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Assim que a filmagem terminou, a atriz libanesa Wafa’a Celine Halawi decidiu que iria tatuar em seu corpo o que havia descoberto na floresta amazônica. Em português, ela gravou em sua pele a palavra “liberdade”.
Ela acabara de gravar Retrato de um Certo Oriente, que estreou no Brasil há poucas semanas e que, pelo mundo, passou a conquistar prêmios e reconhecimento.
Wafa’a vive a história de uma libanesa que, no final dos anos 40, desembarca na Amazônia. A história de um amor impossível ganha contornos trágicos. Dirigido por Marcelo Gomes e inspirado no romance de Milton Hatoum, vencedor do Prêmio Jabuti, o filme explora a saga de imigrantes libaneses no Brasil e os desafios enfrentados na floresta amazônica.
Nascida em Dubai e tendo vivido na França e em Beirute, a atriz conta em entrevista ao UOL o que descobriu no Brasil e como o filme, num momento de crise internacional, ódio e guerras, é uma mensagem ao presente, aos desterrados, seja na Amazônia ou nos refugiados pelos conflitos no Oriente Médio.
“O filme é um espelho do que ocorre hoje, que a história se repete. Há uma guerra por terras no Oriente Médio, uma guerra por terras na Amazônia. Essas duas pessoas que se encontram num barco em direção ao Brasil, numa era de polarização, de ódio, mostram a capacidade de superar as diferenças em nome do amor”, afirmou a atriz.
“No Brasil, senti uma liberdade que eu não conhecia. Uma liberdade em termos de energia. Senti que almas eram livres. Me marcou muito e a Amazônia te oferece isso. Ali, passei a ser apenas um ser humano. O espírito da Amazônia não quer saber se você é muçulmano, cristão. Com o poder do amor, podemos superar todas as divisões que, num lugar como a Amazônia, são apenas ilusões”, disse.
Eis os principais trechos da entrevista:
Jamil Chade: Meus avós saíram do Líbano ao Brasil na mesma onda migratória que o filme retrata. Poderia ter sido a história de minha família ou de tantas outras.
Wafa’a Celine Halawi: Claro, Milton Hatoum afirmou que se inspirou na avó dele e outras mulheres daquela época.
Sim, é uma história de muitos de nós. Minha pergunta a você: como os brasileiros são vistos hoje no Líbano?
Minha percepção sobre os brasileiros se abriu muito depois do filme. Sempre escutei falar dessas ondas de imigração e da intensidade da diplomacia entre os dois países, mas nunca havia sido algo que eu me foquei. Quando entrei para esse projeto, comecei a me fazer perguntas e ficar mais exposta à comunidade brasileira. Descobri um bar brasileiro em Beirute, o Boteco. Tem pão de queijo, música brasileira. De repente, me deparei com uma camada de minha própria cidade que eu desconhecia. Desenvolvi amizades com brasileiros, o cruzamento das culturas.
Todos sabemos que a comunidade libanesa no Brasil é uma das maiores do mundo, com uma população duas vezes a do próprio Líbano.
A produção decidiu levar você a ser confrontada com a Amazônia, com algo novo. Como foi o primeiro contato da atriz, não da personagem?
Eu estava em Istambul e, por Lisboa, cheguei em Belém. Era noite e eu estava excitada. Nunca pensei que eu iria um dia ver a Amazônia. Fui levada para as docas e senti algo. Era noite, mas eu queria ver mais. Nunca tinha visto um rio tão grande. Tinha a força de um mar.
Há, inclusive, uma cena que não entrou no filme final. Mas a personagem engravida e ela volta para Manaus. A criança nasce e o batizado é no rio. Uma filha do amor.
Naquele momento, o diretor me contou que queria gravar dentro do rio e me perguntou se eu toparia. Claro que aceitei. Pensaram que eu ficaria com medo. Gravamos e as cenas não entraram na versão final. Mas eu tive essa experiência.
E como foi entrar na floresta?
Eu já havia estado em Ruanda. Mas a energia na Amazônia é outra. Na primeira cena da gravação, pela floresta, havia muita tensão. A personagem estava de vestido e com um sapato simples. Num certo momento, eu tive de ser carregada. E, de repente, olho para minhas pernas e elas estão repletas de mordidas, picadas. Formigas e aranhas entraram nos meus sapatos.
Rosa, que atua no filme como a personagem Anastasia, me contou que quando se entra na Amazônia, é necessário pedir proteção e permissão. Ela me levou a seus pais e fizemos uma cerimônia de águas para pedir essa permissão. Seu pai era um Xamã e senti algo muito diferente. Eu sentia que havia estado lá antes. Quando eu aprendia português, sentia que não estava exatamente aprendendo uma nova língua. Mas relembrando algo que eu já sabia. E ele me confirmou: sim, você teve uma vida aqui antes.
Depois daquele momento, eu nunca mais tive uma picada ou mordida. Esse é o poder da Amazônia. A floresta me adotou.
O que você aprendeu da Amazônia?
Desde o meu primeiro encontro com o rio, é uma mistura de consciência e força. O espírito da Amazônia é algo que é forte, mas que pode te alimentar. Um exemplo lindo do poder feminino, num mundo dominado pela energia masculina, e nem sempre saudável.
É um recado do que podemos ser. Encontramos alguns xamãs e vi como há espaço para existir de outra forma. Claro que a floresta pode causar medo. Mas ela nos lembrar de como podemos ser.
Como foi o processo para aprender português?
O casting aconteceu em árabe e francês. Quando chegamos, tivemos um mês de ensaios e tínhamos um professor de português. O que aconteceu é que tanto eu como meu personagem íamos aprendendo português ao mesmo tempo. Foi real.
