
Segundo processo judicial, o empresário latifundiário Adriano Chafik Luedy, condenado a 115 anos de prisão, tendo sido condenado, dia 10 de outubro de 2013, nove anos após o massacre de cinco Sem Terra do MST, em Felisburgo, no Vale do Jequitinhonha, MG, na manhã do dia 20 de novembro de 2004. Chafik teve o início do cumprimento da pena em regime fechado apenas dia 15 de dezembro de 2017. Foi preso apenas 13 anos após o Massacre, teve a pena reduzida para 48 anos, com data final da pena prevista para 27 de fevereiro de 2045. Faltando 81% do cumprimento da pena, para surpresa e estarrecimento de quem luta por justiça agrária e social, dia 13 de maio de 2024, um juiz da comarca de Salvador, BA, acolheu o pedido dos advogados de Adriano Chafik e autorizou a sua saída da prisão e continuidade do “cumprimento” da pena em prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica. Injustiça que violenta mais ainda as vítimas do massacre em Felisburgo.
Por que a quase totalidade dos 800 mil presos jovens negros de periferia não têm esta mão condescendente do Poder Judiciário? Por que só ricos e empresários não são presos ou se são presos somente após muitos anos dos crimes bárbaros que cometem ficam presos pouco tempo, enquanto milhares de pessoas pobres ficam apodrecendo nas prisões que violam sistematicamente os direitos humanos?
Seguimos recordando que dia 20 de novembro de 2004, um sábado chuvoso, dia da Consciência Negra Quilombola, por volta das 10h40 da manhã, Adriano Chafik, dono também de muitas outras fazendas na Bahia, chegou ao Acampamento Terra Prometida, em Felisburgo, MG, com um bando de 17 jagunços fortemente armados. Renderam um Sem Terra que estava na guarita do acampamento e, com revólver encostado na sua orelha, o obrigaram a soltar um foguete, que era a senha para reunir todo o povo do acampamento em caso de ameaça ou de necessidade de se reunir com rapidez. O povo começou a se reunir. Adriano Chafik, visto por muitos no local, liderava a operação, perguntando “Cadê a Eni e o Jorge?” e ordenando “Podem atirar e matar…”. O bando de jagunços – uns encapuzados, outros não – iniciou os disparos. Dentro de poucos minutos já tinham assassinado cinco Sem Terra – Francisco Nascimento Rocha (72 anos), Juvenal Jorge da Silva (65 anos) Miguel José dos Santos (56 anos), Joaquim José dos Santos (49 anos) e Iraguiar Ferreira da Silva (23 anos). Todos os tiros foram à queima roupa. Feriram mais de 12 pessoas, incendiaram com gasolina dezenas de barracos de lona preta do Acampamento Terra Prometida, inclusive a barraca da Escola, a barraca de alimentos, a barraca da biblioteca, barracos da Eni e do Jorge. Uma criança de doze anos levou um tiro próximo ao olho. Puseram gado nas lavouras dos Sem Terra.
Já se passaram 20 anos do massacre e os governos estadual e federal ainda não efetivaram o assentamento das famílias no Pré-assentamento Terra Prometida e as famílias vítimas ainda não foram indenizadas. A injustiça segue se reproduzindo e agora ampliada com a soltura do mandante Adriano Chafik.
Dia 28 de novembro último (2024), o empresário latifundiário Antero Mânica foi liberado do presídio de Unaí, porque uma juíza lhe concedeu prisão domiciliar para tratamento de saúde. Em 2015, Antero Mânica em júri popular na Justiça Federal em Belo Horizonte, MG, foi condenado a 100 anos de prisão como um dos mandantes da chacina dos fiscais em Unaí, MG. O julgamento foi anulado e em 2º julgamento a pena foi reduzida para 64 anos. Depois o TRF[1]6, em novembro de 2023, aumentou a pena de 64 para 89 anos. Antero Mânica tinha sido preso dia 16 de novembro de 2023 e com apenas um ano de prisão recebeu a autorização para ser liberado da prisão e ir para prisão domiciliar. Se um preso tem problemas graves de saúde, tem o direito de se tratar, mas por que outros milhares que são adoecidos nas prisões não recebem a autorização para ir para prisão domiciliar cuidar da saúde? Injustiça maior: Antero só foi preso após 19 anos da chacina dos fiscais. Óbvio que se tivesse sido julgado, condenado e preso logo após a chacina, não estaria com a saúde abalada como está agora. O Poder Judiciário muitas vezes é seletivo: age rapidamente para prender pobres negros das periferias, mas é lentíssimo para julgar e prender criminosos de grande poder econômico e político.
Seguimos recordando que, por estarem fiscalizando a existência de situações análogas à escravidão em fazendas dos Mânicas, quatro fiscais do Ministério do Trabalho em Unaí, MG, foram assassinados dia 28 de janeiro de 2004, às 8h15, os auditores fiscais do Ministério do Trabalho Nélson José da Silva, João Batista Soares Lage e Eratóstenes de Almeida Gonçalves, e o motorista Aílton Pereira de Oliveira em uma emboscada na região rural de Unaí. Norberto Mânica, um dos mandantes, continua livre e foragido há 20 anos.
A pena mais justa para os empresários como Antero Mânica, Norberto Mânica e Adriano Chafik, que cometem crimes bárbaros, deveria ser o confisco e a expropriação de seus bens: fazendas, empresas e capital financeiro. Deveriam ser empobrecidos e seus bens socializados com o povo vítima dos seus crimes.
Causa profunda indignação quando o Poder Judiciário julga de acordo com a cor da pele, a classe social e o dinheiro que têm. E daí decorre também a impunidade. Muita luta popular é necessária. Santo Agostinho dizia: “A esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las.” Que não percamos a capacidade de nos indignar diante das injustiças! Sigamos com coragem, o que inspira e motiva outros/as a entrar ou permanecer nas lutas justas e necessárias.
04/12/2024.
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Memória da luta pela terra em Felisburgo/MG: P.A Terra Prometida, local do massacre de 5 Sem Terra.
https://www.youtube.com/watch?v=cZNG78nf5dA
2 – Sem Terra sobreviventes do massacre de Felisburgo, MG, jamais vão aceitar despejo. Vídeo 2 – 12/3/2020.
https://www.youtube.com/watch?v=ZU-omqcBjsw
3 – Massacre de Felisburgo, em MG, segundo Eni, do MST. O Clamor justiça chega aos céus! 05/05/2013
https://www.youtube.com/watch?v=rGV5Jxxi7OI
4 – Massacre de Felisburgo (Audiência na ALMG): Eni e Dr. Afonso Henrique/Denúncias graves. 21/11/2012
https://www.youtube.com/watch?v=cxkNoUVA4u0
5 – Marinês, viúva do fiscal Erastótenes, fala sobre o Massacre dos Fiscais em Unaí. 04/09/2013
https://www.youtube.com/watch?v=mzBvJ9GkqOk
6 – Entrevista com Helba, viúva de Nelson, 1 dos 4 fiscais matados em Unaí em 28/01/2004 – 07/01/2012
https://www.youtube.com/watch?v=FEDXGHepSFo
7 – 8 anos do massacre de 4 fiscais do MTE, em Unaí – Entrevista com Calazans – 1a parte – 12/01/2012
https://www.youtube.com/watch?v=wTbKFTEQM_o
[1] Tribunal Regional Federal.
*Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, Movimentos Sociais e Ocupações.
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