Isso tudo estava ocorrendo antes da covid-19. Quando a pandemia chegou e tivemos de interromper tudo, pedimos para que a produção mantivesse as aulas de português online. Decidi continuar também a estudar. Amei a língua.
Algumas situações inusitadas ocorreram. Em algumas cenas, já depois da pandemia, o diretor me dizia que a personagem estava falando bem demais português e que não poderia ser assim. Ela ainda deveria mostrar dificuldade.
Que mensagem esse filme manda para nossa realidade de hoje?
Eu sempre me faço essa pergunta antes de assumir um papel. É uma mensagem de amor e de humanidade. O filme é um espelho do que ocorre hoje, que a história se repete. Há uma guerra por terras no Oriente Médio, uma guerra por terras na Amazônia. Essas duas pessoas que se encontram num barco em direção ao Brasil, numa era de polarização, de ódio, mostram a capacidade de superar as diferenças em nome do amor.
Não é apenas o amor entre duas pessoas. No Brasil, senti uma liberdade que eu não conhecia. Uma liberdade em termos de energia. Senti que almas eram livres. Após o filme, tatuei a palavra “liberdade” em mim, em português. Me marcou muito e a Amazônia te oferece isso. Ali, passei a ser apenas um ser humano. O espírito da Amazônia não quer saber se você é muçulmano ou cristão.
Claro que sei da história do colonialismo, da miséria e das dificuldades da discriminação. Mas senti que existe a possibilidade de ter um gosto de ser, simplesmente ser.
Com o poder do amor, podemos superar todas as divisões que, num lugar como a Amazônia, são apenas ilusões.
Essa superação das diferenças poderia ocorrer no Líbano de hoje?
Claro que sim, pelo menos entre as pessoas com consciência. Eu vim de uma família muito aberta. Mas, para algumas pessoas, a identidade está ainda muito ligada a uma confissão.
Vemos no mundo o ódio sendo instrumentalizado, até politicamente. Há espaço realmente para o amor neste contexto?
Sem dúvida. Há espaço para o amor em cada interação que temos. Se lembrarmos disso, poderemos superar esse momento caótico que estamos vivendo. Mas, pessoalmente, acredito que o contrário de amor não é ódio. O oposto é o medo. E é isso que políticos estão usando. Teme-se o que não se conhece.
Quando as pessoas têm medo, podem ser controladas. Não podem tomar decisões conscientes. Vemos isso em meu país, nas escolhas políticas das pessoas.
Quero acreditar que somos capazes de escolher representantes que têm as qualidades que desejamos ter. Mas estamos fracassando nisso e o motivo desse fracasso é o medo.
Num momento de uma crise tão profunda, como tem sido o papel das artes e cultura no Líbano?
O Líbano tem uma cena artística muito rica. Claro, que temos muitos problemas, condições. Fui diretora do Festival de Cinema do Líbano e vimos que, todos os anos, temos um filme libanês nos principais festivais do mundo. Há muita acontecendo no Líbano. A arte está lá. Obviamente que ela está moldada por tudo o que estamos vivendo. Temos muitas histórias a contar e aprendemos como contar. Temos muito a dizer.
Li uma entrevista sua na qual você é questionada sobre o futuro do Líbano. E você responde que, primeiro, precisamos saber qual o presente do Líbano. Então, te pergunto: qual é esse presente?
É muito difícil definir esse país. Quando eu estava na universidade, ouvi que o Líbano é tudo e seu contrário ao mesmo tempo.
No lugar de ficarmos procurando o que será de nós, será que não deveríamos olhar para o que existe hoje? Falamos sempre do período antes e depois da guerra, antes e depois da crise econômica, antes ou depois da explosão. Mas e hoje? Quem somos?
Sempre que você sobe ao palco, você pede um cessar-fogo. Qual o papel do artista nesse contexto?
Pensamos na arte como representação. Mas é, acima de tudo, um testemunho e um compartilhamento da experiência humana. Nosso papel, como artista, é o de contribuir para o testemunho dessa experiência humana. E isso vai afetar e moldar a narrativa dos acontecimentos que estamos sendo alimentados diariamente. É a forma de contar nossa história.
Teu papel no filme é de uma imigrante. Hoje, vemos uma criminalização da imigração.
Claro, eu atuei num papel de uma imigrante que não queria viajar. Se você tiver um local chamado de lar, para onde você pode ir, por qual motivo você migraria? A questão da imigração é muito humana. Na maioria das vezes, é uma questão de sobrevivência, tanto no filme como na nossa realidade de hoje.
Na minha vida, senti o mal-estar de ser uma imigrante. Existe o mal-estar de não estar em casa e o mal-estar de não ser aceita onde você está, com um processo de desumanização.
No caso do Brasil, vivi um país que acolheu os imigrantes. Um país que me acolheu. Abraçou minha presença, minha cultura. Não é meu país, mas posso pertencer a esse lugar. Em outros, esse sentimento pode jamais ocorrer.
Nasci em Dubai, morei na França a partir dos sete anos. Ainda lembro quando me diziam “árabe suja”, ainda como criança. Mas eu pensava: fomos nós que inventamos o sabão.
Meu personagem no filme não sentiu isso no Brasil.
O que libaneses e brasileiros podem, hoje, contribuir para o mundo?
O Brasil pode oferecer a proteção da Amazônia ao mundo. Eu entendi o que a floresta quer dizer para o planeta. Nossa sobrevivência, mas também um recado do que significa ser humano.
Já o Líbano sempre ofereceu seu povo, com sua experiência e cultura. Mas acho que poderia oferecer ao mundo nossa diversidade, se olharmos como uma força, poderia ser uma lição enorme ao mundo.
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Atriz libanesa Wafa’a Celine Halawi é a estrela do filme Retrato de um Certo Oriente.